Uma história vivida
Maria Cecília L. Dos Santos
PEDRO LUIZ PEREIRA DE SOUZA
a bibliografia sobre desenho industrial no Brasil vem aos poucos crescendo. Antes acostumado às edições em inglês, francês e espanhol, este setor do mercado começa a ganhar títulos nacionais e -o que é mais importante- fruto de pesquisa realizada no país.
O livro de Pedro Luiz Pereira de Souza se coloca nesta direção. Trabalho de fôlego, abundante em dados, certamente marca um momento na história do design brasileiro ao refletir sobre a trajetória de nossa primeira instituição de ensino superior nesta área. Com muita precisão, sua abordagem vai dos bastidores políticos que antecederam sua criação, nos anos 60, à institucionalização da área do design, passando pelas vicissitudes e conquistas da escola, que hoje implanta seu primeiro programa de doutorado no Brasil e na América do Sul.
Destaca-se no livro um certo estilo de reflexão, de problematização do passado da instituição, que revitaliza o texto e lhe dá um aspecto atual e vivo. O convívio ininterrupto com a escola, entre pranchetas, maquetes e oficinas, na qualidade de aluno, diretor e professor, deu a Pedro uma familiaridade que lhe propiciou escrever, a partir de um estilo próprio, uma história vivida. Não se trata de uma análise fria e técnica, que decomponha a instituição fazendo emergir suas estruturas; na qualidade de protagonista e herdeiro de uma mentalidade, o autor confronta-se com um passado, do qual ele também faz parte, inscrevendo nessa história seu sentido de subjetividade e corresponsabilidade.
É neste contexto vital que analisa questões absolutamente contemporâneas e interroga-se sobre o papel do design em nossa sociedade ou, como tão bem formulou Aloísio Magalhães: "O que pode o desenho industrial fazer pelo país"?
Certamente não estarei exagerando ao afirmar que esta é uma das interrogações centrais levantadas pelo livro, que aliás já está presente nas próprias origens da escola. Ao examinar as marchas e contramarchas para a concretização burocrática da idéia de criação da escola, o autor aponta uma coincidência entre uma certa concepção do design e os anseios políticos do então governador carioca Carlos Lacerda, que tinha interesse em mostrar a face moderna de sua administração. Neste contexto, diz ele, "uma idéia pronta, como a escola de desenho industrial não poderia ser descartada". Assim, sob grande expectativa, em 25 de dezembro de 1962 criou-se formalmente a Esdi, como órgão relativamente autônomo da Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Guanabara.
Ao retomar a formulação do programa didático e curricular da Esdi, o autor procurou ressaltar a especificidade da proposta da escola, contestando a clássica versão de que o programa inicial era cópia da Hochschule für Gestaltung de Ulm, na Alemanha. Para o autor, as influências, bem pesadas num longo processo de maturação de quase oito anos, acabaram por estabelecer uma combinatória saudável de princípios, cujo resultado "não seria apenas um papel carbono do currículo da HFG-Ulm". Nesse processo foi decisiva a presença habilidosa de Aloísio Magalhães, designer que não estava atrelado com a racionalidade funcional e com as metodologias sistemáticas.
O permanente estado de crise da Esdi é outro tema que foi questionado com agudeza. Às análises apressadas que sempre tinham na ponta da língua que as causas do mal crônico era "o modelo importado de Ulm, desvinculado da realidade brasileira", Pedro contrapõe o argumento de que a questão era política. Embora a Esdi tenha sido criada pelo favorecimento do poder público, estando implícita em suas origens uma ordem econômica e social que lhe fosse favorável e que parecia objetivamente viável, as circunstâncias foram adversas e os primeiros anos da escola coincidiram com um período de grande turbulência política no país. Agravando-se ainda mais a partir de 1969, quando ocorreu o que Julio Katinsky descreveu como o "avanço sereno das multinacionais", época em que, segundo ele, "a importação do projeto se tornou uma insolente realidade cotidiana".
As contradições ficaram mais agudas e as vicissitudes mais cruéis na periferia do capitalismo, sobretudo num país de "idéias fora do lugar", onde a "incompetência criativa em copiar" predominou, como dizia Paulo Emílio. A questão cada vez mais atual e complexa levantada por Aloísio Magalhães sobre o que pode o design fazer pelo país continua à espera de resposta, mas parte substantiva do que a Esdi já fez está absolutamente documentada neste livro.
Maria Cecília Loschiavo dos Santos é professora de história da arte na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP
Folha de São Paulo
Um comentário:
Muito bom.
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