quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte.



Tragédia e Aprendizado*

Marcos Sardá Vieira** 2

**Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS);
2doutorando pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil. marcosarda@gmail.com

Butler, Judith. O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte. 2014. Editora UFSC, Florianópolis/SC - Brasil: 128p. ISBN: 9788532806901.

No livro O Clamor de Antígona, a autora Judith Butler apresenta uma reflexão sobre as relações de parentesco que vão além do entendimento das relações consanguíneas e dos princípios normativos associados à heteronormatividade. Em busca de um diálogo aberto com Hegel e Lacan, confrontando o poder legislativo do Estado e o desejo individual, a autora apresenta a tragédia de Antígona, personagem ficcional da peça clássica de Sófocles, na sua interpretação de uma quase heroína queer, que desafia a convenção do amor, do parentesco e do seu papel social como mulher.

O livro é dividido em três capítulos principais, que apresentam, gradualmente, o enredo da peça à medida que relaciona a estrutura normativa do parentesco contida pelo valor simbólico institucional, excluindo qualquer outra representação de relações familiares no limite do que é ser humano. De acordo com Sara Salih (2013), o texto de Butler apresenta muitos questionamentos que desestabilizam a categoria do sujeito, sem chegar ao significado final e completo, em um processo contínuo de reflexão.

Na trágica ficção do dramaturgo grego Sófocles, Antígona é filha de Édipo em sua relação incestuosa com sua mãe, Jocasta. Juntos eles tiveram quatro filhos, entre eles Polinice e Etéocles que matam um ao outro na disputa pelo trono de Tebas. Com a morte dos dois irmãos de Antígona, o trono é tomado pelo tio Creonte, que decreta que o corpo de Polinice seja deixado nu e desenterrado. Defendendo um enterro digno para seu amado irmão, Antígona rebela-se declarando seu direito ao luto e enterrando o corpo de Polinice, contra a medida do rei Creonte, que condena Antígona a ser enterrada viva, exercitando seu poder soberano de fazer morrer (Foucault, 2002). Mas, porque Antígona seria castigada com extremo rigor se não fosse considerada nociva e perigosa? (Lévi-Strauss, 1982).

Em sua ação e discurso de revolta, Antígona transgride as normas de gênero e do parentesco por reconhecer verbalmente o seu ato e assumindo uma postura masculina diante do poder do Estado representado por Creonte. Antígona utiliza a fala de Creonte para afirmar sua autonomia “conquistada através da apropriação da voz autorizada daquele a quem resiste” (Butler, 2014:30) demonstrando não estar suscetível para ouvir aquilo que é ordenado pela autoridade de Creonte.

Em sua avaliação sobre essa tragédia, Judith Butler questiona a motivação de Antígona em desafiar a lei (sabendo que a morte será sua punição) e interrogando se “sua fatalidade seria uma necessidade” (Butler, 2014:49). Através do clamor de Antígona e seu ato de rebeldia, Judith Butler nos encaminha, ao longo dos capítulos do livro, para a reflexão sobre o enredo da morte de Antígona, como lição necessária para compreendermos os limites da inteligibilidade cultural e da constituição do parentesco, enquanto normas sociais que restringem as condutas sexuais e afetivas, a partir da proibição fundamentada pela maldição das relações incestuosas, como fantasias que podem ser castigadas (Butler, 2001).

No diálogo de Hegel e Lacan e nas definições sobre o funcionamento da cultura e da lógica das coisas, surgem questões sobre a teia de relações que tornam nossas vidas possíveis e os nossos amores reconhecíveis. O diálogo desses autores com Butler traz reflexões sobre novas estruturas para a transformação social entre as relações de parentesco e as epistemologias reinantes da inteligibilidade cultural. E as duas idealizações do parentesco apresentadas por Butler correspondem, justamente, às interpretações dessa tragédia pelos olhares de Hegel e Lacan.

Para Hegel, o parentesco é rigorosamente diferenciado da esfera do Estado, em que Antígona representa as leis do parentesco e Creonte representa o Estado, estando ambos implicados pela mesma linguagem. Antígona não encontra lugar na cidadania do reino porque é incapaz de reconhecer ou de ser reconhecida na ordem ética do Estado. A única forma de reconhecimento obtido por ela é através do seu irmão morto, por quem é suposto que tenha um amor incondicional. E havendo o reconhecimento enquanto irmãos, não existe desejo algum nesse relacionamento, de acordo com Hegel. Enquanto Antígona se masculiniza pelo uso da fala, Creonte é desmasculinizado por estar sujeito ao discurso de contestação. E nessa disputa, nenhum dos dois mantém sua posição fixa dentro do gênero, que é desestabilizado pelas perturbações do parentesco.

Não só o Estado pressupõe o parentesco e o parentesco pressupõe o Estado, como os atos que são realizados em nome de um desses princípios ocorrem no idioma do outro, confundindo a distinção entre os dois num nível retórico e, portanto, provocando uma crise na estabilidade (Butler, 2014:30).

Na idealização de Lacan, Antígona situa-se no limite do simbólico, enquanto registro linguístico em que as relações de parentesco são mantidas. O Estado não aparece em suas discussões sobre Antígona. Seu foco está no parentesco, que surge como função do simbólico e torna-se “rigorosamente dissociado da esfera do social, apesar de constituir o campo estrutural de inteligibilidade no qual o social nasce” (Butler, 2014:52). Em Lacan, o domínio da lei universal, abarcando uma regra cultural eterna, é a “base para a noção lacaniana do simbólico e para as tentativas posteriores de separar o simbólico tanto da esfera do biológico quanto do social” (Butler, 2014:41). A dimensão simbólica está separada da dimensão social. Para Lacan, aquilo que é universal na cultura é entendido como regras simbólicas ou linguísticas, que, a princípio, codificam e sustentam as relações de parentesco.

“A norma ideal contingente é uma forma de reificação com importantes consequências para as relações de gênero” (Butler, 2014:42). Dessa maneira, o estatuto da lei, enquanto norma ideal, torna-se indiscutível e incontestável, estabelecendo limites ao social, ao subversivo e à possibilidade de mudança. “A vida ética é precisamente uma vida estruturada pela Sittlichkeit1, em que as normas de inteligibilidade social são histórica e socialmente produzidas” (Butler, 2014:54).

A Antígona interpretada através de Lacan está entre as esferas do imaginário e do simbólico, permitindo o seu acesso à discursividade. Para o psicanalista francês, existe uma idealização na relação de Antígona com seu irmão. Polinice pertence ao plano do simbólico definido como ser puro e que é esse irmão simbólico que Antígona verdadeiramente ama. Talvez, o mesmo contexto do amor idealizado que Antígona dedicou a seu pai/irmão, Édipo. Essa relatividade do amor parental e do desejo despertado por Antígona traz à discussão o tabu do incesto e a promiscuidade, permeando o limite do humano, entre o aceitável e o abjeto.

Segundo Claude Lévi-Strauss [1908-2009], existe confusão em associar o horror ao incesto como tendências fisiológicas e psicológicas congênitas, uma vez que, não haveria “razão para proibir aquilo que, sem proibição, não correria o risco de ser executado” (Lévi-Strauss, 1982:56). Para o antropólogo e filósofo francês:

A regulamentação das relações entre os sexos constitui uma invasão da cultura no interior da natureza; por outro lado, a vida social é, no íntimo da natureza, um prenúncio da vida social, porque, dentre todos os instintos, o instinto sexual é o único que para se definir tem necessidade do estímulo de outrem (Lévi-Strauss, 1982:43).

Pelas teorias lacanianas, o simbólico é definido como campo da Lei que regula o desejo no complexo de Édipo, derivado de uma proibição primária do incesto. “O simbólico é precisamente o que estabelece os limites para o todo e qualquer esforço utópico de reconfigurar e reviver as relações de parentesco a certa distância da cena edipiana” (Butler, 2014:42).

Judith Butler desconsidera a distinção entre lei simbólica e social afirmando que o simbólico é a sedimentação das práticas sociais, em acordo com as regras universais, que operam para transformar relações biológicas em cultura, sem pertencer a uma cultura específica. Portanto, o tabu do incesto é um mecanismo pelo qual a biologia é transformada em cultura, deixando de ser uma exigência biológica. Até mesmo na concepção relativa daquilo que entendemos como casamento, cada sociedade dispõe de um meio cultural para distinguir as uniões e vínculos sexuais, entre duas ou mais pessoas, enquanto legítimas, seja pela monogamia ou poligamia e pelas relações permanentes ou temporárias (Lévi-Strauss, 1986).

O ato infrator do incesto abre precedentes para sustentar a dissolução dos laços sociais que deixam de surgir a partir de uma base normativa que regula o legítimo e o ilegítimo da relação de parentesco. Diante da peça Antígona, torna-se possível uma nova reflexão sobre esse ato de proibição que se prolifera em outras operações, a partir do crime que condena.

Na medida em que o tabu do incesto contém em si sua infração, ele não proíbe simplesmente o incesto, mas o sustenta e cultiva como um espectro necessário da dissolução social, um espectro sem o qual os laços sociais não podem surgir (Butler, 2014:95).

Esse dilema pós-edipiano torna incerto o destino dos deslizamentos das relações entre irmãos, entre filhos e pais, independente de estarem vivos ou mortos. A versão psicanalítica estabelecida a partir da relação incestuosa condena sua perversão, ao mesmo tempo em que cria um sentido dialético e estático, no qual a lei define-se pelo contraste com o perverso, ainda que a própria lei não seja exatamente o que parece ser. A compreensão do perverso que surge na linguagem da lei define uma esfera de parentesco que não ajuda a criar possibilidades para novas formas de vida social. E resta saber se a questão do “tabu do incesto estabelece certas formas de parentesco como as únicas inteligíveis e que podem ser vividas” (Butler, 2014:98).

As consequências simbólicas do tabu do incesto estabelecem os fundamentos da estrutura familiar declarados como universais, dificultando a articulação de outros desvios diante da conduta heterossexual normalizada. Porém, qual o limite do que pode ser pensado como certo e inteligível? (Butler, 2001).

Dando sequência ao texto, Butler interpreta o limite do enfrentamento da lei na concepção de Lacan, afirmando que Antígona não se estabelece no simbólico. Sua morte é sempre dupla ao longo da peça. Seu destino é não ter uma vida para viver, estando condenada à morte e servindo a ela antes de qualquer possibilidade de sobrevivência. Antígona desafia a viabilidade da vida pela pulsão da morte, oferecendo uma perspectiva crítica e resistente contra a restrição do simbólico diante da viabilidade da vida, em suas foraclusões2 precipitadas, estabelecendo novos fundamentos para a comunicabilidade e para a existência.

Pelo seu legado de relações incestuosas e posições de gênero ambíguas, Antígona está longe de representar os princípios normativos do parentesco, ainda que ocupe um lugar de oposição política quando ela questiona os limites da representabilidade do parentesco e da condição humana, indo além das reivindicações feministas em questionar a hierarquia fixa na materialidade do corpo e do sexo (Butler, 2002). Representando uma aberração da norma, a interpretação da tragédia de Antígona, segundo Judith Butler, torna-se uma oportunidade de reconstrução das posições de parentesco no simbólico que postula as pré-condições da comunicabilidade linguística.

Antígona não representa o parentesco em sua forma ideal, mas em sua deformação e deslocamento, colocando em crise os regimes reinantes de representação e levantando a questão de quais poderiam ter sido as condições de inteligibilidade que teriam tornado sua vida possível (Butler, 2014:47).

Antígona perturba a base do parentesco, que é uma precondição humana. Ela representa os limites da inteligibilidade, ocupando a linguagem que nunca pode lhe pertencer. Se ela é humana, representa “alguém para quem as posições simbólicas tornaram-se incoerentes, confundindo, como ela o faz, pai com irmão” (Butler, 2014:44) e surgindo no lugar da mãe para desestabilizar o significado do materno.

Pela leitura do livro compreendemos que o parentesco é uma forma de realizar uma ação e implica na repetição de um costume a partir de uma convenção, operada pela própria contingência. Na interpretação das correntes pós-estruturalistas, exemplificadas por autoras como Gayle Rubin, Sylvia Yanagisako, Jane Collier, Michelle Rosado e David Schneider, a definição de parentesco significa:

Qualquer número de acordos sociais que organizam a reprodução da vida material, incluindo a ritualização do nascimento e morte, proporcionando laços de aliança íntima tanto duradouros quanto vulneráveis e regulando a sexualidade através da sanção e do tabu (Butler, 2014:102).

Na interpretação de Butler, a tragédia de Antígona, que transgrediu as fronteiras da inteligibilidade do parentesco, representa a fatalidade heterossexual, em uma suposição contínua do simbólico que interpreta com repulsa moral o incesto e, de maneira similar, está associado ao horror provocado pela relação gay e lésbica e, ainda, pela condenação moral e o julgamento de inferioridade na formação de famílias compostas de modo aparentemente derivativo da normatividade. Ainda assim, a morte social de Antígona não produz uma categoria heterossexual no desfecho do drama edipiano, o que permite repensar a personagem como ponto de partida para uma teoria psicanalítica, que possa rever a posição negativa do perverso e a rearticulação do essencial anunciado à norma.

“A condenação de Antígona opera pela foraclusão, eliminando desde o início qualquer vida ou amor que ela poderia ter tido” (Butler, 2014:109). De maneira similar, o tabu do incesto serve de referência para foracluir o amor não normativo, tornando sombrio o significado daquele amor fora do vivível e privando o seu sentido de durabilidade ontológica no reconhecimento institucional e público. Aceitar essa doutrina é reproduzir um estado de melancolia no nível cultural. Nesse raciocínio, Butler supõe a existência de uma melancolia na esfera pública motivada pela falta de reconhecimento do ser humano que vive no reino sombrio, por não estar incluído nos padrões de reconhecimento social que permitiu a conquista da condição humana, tornando-se sujeitos que morrem lentamente, marginalizados e sem cidadania plena para vir a ser.

De acordo com Michel Foucault (2000), interpretando o texto de Immanuel Kant [1724-1804] sobre o processo de esclarecimento individual na história do pensamento, a condição inversa para que uma pessoa seja liberta do seu estado de menoridade é obedecer mais e raciocinar menos. Nesse sentido, a suposta liberdade no uso público da razão autônoma torna-se uma garantia de obediência, desde que, o próprio princípio político ao qual é preciso obedecer esteja de acordo com a razão universal.

Compreender que a tragédia é uma forma de encarar o aprendizado a partir do conflito permite um estado de consciência para essa vivência, mesmo quando existe sofrimento e quando não se sabe ao certo como explicar o fenômeno que a tragédia narra e exibe. O conhecimento que surge desse testemunho costuma estar em algum lugar, nos arquivos da memória. E nessas situações dramáticas, como a trágica experiência de Antígona, percebe-se que nem sempre o conhecimento serve para uma aplicação objetiva. A tragédia, muitas vezes, surge para questionar a própria certeza do conhecimento sem que o personagem autoconsciente precise estar implicado, essencialmente, na força de sua ação. Até porque, a ação que promove a tragédia também determina o personagem nela envolvido.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Butler, Judith. Undoing Gender. New York, Routledge, 2004. 

Butler, Judith. Cuerpos que Importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires, Paidós, 2002 [1993]. 

Foucault, Michel. O que são as Luzes? 1984. Ditos e Escritos II. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense, 2000. 

Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo, Marins Fontes, 2002. 

Lévi-Strauss, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis, Vozes, 1982. 

Lévi-Strauss, Claude. O Olhar Distanciado. Lisboa, Edições 70, 1986. 

Salih, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2013. 

1 A esfera legitimadora da Sittlichkeit é apresentada, segundo Butler, como “as normas articuladas que governam a esfera da inteligibilidade cultural” (Butler, 2014:19).

2 De acordo com a nota do tradutor, André Cechinel, o termo foraclusão (do inglês foreclusion) “designa o mecanismo específico da psicose através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito”(Butler, 2014:11).

*Resenha de BUTLER, Judith. O Clamor de Antígona: o parentesco entre a vida e a morte. Florianópolis, Editora da UFSC, 2014.
Cadernos Pagu - Unicamp

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