sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O mapa fantasma



O mapa fantasma - como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles*

Selene Herculano
Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense - UFF

É um livro diferente e fascinante: o assunto - a história da epidemia de cólera na Londres de 1854, que seria um tema científico de leitura árida e austera, é lido por nós de um só fôlego, como se fosse uma obra de suspense. Nele também se encontra boa matéria para se discutir metodologia de pesquisa, da busca às escuras da relação de causa e efeito entre fenômenos e de como, apesar de se desconhecer então a existência da bactéria causadora - o vibrião do cólera - através de observações metodológicas meticulosas, pôde se chegar ao seu foco epidêmico: a bomba d'água da Broad Street.

O livro conta a história da epidemia de cólera que se abateu sobre Londres, em 1854, nas cercanias do Soho, tendo seu epicentro em Berwick St e Broad St (desde 1936 denominada Broadwick St), próximo à então elegante Golden Square. O Soho é descrito como sendo então uma área decadente, uma ilha de pobreza proletária e de indústrias malcheirosas encravada no próspero West End e rodeada pelas casas opulentas de Mayfair e Kensington. (Como uma nota curiosa sobre as camadas urbanas e os usos contrastantes de uma mesma área ao longo do tempo, o autor rememora que o elegante distrito de Golden Square erguia-se sobre o que fora "o campo da peste de Craven", um cemitério a céu aberto onde se amontoavam as vítimas da peste de 1665.)

Londres era então "[...] uma metrópole vitoriana - com dois milhões e meio de habitantes - às voltas com uma estrutura pública elisabetana [...]" (JOHNSON, 2008, p. 15). O livro a descreve como uma cidade imunda, com profissões bizarras, tão numerosas quanto necessárias: catadores de fezes, de ossos, limpadores de fossa, catadores de lixo, que faziam parte de um comércio estabelecido que atendia às necessidades de remoção de dejetos urbanos e de captação de fertilizantes para a agricultura. Eram tais profissionais uma subclasse numerosa que mantinha em operação todo um sistema de processamento de dejetos. Sua presença é tanto mais crucial em sua importância se nos lembrarmos, como salienta o autor, que o tamanho da população urbana estava então limitado pela fertilidade do solo circundante que abastecia a cidade. Restituir à terra os dejetos urbanos fechava portanto um circuito lógico. Os "homens-tonéis", os "homens-buraco" e os "homens-corda", categorias da equipe dos limpadores de fossa, desempenhavam um trabalho repugnante, mas de rendimento alto. Todavia, sendo Londres uma cidade plana e em expansão, levar o carregamento de fezes até o perímetro agrícola da cidade significava fazer uma viagem cada vez longa, o que encarecia o serviço e aumentava os rendimentos dos limpadores. Nem todos podiam pagar, o que resultava no acúmulo de excrementos em porões que transbordavam. Londres, literalmente, estava afogada em merda. Londres fedia. Para piorar as coisas, os indigentes mortos aos milhares pelo cólera eram empilhados em cemitérios a céu aberto em St. Bride.

O livro relata o embate entre duas teorias e providências da época para tentar explicar a doença e vencê-la: a teoria miasmática de Edwin Chadwick, do Comitê Geral de Saúde (1848), para quem tudo que cheirasse mal fazia mal. E a teoria da transmissão do cólera pela água, de John Snow, médico anestesiologista estabelecido no Soho e que se tornou cirurgião da rainha.

Chadwick culpou a fedentina daquela Londres imunda, atribuindo aos ares pestilentos a causa da epidemia e sua providência inicial foi encharcar as ruas com cloreto de cal. Dando prosseguimento ao trabalho de sanear Londres, promulgou-se a lei de remoção de estorvos e prevenção de doenças contagiosas, que obrigava que as casas se conectassem ao sistema de esgoto então existente mas que tinha sido concebido apenas para dar vazão às águas de superfície da cidade. Até 1815 era proibido tal lançamento e as águas do Tâmisa foram descritas como imaculadas e piscosas; 35 anos após, tornara-se um rio poluidíssimo, "a fossa de todos". Diz o autor: "[...] ninguém morreu por causa do fedor da Londres vitoriana. Dezenas de milhares morreram, entretanto, pois o medo da pestilência os cegou para os verdadeiros perigos da cidade e os levou à implementação de uma série de reformas mal direcionadas que apenas agravaram a crise [...]" (JOHNSON, 2008, p. 25). Ou seja, a água e detritos da fossa contaminada, que estavam restritos à Broad Street, foram parar no Tâmisa e se espalharam.

O afã de encontrar e isolar a causa dos males e doenças frequentemente induz a erros e as soluções saem pela culatra e podem piorar o quadro. O autor frisa este ponto, ilustrando com a lembrança da peste de 1665-66, quando a população exterminou em massa cães e gatos para terminar com a peste bubônica e ela se alastrou mais ainda, pois a peste era transmitida por ratos, cuja população cresceu sem a presença de seus predadores naturais.

Assim se deu com a solução de Chadwick para enfrentar a epidemia de cólera: ao ligar as casas ao sistema fluvial, a fim de que os excrementos fossem levados para longe e os miasmas se extinguissem, ele favoreceu que o então desconhecido vibrião se espalhasse por toda a região.

Durante todo esse período epidêmico, o médico John Snow fazia a leitura frequente dos Registros de Nascimento e Óbito que William Farr, do Departamento de Registros Gerais, tão diligentemente produzia. Snow passou a marcar as ocorrências de óbito no mapa da cidade. Ao mesmo tempo o pároco Henry Whitehead, em visitas ao seu rebanho de fiéis, historiava os casos nos seus detalhes. Nenhum deles estava informado sobre a existência do vibrião, mas deduziram - pelo mapa e por histórias de vida - que o cólera de alguma forma se propagava pela água da bomba da Broad Street, que era então muito procurada por fornecer uma água límpida e de bom paladar. A bomba foi lacrada, sob protestos. Escavações feitas em seguida descobriram que o poço ficara contaminado por uma fossa nas redondezas, onde se lançava os excrementos das pessoas coléricas.

A partir do primeiro mapa, com a localização da ocorrência das mortes, Snow preocupou-se em representar um novo mapa, com a circulação dos vivos em redor desta bomba e das 13 outras que abasteciam os moradores da área e lançou mão de uma ferramenta matemática que mais tarde seria conhecida como o Diagrama de Voronoi. Diz o autor: "[...] o mapa era um brilhante trabalho de informação e de epidemiologia. E também a representação de certo tipo de comunidade, representando as vidas densamente interligadas de um bairro metropolitano [...]" (JOHNSON, 2008, p. 181).

Um sistema completo de esgotamento e de elevatórias para o Tâmisa foi finalmente construído em 1865 pelo engenheiro Joseph Bazalgett e deu-se por eliminado o problema da contaminação miasmática, o que não correspondeu às expectativas por conta do mau funcionamento da East London Water Company, cujos filtros não funcionavam como se supunha: nova leva de mortos por cólera apareceu e 93% deles eram consumidores da água desta companhia. Tal ocorrência fez com que a teoria de Snow ganhasse sustento e passasse a ser seriamente considerada.

Tanto no epílogo do livro quanto nas suas páginas introdutórias, Johnson se preocupa em defender as grandes cidades das críticas usuais sobre seu gigantismo disfuncional e do sonho ambientalista de retorno ao campo. Para ele a densidade populacional urbana não será problema se houver uma eficiente reciclagem de resíduos. Compara os grandes centros urbanos às florestas tropicais em adensamento de formas de vida diversas, a diferença sendo que as florestas têm processos microbianos de decomposição, vale dizer, de reciclagem, de uso microbacteriano em seu favor e as cidades ainda não. Johnson defende o adensamento urbano: os habitantes das cidades têm maior expectativa de vida, o adensamento facilita a conexão da rede de saneamento e o tratamento de esgotos, bem como de energia e de abastecimento de alimentos. A grande cidade, resume taxativamente, oferece mais soluções que problemas: "[...] consideramos a densidade urbana uma força positiva: um mecanismo de sustentação de riqueza, de redução populacional e de sustentabilidade ambiental. Nossa espécie depende, agora, de densos centros urbanos como uma estratégia de sobrevivência." (JOHNSON, 2008, p. 213). Além do mais, a população adensada em pontos do território permite que áreas verdes, florestadas ou cultivadas, se estendam. Contudo, ele reconhece duas novas fragilidades decorrentes do adensamento e da vida urbana conectada por tantas redes: novas epidemias e o terrorismo.

Steven Johnson, nosso autor, é formado em Semiótica e em Literatura Inglesa e faz parte do Departamento de Jornalismo da Universidade de Nova York, sendo autor de outros livros já publicados no Brasil, como "De cabeça aberta", "Emergência" e "Cultura da interface". É um exemplo muito feliz da construção de um conhecimento multidisciplinar. O apêndice de seu livro, com dicas generosas de sites e de livros, vão desde a microbiologia ao urbanismo e à história social.

Autor para correspondência:
Seleno Herculano
Departamento de Sociologia, Universidade Federal Fluminense - UFF
CEP 24230-320, Niterói, RJ, Brasil
E-mail: selene@pq.cnpq.br

* Do original: JOHNSON; Steven. O mapa fantasma: como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 271 p.

Revista Ambiente e Sociedade

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