domingo, 13 de maio de 2012




DANTAS, B. G. Rendas e rendeiras no São Francisco. Estudos e documentos sobre a renda de bilro de Poço Redondo/SE. Paulo Afonso/BA: Editora Fonte Viva, 2006.



Documentar, registrar, inventariar. Nas discussões e ações instituídas para preservação do patrimônio cultural01, esses termos são bastante aplicados e debatidos, principalmente, após a gestão do antropólogo Antônio Augusto Arantes, na presidência do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a partir do ano de 2004, quando ficou estabelecido como método oficial o INRC (Inventário Nacional de Referências Culturais).
Os estudos e documentos produzidos pela antropóloga sergipana Beatriz Góis Dantas sobre o rendar com bilros em Poço Redondo/SE datam de um período no qual essa metodologia estava ainda “engatinhando”, pautando-se, portanto, em referências metodológicas restritas a trabalhos acadêmicos, principalmente nos âmbitos da Antropologia e da História. Outro diferencial do trabalho de Dantas são as discussões de cunho socioeconômico realizadas a partir do fazer renda de bilros.
O livro reconstrói um universo poético e antropologicamente rico, vertendo o fluxo de informações coletadas pela autora por um caminho lógico de contextualização sócio-histórica, em que o material principal, a renda, é tratado a partir de uma viagem pela história de vida de figuras nordestinas que viveram em seus dias de juventude mudanças históricas de extrema importância. A obra contém muitas imagens, em que figuram as rendeiras, o sertão, a renda; e sua redação nos proporciona uma leitura fluida/agradável. Fica clara a relação de encantamento pessoal da autora com seu objeto, que transparece quando da cessão de parte do seu próprio acervo de rendas para ilustração na obra, e também no tom de sua narrativa, que consegue alia poesia e informações antropologicamente relevantes.
Como afirmado anteriormente, a metodologia de registro da renda foi criada pela própria autora por não haver outras referências, naquela época. Ela levou em conta dados sócio-históricos que pudessem fornecer conhecimento amplo sobre a renda, seus usos e sua comercialização, ao longo do tempo, chegando até o momento presente. O material usado para tal documentação foi o acervo de papelões02 de uma das rendeiras, Dona Conceição, que continha 122 exemplares, e que era o maior entre as entrevistadas. A metodologia é descrita com base nos seguintes passos: “Limpeza e digitalização dos papelões” - alguns deles estavam em péssimas condições e havia o desejo de conservar os modelos; “Identificação e fichamento dos papelões” - as fichas foram elaboradas tomando como exemplo a classificação feita por Girão (1963) e Soares (1987), que era a disponível na época, sempre atentando para o contexto histórico e para fatores sócio-culturais para fins de catalogação e classificação; “Renovação dos suportes dos papelões” - a rendeira doou os papelões velhos para o Cendop (Centro de Documentação e Pesquisa do Baixo São Francisco), fazendo novos para ela; “Execução das amostras de renda para formação do acervo” - a rendeira recebeu a encomenda de produzir uma amostragem de renda de cada um de seus papelões; “Identificação das amostras de renda”; “Registro visual das rendas, das rendeiras e do processo produtivo” – momento em que se documentou o processo de feitura da renda com fotografia e vídeo. Sobre esse último ponto, Beatriz Dantas enfatiza a importância do registro audiovisual, e sua grande utilidade na composição de eventuais exposições coletivas das rendas, realizadas em vários locais, publicações, apresentações de comunicações em eventos, ou seja, diversos desmembramentos  que servem como forma de restituição para as rendeiras que foram interlocutoras na pesquisa e como estratégia para divulgação do ofício de rendeira. Em seguida, a autora nos apresenta as 120 amostras de rendas encomendadas a Dona Conceição, juntamente com informações básicas como tipo, denominação, pontos usados e largura.
Sua iniciativa de registrar o ofício tem como finalidade dar maior visibilidade à renda de bilros no panorama cultural brasileiro, além de suprir uma lacuna que concerne à escassez da literatura a respeito da renda em Sergipe. A obra se referencia a poucas iniciativas de inventariado do ofício até aquele momento, sugerindo que na maioria das publicações que abordam esse gênero de artesanato, a renda de bilros teria ficado de fora. Dantas argumenta que essa ausência teria sido resultado de uma avaliação institucional, baseada no mercado, acerca de atividades artesanais com retorno econômico expressivo, caso em que não se enquadrava a renda de bilros em meados da década de 1960. Na década seguinte, os estudos sobre artesanato teriam recebido novo fôlego, atrelado ao investimento em turismo, cujos projetos de âmbito nacional se inclinariam a valorizar os fazeres manuais. Atualmente, as publicações com informações mínimas sobre artesanato em Sergipe afirmam haver em várias partes do estado registros de mulheres rendando em almofadas, entretanto, seria em Poço Redondo que elas estariam mais concentradas.
Unindo a produção de conhecimento com a intervenção cultural, Beatriz Dantas se revela preocupada com essa situação singular de concentração de rendeiras no sertão, especialmente porque as rendeiras, em sua maioria, já têm idade avançada e são poucas as perspectivas de transmitirem a outras pessoas o seu saber fazer. Por isso mesmo, no fim da introdução, a autora afirma que o livro, além de ser uma contribuição para o registro do ofício, pretende servir como uma colaboração entusiástica para evitar o desaparecimento da atividade.
Direta ou indiretamente, a obra provoca no leitor reflexões interessantes, como por exemplo sobre as atividades econômicas femininas, no decorrer do tempo, em espaços rurais; acerca da relação Homem – instrumento postulada por autores de várias áreas; a ênfase na documentação oral com abordagem informal; o uso de suportes técnicos de captação de imagens no processo de inventariado; as implicações sociais no discurso sobre o artesanato, ora considerado como produto, ora como bem; a importância dos discursos e das projeções teóricas sobre a valoração êmica e a possibilidade de controle social a partir da manipulação dessas práticas; as limitações e a impessoalidade do método do INRC.
Acima de tudo, o livro de Beatriz Góis Dantas provoca, de forma sutil, uma discussão sobre as metodologias consagradas de patrimonialização cultural e suas aplicações, bem como sobre as formas de retorno para os detentores de patrimônio cultural mais apropriadas em cada caso. Um único livro, com poucas páginas, mas que suscita inúmeras questões.

01 Segundo o Art. 216 da Constituição Federal de 1988, o patrimônio cultural brasileiro se compõe de “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.
02 É no papelão que fica o desenho da renda, que será seguido pela rendeira.

Revista PROA

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