USP PARA TODOS? ESTUDANTES COM DESVANTAGENS SOCIOECONÔMICAS E EDUCACIONAIS E FRUIÇÃO DA UNIVERSIDADE PÚBLICA. Wilson Mesquita de Almeida São Paulo: Musa; Fapesp, 2009, 208p.
O estudo se propõe uma pesquisa sobre o uso do amplo potencial formativo disponível na Universidade de São Paulo - USP -, por estudantes com desvantagens socioeconômicas e educacionais. Interroga a fruição das oportunidades educacionais no nível superior por meio de três eixos investigativos: socialização em ambiente familiar; trajetória de ingresso; socialização universitária.
O enfoque atual do debate sobre a questão é maior quanto ao acesso ao ensino superior (ainda bem diminuto: 8% a 9% dos jovens na faixa de 18 a 24 anos de idade) do que quanto à permanência nele. Isso parece acontecer em razão do crescente interesse das camadas desprivilegiadas de ingressar nesse nível de ensino. Por sua vez, o avanço das universidades particulares sobre a classe C é agressivo, como se pode constatar em recentes matérias jornalísticas1 como assunto de capa. O trabalho pretende, na contramão da tendência de incorporação dos jovens de baixa renda pelo setor privado, discutir a permanência efetiva de alunos com as características mencionadas na universidade pública. O passo a frente da pesquisa consiste em abordar, creio eu, o problema maior no ensino superior público: permanecer, usufruir e concluir o curso com boa formação.
Para tanto, a pesquisa estuda um grupo de alunos da USP, o que, ao mesmo tempo, torna o foco da investigação original e interessante: não se está falando de estudantes que terão o pior ensino entre os universitários, mas de um dos "biscoitos mais finos" que esse nível de ensino pode oferecer no país. É evidente que esse "biscoito fino" não está isento de problemas; no entanto, não é lá, certamente, que se imaginaria encontrar o estudante pobre, ou com "desvantagens socioeconômicas e educacionais", como as denomina Almeida.
O fato de ser a USP a universidade de origem do autor não empobrece seu ponto de vista: ao contrário, o enriquece porque, para construir a problemática, ele se vale da vivência do curso de graduação em uma das faculdades tidas como "irmãs pobres"2 na universidade.
Para selecionar a amostra, o pesquisador recorreu ao questionário socioeconômico aplicado aos candidatos ao vestibular da USP de 2003, utilizando quesitos que considerou ter forte relação com o sucesso escolar. Foram levados em conta: a renda familiar dos alunos, a realização de estudos no período noturno, a frequência à escola pública, o fato de terem pai e mãe com baixa escolaridade. Com base nesses critérios, o perfil dos sujeitos da amostra pode ser resumido da seguinte forma: escolarização fundamental e média realizada exclusivamente ou na maior parte em escola pública, ou em curso supletivo ou de madureza. Os que estudaram em escolas técnicas federais, sabidamente com qualidade comparável às melhores escolas particulares, foram excluídos. Além disso, o respondente deveria ter realizado a maior parte ou a totalidade dos estudos em período noturno; possuir pai e mãe com até o ensino médio incompleto e que não fossem empresários de qualquer porte ou profissionais liberais3; a renda familiar não deveria exceder a R$ 3 mil. Um outro aspecto fundamental: os respondentes deviam também exercer alguma atividade remunerada no momento do ingresso e se sustentar durante o período do curso superior com sua própria remuneração, sem a colaboração dos pais.
Tais critérios são certamente rigorosos, porém, causa espanto que deles resulte, em todo o universo de ingressantes da USP em 2003, um subconjunto de apenas 39 indivíduos, dos quais 17 aceitaram participar da pesquisa4. Como procedimentos foram realizados dois grupos focais e entrevistas semiestruturadas. A discussão metodológica do autor, franca e madura, não hesitou em assinalar erros porventura cometidos e manifestou preocupação constante com a validade dos achados.
Dois reparos podem ser feitos. Um, que foge, na verdade, à competência do autor, é a predominância dos estudantes de ciências humanas na amostra. Esse aspecto, evidentemente, diz respeito ao menor prestígio e menor caráter competitivo dos cursos dessa área, aos quais os alunos de baixa renda "obrigatoriamente" recorrem, como se pode verificar na análise do seu processo de escolha. No entanto, é fato que, ao se aprofundar no cotidiano desses estudantes, a análise fica muito marcada pela experiência particular dos cursos de humanas da FFLCH. As diferenças são mostradas, é verdade, pelas experiências dos outros estudantes, ainda que em menor número.
O outro reparo diz respeito à pouca importância dada aos condicionantes de gênero na questão do tempo. É conhecida a problemática do uso do tempo para as mulheres que, em razão de suas atribuições tradicionais em relação ao doméstico, incorrem em dupla jornada e, no caso das que estudam, em tripla. Na amostra, elas são minoria (seis mulheres e 11 homens), todas solteiras e sem filhos. Entre os homens, apenas um tem filho, entretanto a média de idade das mulheres (só uma tem menos de 27 anos) é bem mais alta que a da parcela masculina (mais da metade do grupo, oito indivíduos, tem até 27 anos). Questões como essas poderiam ser problematizadas na perspectiva de gênero, assim como a composição sexual do grupo de desistentes.
O conjunto dos 17 estudantes compõese basicamente de filhos de migrantes nordestinos (pelo menos a metade deles), de população proveniente de cidades do interior do estado e da Grande São Paulo, ou ainda de alunos migrantes, eles mesmos (um vindo do Paraná e outro de Minas Gerais). São também trabalhadores-estudantes.
Outro aspecto de destaque é o papel das mães no incentivo à leitura. O estudo mostra que seus interlocutores são "pobres diferenciados", ou seja, entre aqueles que se encontram em situação socioeconômica e educacional desvantajosa, eles possuem algum tipo de vantagem, o que os coloca, de alguma maneira, em condições de enfrentar o exame vestibular da Fuvest. Essas vantagens podem ser encontradas na trajetória social e familiar dos informantes, em diferentes combinações: incentivo aos estudos por parte dos pais, esses mesmos pouco escolarizados, ou de irmãos que conseguiram trilhar um caminho de relativo sucesso escolar e fornecem o necessário exemplo de possibilidade; escolas excepcionalmente boas, no sentido de que nem sempre são instituições de excelência, mas conseguem desenvolver capacidades mínimas entre os alunos.
Alguns dos sujeitos que compõem o estudo afirmam ter optado pela USP mais premidos pela necessidade do que pelo prestígio que o nome da universidade pudesse deixar em seus currículos. Nenhum deles ignorava, porém, a força e importância desse nome, revelando uma imagem quase "mítica" da universidade. Esse caráter mítico não impediu, no entanto, o pequeno grupo de entrar na universidade, mas certamente desviou alguns por um tempo, retardando, por exemplo, o momento de prestarem a prova vestibular. Isso leva a supor que milhares de alunos de escolas públicas são barrados, não na prova escrita, mas pelos obstáculos decorrentes da violência simbólica de que são alvo: a ideia recorrente de que a USP, ou qualquer universidade pública, ou, ainda, que o ensino universitário de qualidade, não é o lugar em que deveriam estar. É doloroso ler o relato de uma estudante sobre o que ouvia dos próprios professores: "alunos de escola pública, vocês, por exemplo, não vão entrar na USP". Outro estudante, levado em uma excursão da sua escola a conhecer a universidade, ouve de um dos monitores o comentário: "vocês de escola pública, é bastante difícil entrar aqui". O comentário, seguido da correção de outra monitora, que afirma que é "difícil, mas não impossível", aponta para o subliminar "aqui não é o seu lugar".
Uma vez tomada a decisão de prestar o vestibular, é o momento de escolher o curso. O autor passa ao exame do processo de escolha. Essa "escolha" com aspas significa que, em muitos casos, se trata de uma "não-escolha", ou de uma escolha restringida pelas condições materiais. Ao ultrapassarem as barreiras simbólicas que faziam da USP um "mito inatingível", os estudantes começam a apreender o "sentido do jogo"; mas, se a eles faltavam capital econômico e cultural, uma boa formação escolar e estímulos, a condição de desvantagem lhes proporcionava, enviesadamente, o desenvolvimento de estratégias do possível e lhes permitia encarar uma rotina extenuante de trabalho e estudo.
A tarefa de ser bem-sucedido no seletivo vestibular da USP, ainda que em carreiras menos concorridas, é lida através das lentes do "trabalhador-estudante". Aquele que estuda é, antes de tudo, um trabalhador, e por esse motivo carrega consigo os valores do trabalho, do esforço, da superação e da recompensa pelo mérito. Essa categoria explicativa que, à falta de melhor denominação, é chamada de "esforço descomunal" é que cria um "ethos do esforço e da responsabilidade". A discussão sobre cotas que emerge dos debates públicos apenas corrobora o perfil delineado pelo autor: majoritariamente contrários a elas, os participantes da pesquisa preferem apostar na "melhoria" da escola pública como forma de manutenção do critério meritório que reputam justo, sem, no entanto, ignorar a desigualdade de bases socioeconômicas inerente à disputa. Parecem, a um só tempo, incorporar os critérios puramente meritocráticos e, por meio da sua defesa, valorizar suas próprias trajetórias de conquista da vaga.
Uma vez conquistada a vaga, o cotidiano de estudo se afigura. As desigualdades entre os cursos no interior da universidade e, entre os alunos no interior de cada curso, são exploradas. Dimensões como a infraestrutura oferecida em termos de biblioteca e laboratórios; a sociabilidade: contato com colegas, ida a festas e outros eventos; a vivência em um ambiente diferenciado e privilegiado do ponto de vista intelectual; a dificuldade no manejo de línguas (seja o português, seja as demais línguas necessárias em determinados cursos, como inglês, francês e espanhol), apontam para outros e novos obstáculos a serem superados. Sublinhe-se o déficit quase incontornável em relação ao que os sujeitos chamam de "base", isto é, os conhecimentos fundamentais que deveriam ter adquirido nas etapas escolares anteriores e que agora fazem falta. O maior obstáculo é, contudo, a falta de tempo, até porque, se ela não impede, dificulta sobremaneira o acompanhamento do curso. O tempo, que para muitos é dinheiro, é escasso; faltam aos estudantes tanto um quanto outro.
As estratégias de acompanhamento do curso são inúmeras e frequentemente impróprias: avançar no tempo de sono, estendendo a jornada insone (alunos do período noturno que chegam em casa e continuam estudando ou que realizam os trabalhos das disciplinas nesse horário); deixar de ter "vida social", avançando no tempo de lazer, já exíguo, ou burlando o horário de trabalho para estudar, ter lazer, ou mesmo para tirar xerox dos textos de leitura às escondidas do chefe ou patrão. Esse malabarismo faz dos estudantes mestres em encontrar "brechas" no trabalho, no tempo, na vida, para prosseguir no curso universitário, o qual demonstram, muitas vezes, amar intensamente. São apaixonados - digo sem medo de parecer exagerada - pelo trabalho intelectual, e resistem às adversidades em razão disso. É por esse motivo que, de maneira tão adequada, Heloisa Martins afirma em orelha do livro: "É dessa elite que a universidade pública precisa: a que valoriza o conhecimento de qualidade e se esforça para alcançá-lo".
Para alguns estudantes, a aproximação com a "mítica" da USP os leva a enfrentarem a dura realidade de parcas instalações e recursos, conhecida entre os que frequentam os cursos mais "pobres" da universidade. Ainda distantes, mas em processo de preocupante aproximação, esses problemas fazem lembrá-los daquilo que gostariam de deixar no seu passado educacional: banheiros sujos, instalações e equipamentos precários das escolas públicas que frequentaram, a exemplo do documentário Pro dia nascer feliz, de João Jardim. Não se deve, a meu ver, descartar os efeitos desses aspectos no estímulo e na autoestima do estudante de qualquer nível. O contraste com unidades mais ricas, como a Faculdade de Economia e Administração e o Instituto de Física, constitui mais um indicador da desigualdade do interior da universidade.
Almeida faz por fim a sua discussão sobre a noção de "elite". Na verdade, aponta o uso impróprio do termo, no caso dos alunos da Universidade de São Paulo, chamada pela mídia e por alguns trabalhos acadêmicos pejorativamente de "elitista", no sentido de abrigar, primordialmente, as elites econômicas. O autor desmonta esses argumentos trazendo evidências de que a universidade pública, como espelho da sociedade, não é ocupada nem exclusivamente pela elite [econômica], nem pelos muito pobres, e sim, basicamente, pelos segmentos médios.
É verdade que há aqueles privilegiados,uma classe média "alta"5, com condições de proporcionar melhores colégios ao filhos no período da educação básica. Entretanto, a instituição dá também lugar a uma classe média "remediada", que se priva de certos bens para dar educação aos filhos, e até a uma classe menos privilegiada, na figura dos seus membros, senão mais brilhantes, certamente, os mais persistentes. O pano de fundo dessa crítica, ainda que não explicite o autor, aponta para aqueles que se utilizam desses discursos para pleitear a privatização de universidades públicas, pois elas fariam o papel de um "Robin Hood às avessas", uma vez que tiram recursos dos impostos pagos por uma sociedade "pobre" para custear o ensino da camada "rica".
O autor mostra que esses alunos, sem incentivo, conseguem chegar à universidade e se manter a duras penas. Mas adverte que eles podem usufruir da universidade de maneira muito mais positiva quando recebem apoio na forma de algumas políticas, como, no caso da USP, o oferecimento de moradia estudantil, bolsa-alimentação ou refeições a preços sub-sidiados6 etc. Certa vez, ouvi de um professor da Faculdade de Educação7 a seguinte aposta: "Tenho certeza que o índice de ingresso de alunos de escolas públicas na USP, assim como na Unesp e Unicamp, aumentaria com uma política simples: isenção de taxas de inscrição no vestibular a todas as escolas públicas do Estado de São Paulo". Compartilho da opinião e me parece que o trabalho de Almeida leva a pensar o modo pelo qual os alunos de escolas públicas - mais pobres - são afastados do projeto de concorrer a uma universidade de excelência como a USP e outras públicas, uma vez que se autoexcluem pelas representações sobre as universidades como instituições elitistas, barrados não pelo vestibular, mas antes até dele. O livro leva a olhar, sobretudo, para um segmento importante dos alunos, que poderia usufruir mais das políticas universitárias de permanência se tivesse a orientação adequada por parte da própria universidade, criando condições de formar uma nova e saudável "elite".
Arlene Martinez Ricoldi
Doutoranda em Sociologia pela Universidade
de São Paulo
aricoldi@uol.com.br
1. TODESCHINI, M.; SALOMÃO, A. Um mergulho na nova classe média. Revista Época Negócios, n.33, capa/Economia, 5 nov. 2009; STANISCI, C., OLIVEIRA, E.; SALDANHA, P. A. Classe C com diploma. O Estado de S. Paulo, Cadernos Estadão Edu, p.10-12, 24 nov. 2009.
2. Estamos nos referindo em especial aos cursos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - FFLCH -, a algumas licenciaturas (Física, Matemática, Ciências Exatas) e a outros cursos menos concorridos, como o de Contabilidade. Esse "desprestígio" não quer dizer, necessariamente, que os cursos não sejam bons ou não tenham boa infraestrutura. Alguns participantes da pesquisa elogiam, por exemplo, a estrutura impecável oferecida pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade - FEA - e pelo Instituto de Física - IF. O mesmo não ocorre com outros cursos da FFLCH, no dizer dos entrevistados.
3. O questionário não é muito satisfatório em alternativas nesse sentido, mas a escolha do autor permitiu que fossem selecionados sujeitos com pais que se poderiam chamar "trabalhadores", aqueles que dependem da renda do trabalho para a sobrevivência.
4. Em 2003, foram convocados para matrícula em primeira chamada 9.910 candidatos, conforme o Questionário de avaliação socioeconômica, da Fuvest, 2003 (disponível em: http://www.fuvest.br/scr/qase.asp?anofuv=2003&fase=3&carr=TOT&quest=01&tipo=3&grupo=1. Acesso em: 29 nov. 2009).
5. A discussão do autor sobre elites também tangencia uma discussão sobre "classe", apontando para a inadequação de alguns critérios classificatórios de natureza socioeconômica, como o "Critério de classificação econômica Brasil". Segundo essa classificação, em números de 2006, a classe mais alta, a "A1", se caracterizaria a partir da renda média mensal de R$ 7.793,00.
6. Atualmente, uma refeição no restaurante universitário custa, ao estudante, R$1,90. O preço mantém-se há dez anos.
7. Trata-se do prof. Amaury Cesar de Moraes.
Fundação Carlos Chagas
Nenhum comentário:
Postar um comentário