terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

A MAJESTADE DO XINGU


O bom retiro do Xingu

Berta Waldman

A pergunta que deve ter perseguido o médico sanitarista Moacyr Scliar frente ao desejo de contar a história do também sanitarista Noel Nutels é: como contar essa história? Descartada a opção pelo relato biográfico, experimentada em "Sonhos Tropicais", romance inspirado na vida de Oswaldo Cruz, sobrou-lhe o amplo território ficcional. Mas como armar o romance onde a figura de Nutels tivesse a inserção desejada?
Para evitar tanto a biografia como a vida romanceada, o escritor cria uma solução engenhosa. A história do médico é acompanhada à distância pelo narrador-personagem, a partir do encontro de ambos a bordo do mesmo navio, o Madeira, que os trouxe da Rússia. O narrador ficará preso ao fascínio de Nutels que, desde cedo, se destacava pela coragem, inteligência, espírito de liderança, imaginação e graça. Fugindo da pobreza e dos pogrons, os dois terão destinos muito diferentes, porém enlaçados indissoluvelmente no romance, pois aquele que é grande, vencedor, realizado e aventureiro só tem existência na fala da quele que é pequeno, fracassado e humilde. Mas a questão é: como fazer caber uma história de grandeza num discurso de homem imobilizado e fracassado? A surpresa é que o apagado anti-herói criado por Scliar, que nem nome tem, acaba se tornando um personagem complexo e fascinante.
O romance inicia com o narrador na UTI de um hospital, às voltas com uma cardiopatia, falando com um médico mais interessado em ler os prontuários do paciente do que em ouvir a história de sua vida e a de sua amizade com Noel Nutels. É manca a construção desse "diálogo" que perdurará até o final, já que o médico não fala. O que ele diz fica suposto na fala do narrador. A solidão e a perspectiva da morte dão veracidade à sua fala, ao mesmo tempo em que o uso da linguagem funciona como uma necessidade de simbolizar a própria experiência e, quem sabe, protelar o tempo e a sentença final, à maneira de Sheherazade.
Outra consequência que a fala trará ao relato é que este guardará o tom magmático e movediço do substrato oral, afastado da pose e do ideal de verdade textual única, decorrendo daí um estilo despojado que trabalha a medida do narrador, servindo também de superfície especular da figuração ascencional de Nutels e de linha estruturante de uma narrativa de rara unidade.
O tempo de intersecção das duas vidas dura pouco. Chegados ao Brasil, o pequeno Noel desinteressa-se pelo amigo de viagem, atento para a paisagem e os habitantes do Novo Mundo, sinalizando o olhar para a frente que dará rumo à sua vida, em contraste com o personagem-narrador, cuja vida transcorrerá ancorada no solo repisado do passado, que, no entanto, não permanecerá um ponto estático e imutável.
As famílias de Nutels e do narrador chegam a cogitar de viver juntas, mas a idéia não vinga e, enquanto a primeira transita do Nordeste ao Rio de Janeiro, a segunda se fixa em São Paulo, no Bom Retiro. É no Rio que Noel estudará medicina, participará do grupo "Diretrizes", de Samuel Wainer, se tornará comunista e trabalhará com os índios no Xingu, tornando-se uma personalidade de destaque no país. A morte prematura do pai do narrador impede que o filho estude medicina, selando seu destino de comerciante pacato, numa loja diminuta e empoeirada, "A Majestade".
É ela, entretanto, o espaço físico que servirá de fuga a um casamento insosso e a uma vida familiar magra de afetos. É ali que ele conhece a paixão com a pouco inocente Iracema, marcando-se, com a sugestão intertextual, a inserção dos novos imigrantes na formação da nação brasileira, reproduzindo-se a relação colonizador-colonizado, com a diferença que o novo "colonizador" entra no país pela porta dos fundos, contrabandeando ideologia e tradição renegadas pelo discurso nacionalista da época.
Ao mesmo tempo, como uma sombra que lentamente ganha figuração, uma legião de índios prolifera ao longo do romance. Por exemplo, a aventura com os índios urbanizados, deslocados de seu habitat, mas que se manterão antropófagos ao comerem o braço amputado do pai; ou aqueles que rondarão o subsolo de sua loja como espectros depositados numa sarabanda de ossos, ao final do romance. É ali que ele fabula o silenciamento do major Azevedo, militar da repressão, que ele partilha da amizade da militante Sarita. É ali, ainda, que escreve cartas apócrifas, assinadas por Nutels, a seu filho Zequi, um jovem militante de uma célula de esquerda. Essas cartas falsas endereçadas ao filho, lidas nas reuniões secretas do grupo, acabam dando rumo aos jovens perdidos em meio a uma ditadura cruel, induzindo-os a continuarem a luta. É, enfim, da empoeirada loja do judeu que se monta um painel que recobre várias décadas da história recente do Brasil.
A opção pela mentira inocente não deixa de aludir, ainda que obliquamente, à escolha do autor, que abre mão da "verdade" dos fatos, misturando personagens reais envolvidas em episódios fictícios, e personagens fictícias em episódios acontecidos, privilegiando as soluções em que a imaginação e o sonho falam mais alto. A ausência de todos, da mulher, do filho, que tomam seus destinos, a morte dos pais, de Nutels, confinam o narrador-personagem no desamparo de uma UTI, onde a presença da morte embala uma história em que os que de fato viveram e os que poderiam ter vivido se enlaçam, ligando-se na transitoriedade das coisas do tempo, sem se privilegiar, contudo, o tom melancólico, balanceado pela contraparte humorística, bem ao estilo de Scliar, que não resiste a uma boa piada.
Com a venda da lojinha do narrador a um imigrante coreano, Scliar conta os movimentos das massas de imigrantes que vão fazendo a história do Bom Retiro. Uns se deslocam para dar lugar a outros. Mas a imaginação do protagonista dá um sentido diverso à destituição de seu território. O coreano não era coreano, mas índio, que teria voltado, na época do descobrimento do Brasil, às suas origens, refazendo em sentido inverso a trajetória dos ancestrais que, vindos da Ásia pelo estreito de Bering, haviam chegado à América. Uma vez na Coréia, ele se estabelece, forma família e, de geração em geração, a narrativa da jornada heróica se repete, seguida de um imperativo: algum dia, alguém terá de voltar ao Brasil e recuperar a terra dos indígenas. É claro que, ao contar essa história, o autor está contando também a história da errância dos judeus e sua determinação em se fixar na Terra Santa. E a referência à guerra pelo território reforça a indicação.
O deslocamento que o autor promove leva a refletir a questão de diferentes ângulos. Primeiro, ele descentra os judeus como sendo o povo eleito a quem cabe a Terra Prometida, já que os índios, grupo minoritário, se colocam em posição análoga e também reivindicam a terra de seus ancestrais. Segundo, a guerra por territórios que assola o Oriente Médio é movida por povos diferentes, mas por motivação idêntica. Terceiro, o autor, judeu brasileiro, equaciona um problema que é originalmente judaico, em termos nacionais, ao localizar a diáspora dos índios em extinção. Essa homologia aparece no caso amoroso do protagonista com Iracema, na identificação do judeu Nutels e no envolvimento de Sarita com os índios etc., engrossando o caldo até a criação da metáfora "A Majestade do Xingu", quando o protagonista resolve, em homenagem ao amigo, transportar sua lojinha do Bom Retiro ao Xingu. Nessa operação, ele transporta Noel Nutels, Isaac Babel, os cossacos, seus pais, sua família, todos os judeus que aqui aportaram, ao coração do Brasil, confundindo e integrando as partes, o pequeno e o grande, o judeu e o índio, o herói e o anti-herói, como solução histórica e mágica do convívio de etnias e, num outro nível, como sonho utópico de integração universal, onde a alteridade deixa de ser sinônimo de exclusão.
Mas essa solução, de certo modo otimista, traz uma contraparte onde o fracasso marca seu sulco, quando se pensa na situação de abandono da população indígena no Brasil, no extermínio de uma etnia, justamente a mais ancestral entre aquelas que compõem a nação brasileira. Essa idéia de fracasso talvez seja extensiva ao destino dos judeus da diáspora, também eles fadados a se diluírem na nação em que vivem.
Mas é como judeu, num pogrom particular, que o narrador se vê, em sonho, morrendo. E é também de um lugar intervalar, na intersecção da tradição judaica com a cultura brasileira, que emana esse texto enigmático e tão cheio de sugestões e sentidos de Moacyr Scliar. Equilibrando-se no meio-fio, e longe de esclarecer o enigma, "A Majestade do Xingu" se constrói como uma resposta à sua própria pergunta, oferecendo-se à leitura como um campo aberto de questões.
Berta Waldman é professora de teoria literária da USP e da Universidade de Campinas (Unicamp) e autora de "A Paixão Segundo C.L." (Escuta).

Folha de São Paulo

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