segunda-feira, 6 de abril de 2009

FRANZ KAFKA - O PROCESSO


Uma alegoria do poder

Leandro Konder
FRANZ KAFKA
o saudoso Otto Maria Carpeaux contava que, por volta de 1926, em Berlim, tentava receber pagamento por um serviço prestado à editora "Die Brucke", falida, quando viu num canto uma pilha de exemplares do livro "O Processo", de Franz Kafka. Um dos diretores da empresa lhe disse então: "Se quiser, como pagamento, pode levar a tiragem toda. Não vale nada". Carpeaux pegou apenas um exemplar. Muitos anos mais tarde, no Brasil, comentou. "Foi a maior burrice da minha vida inteira." Se tivesse pegado a pilha de volumes, acabaria se tornando o proprietário de um precioso conjunto de raridades bibliográficas, composto por valiosíssimos exemplares da primeira edição daquele que é, talvez, o mais fascinante dos romances escritos no século 20.
Se formos absolutamente sinceros, admitiremos que, se estivéssemos no lugar de Carpeaux, naquelas circunstâncias e naquele momento, pouquíssimos entre nós deixaríamos de cometer a mesma "burrice" que o erudito crítico austríaco (que depois viria a se tornar brasileiro) cometeu. A fama de Franz Kafka é póstuma. Em vida, sua literatura era apreciada em círculos restritos. A glória veio chegando aos poucos, e o nome do autor de "O Processo" só passou a ser de fato célebre no final da Segunda Guerra, a partir de 1945.
Kafka começou a escrever "O Processo" em agosto de 1914, sob o duplo impacto do início da Primeira Guerra e do primeiro rompimento do seu noivado com Felice Bauer. A trama é conhecida: o protagonista, Joseph K., funcionário qualificado de um estabelecimento bancário, é preso um dia, de manhã, ao despertar, e se vê envolvido numa situação tão angustiante como a de Gregor Samsa, personagem central de outra história de Kafka, "A Metamorfose". (Sintomaticamente, o pesadelo, na ficção de Kafka, não acontece quando as pessoas adormecem e sim quando elas acordam...). Durante um ano, Joseph K. é deixado em "liberdade condicional", mantido sob o controle de misteriosas autoridades que não se identificam e ameaçado pelas sanções de um estranho juiz que não se interessa por ele, que o confunde com um pintor de paredes e que é parte de um Tribunal ao qual ele não consegue ter acesso (assim como o agrimensor K., personagem de "O Castelo", não consegue ter efetivamente acesso aos senhores que o contrataram).
Joseph K. é acusado, não se sabe de quê, e processado, não se sabe exatamente por quem. E o pior: no final, é executado por dois agentes -também não identificados- que usam sobrecasaca e cartola, parecem atores de segunda categoria, arrastam-no para um lugar quase deserto e lhe enfiam no peito um facão de açougueiro. Tudo absolutamente kafkiano.
Como a narrativa consegue multiplicar suas inverossimilhanças sem perder, em momento algum, seu poder de envolver os leitores? De onde vem essa impressionante capacidade que o escritor demonstra de perturbar tão fortemente os sentimentos de seus leitores por meio de um relato no qual eles, em princípio, percebem tantas coisas nas quais não podem acreditar completamente? O segredo está, com certeza, na linguagem.
Kafka tem um modo muito peculiar de dizer as coisas. Exatamente porque, como notou Walter Benjamin, ele se assombra com tudo, isso o leva a renunciar às interjeições e a quaisquer transbordamentos enfáticos na sua expressão literária. Nos seus relatos, tudo se passa como se o que está sendo relatado fosse tão espantoso que só a máxima contenção na maneira de dizê-lo pudesse fazer-lhe justiça.
Em momento algum o autor de "O Processo" cede à tentação da grandiloquência ou se permite recorrer a fórmulas altissonantes. Para narrar experiências carregadas de uma explosiva intensidade subjetiva, ele busca sempre o máximo de objetividade. Sua dicção não faz concessões desnecessárias ao agradável, não procura suavizar certa aridez funcional, adequada à expressão precisa daquilo que ele quer dizer.
Como traduzir as obras desse autor tão especial para outro idioma? Como traduzi-las para o português sem sacrificar suas sutilezas? O escritor Modesto Carone vem frequentando os textos de Kakfa há 40 anos. Há 13 anos, empreendeu a árdua e arriscada tarefa de traduzi-los. Antes de decidir iniciar a maratona, aperfeiçoou seu conhecimento do alemão lecionando na Universidade de Viena. Tinha plena consciência das dificuldades que enfrentaria.
À tradução de "O Processo", Carone dedicou dois anos. Mas valeu a pena. Graças a ele, o público leitor brasileiro em geral tem, agora, a possibilidade de acesso à obra de Kafka (um acesso que o agrimensor K. não teve ao Castelo e que Joseph K. não teve ao Tribunal). Graças à fiel tradução feita por Carone, os brasileiros estão em condições de passear pelo texto, redigido numa "linguagem de protocolo", que pode provocar -como era a intenção do autor- "enjôo do mar" nas criaturas que se acham em terra firme.
Carone realizou um esforço admirável no sentido de respeitar a sintaxe pessoal do autor tcheco, recriando em português tanto suas frases curtas, de ritmo imprevisível, como as frases longas, que revelam não só o movimento perplexo do seu pensamento, como, também, o seu empenho lúcido em tornar aparentemente "natural" o absurdo das situações representadas.
A maior dificuldade que o tradutor enfrentou foi, provavelmente, a de manter no nosso idioma a surpreendente simplicidade e a vertiginosa precisão do original alemão. Kafka não foi um criador de novas palavras: serviu-se de um vocabulário de uso comum. No entanto, os termos que utiliza jamais se banalizam, já que estão sempre aplicados à exata caracterização de pormenores "realistas" que compõem o clima "fantástico" que fascina o leitor.
Na leitura de "O Processo", como na leitura das obras-primas de Kafka, o leitor é constantemente levado a suspeitar de que nos pormenores poderá, quem sabe, encontrar uma chave para compreender melhor o que está acontecendo no quadro mais amplo em que se move o personagem central. Mas os pormenores acabam sendo armadilhas que complicam ainda mais as coisas. Qualquer que seja o fio puxado, o novelo, em vez de se desenrolar, parece tornar-se mais complexo.
Quando Joseph K., por exemplo, tem uma explosão de revolta e denuncia a corrupção que domina todo o sistema judiciário ("diante dessa falta de sentido do conjunto, como evitar a pior das corrupções entre os funcionários?"), ele menciona, de passagem, o que se passou no momento da sua prisão, quando os dois agentes que revistavam seu quarto roubaram algumas das suas cuecas. A denúncia do protagonista, como era fácil prever, não abalou nem um pouco o sistema. Contudo, algum tempo depois, ele viu, numa sala do banco onde trabalhava (?), os dois beleguins sendo espancados, nus, sofrendo um humilhante castigo físico, em decorrência do que ele havia informado ao juiz.
As ambiguidades deliberadas do texto não permitem que o livro seja submetido a uma única interpretação legítima, quer a partir da sua estrutura global, quer com base nos pormenores. "O Processo" pode ser lido como uma alegoria do poder, uma advertência premonitória a respeito do controle estatal dos indivíduos por parte das ditaduras "modernas", uma parábola sobre a solidão dos homens e a falta de sentido de suas vidas nas sociedades contemporâneas, uma denúncia da manipulação na "sociedade totalmente administrada" (que viria a ser objeto da análise da Escola de Frankfurt); todas essas leituras -e mais algumas outras- são, provavelmente, válidas e podem trazer elementos significativos para uma melhor compreensão da obra. Não devemos esquecer, contudo, que nenhuma interpretação crítica, por si só, pode pretender devassar, com suas "luzes", a inesgotabilidade da obra de arte, com suas inelimináveis zonas de penumbra.
Em todo caso, qualquer que seja a interpretação desenvolvida pelos leitores, uma dimensão não pode deixar de ser reconhecida na criação literária de Kafka: a rebeldia, a inquietação, o espírito questionador, que aproximaram o autor tcheco do anarquismo, estão certamente presentes nas páginas de "O Processo".
Leandro Konder é professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ).

Folha de São Paulo

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