Anna Flora
Existem artistas que conseguem unir em seus trabalhos o aspecto lúdico e a beleza, incentivando o admirador não só a contemplar, mas também a manipular a obra. É o caso da escultora e designer Elvira de Almeida. Suas construções -praças com grandes brinquedos e pequenas esculturas que enfatizam a reciclagem de materiais abandonados e a interação dos usuários com as obras- estão localizadas no Ibirapuera ou em bairros periféricos de São Paulo: nos parques Chico Mendes e Raul Seixas, em conjuntos habitacionais do Butantã, do Tietê e da Vila São Francisco, na zona leste. Algumas de suas belas concepções, como as praças em Santo Amaro e no parque D. Pedro, foram suspensas pela prefeitura atual, o que mostra a ignorância de certos políticos que adoram destruir trabalhos positivos só porque fazem parte da administração anterior.
Este livro dá destaque às belíssimas fotografias dos desenhos e maquetes, onde sobressaem as cores primárias, vivas e alegres como convém à maioria daqueles às quais as esculturas se destinam: as crianças. Os relatos das atividades de Elvira, quando aparecem, são escritos de maneira direta e acessível ao leitor, enfatizando sempre o processo de criação da autora.
A característica mais interessante da obra é a coerência da artista. Há traços constantes na criação dos brinquedos, das grandes esculturas ou nos projetos de móveis populares: a relação lúdica do público com o objeto; a mistura de materiais naturais (troncos de árvores caídos) com objetos industrializados (ferros, correntes, postes de iluminação, sucatas); e principalmente a preocupação em oferecer um produto de alto nível técnico e estético à população de baixa renda.
Para construir suas esculturas lúdicas, Elvira foge dos desenhos dos parquinhos convencionais. Em vez de carrosséis, balanços e giras-giras comuns, ela faz combinações inusitadas, criando cenários dignos de Lewis Carroll: o "mirante-escorregador", a "árvore-pássaro", a gangorra com formato de barco a vela; o "totem-teleférico". E os brinquedos que sugerem personagens? O dragão com estrutura de ferro e dorso inclinado, bom para escalar; o louva-deus gigante cujas formas curvilíneas são um convite para subir, equilibrar e girar; os cavalinhos de madeira, que não possuem rosto, incentivando o usuário a inventar as feições do animal.
Às vezes as criações de Elvira fazem lembrar as idéias de Johan Huizinga, para quem a essência do jogo está no prazer e no fato de proporcionar um espaço imaginário que foge das atribulações cotidianas. Quando brinca, o indivíduo fica "transportado" de satisfação, sem no entanto perder o sentido da realidade. Dois elementos são constitutivos do jogo: a "luta" por alguma coisa ou a representação de algo, envolvendo neste caso o "faz-de-conta", a imaginação. O equilíbrio destes dois aspectos pode ser observado nos projetos de Elvira, inclusive na prática.
Fui até o parque do Ibirapuera e registrei várias expressões ditas pelas crianças enquanto escalavam os brinquedos : "Sou o capitão! Terra à vista." (um menino escalando o "mirante-escorregador"). E uma menina, fazendo girar com o peso do seu corpo, o carrossel feito de madeira e ferro, cuja forma lembra um losango: "Sou um balão gigante de São João!".
É preciso dizer ainda que suas obras desenvolvem tanto o jogo sensório-motor como o simbólico e o de regras. Estes três conceitos foram elaborados por Piaget ao pesquisar a formação do símbolo. Para ele, o jogo é um dos instrumentos principais para o exercício da inteligência. Desde o nascimento até à adolescência, o indivíduo passa por diversas fases quanto à construção do seu universo cognitivo: o jogo sensório-motor, o simbólico e o de regras, sendo que este consiste na atividade do ser socializado. Cada uma destas fases não inclui a anterior: à medida que a criança amadurece, sua inteligência se expande, assimilando e acomodando novas brincadeiras aos esquemas já conhecidos.
As obras de Elvira de Almeida contemplam de maneira exemplar essas fases: incentivam tanto o lado sensorial como o simbólico e a cooperação entre os participantes. A criança, ao explorar seus brinquedos, não está apenas desenvolvendo suas habilidades físicas, ela também imagina simbolicamente enredos e personagens a partir das formas plásticas sugeridas pelas peças. Além disso, pratica a ajuda mútua e a troca de informações, pois muitos brinquedos ganham movimentos mais variados quando são manipulados por dois ou mais jogadores.
Outra beleza a salientar: a autora tem como ponto de partida a observação de desenhos infantis e grafismos da cultura popular. Suas esculturas possuem a mesma estrutura do monjolo, da roda d'água e dos instrumentos antigos que necessitavam da força humana para se movimentar. Mas ela não se limita a imitar estes objetos e sim os recria com outras dimensões e materiais. É o caso dos tótens feitos a partir das garatujas de crianças e do carrossel que tem o mecanismo semelhante à roda de oleiro.
Mas, a meu ver, o mais importante elemento deste trabalho é a socialização da obra de arte. Criou-se no Brasil ultimamente uma aura em torno do design, que acabou se transformando num simples ícone de status para as pessoas de maior poder aquisitivo. As criações de Elvira subvertem esta ordem, indo de encontro às idéias do arquiteto Bruno Munari. No livro "Fantasia : Invenção, Criatividade e Imaginação na Comunicação Visual", ele sustenta que o design é um modo de projetar que, embora seja livre como a fantasia e exato como a invenção, não pode perder de vista uma de suas funções principais, que é a resolução das necessidades coletivas. "Arte Lúdica" é um exemplo disso. Suas esculturas são destinadas a todos, sem discriminação de classe, provando que o design possui uma função social muito mais ampla do que muitos supõem.
Anna Flora é autora de livros para crianças e jovens, como "O Louco do Meu Bairro" (Ática) e "Em Volta do Quarteirão" (Salamandra).
Folha de São Paulo
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