terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A PAIXÃO PELO REAL - PASOLINI E A CRÍTICA LITERÁRIA


Um profeta da realidade

João Silvério Trevisan
CRÍTICA LITERÁRIA; PIER PAOLO PASOLINI; MARIA BETÂNIA AMOROSO /AUTORA/; A PAIXÃO PELO REAL - PASOLINI E A CRÍTICA LITERÁRIA

Muito frequentemente, o problema dos textos universitários (sejam eles teses ou obras didáticas especializadas) é seu difícil contato com a realidade contextual: a que público se dirigem, fora dos muros da universidade. Claro, pode-se dizer que existem múltiplas realidades, dependendo dos diferentes pontos de vista que as abordam. Um livro como este, de Maria Betânia Amoroso, professora de literatura italiana na Unicamp, certamente está de acordo com a realidade universitária, pelo rigor da pesquisa. Mas conviria perguntar qual sua relação com a realidade mais abrangente do Brasil.
Trata-se de um estudo sobre as resenhas literárias de Pier Paolo Pasolini, reunidas no pouco conhecido livro "Descrizioni di Descrizioni". Em toda a vasta obra do poeta, ficcionista, cineasta, ensaísta e crítico Pasolini, o ponto de partida é sempre a relação entre a criação e a realidade. Ora, o problema para o leitor brasileiro é que Pasolini falava de uma realidade específica: a italiana, sobretudo das décadas de 60 e 70. Isso se torna ainda mais crucial quando se constata que nem esse livro de Pasolini, nem boa parte das obras nele resenhadas, tiveram tradução em português. Assim, a discussão sobre o conceito de realidade torna-se intrincada porque passa por vários afunilamentos, antes de chegar ao leitor de um modo minimamente compreensível.
Seria fundamental perguntar de que realidade se trata. No entanto, a autora despende boa parte da obra especificando as correntes da crítica italiana anterior e contemporânea a Pasolini e só vai tentar uma definição de realidade num dos capítulos finais, ainda assim deslocando o conceito para o cinema. E conclui, citando Pasolini, que as regras da realidade repetem as regras da vida, ou seja, criam uma ilusão. Isso quer dizer que os termos da questão básica do livro ficam bastante incompletos, quando não inadequados, tornando sua leitura frequentemente muito árida.
Esse óbice, ainda que essencial, não impede que o leitor se aproxime de um dos intelectuais mais fascinantes do nosso tempo. Pasolini atacava duramente a crítica universitária, que considerava formalista e redutora, principalmente nas suas vertentes estruturalista e pós-estruturalista, fundadas em certezas metodológicas que a seu ver esterilizavam a obra de arte. Agora, é no mínimo curioso constatar que essa mesma universidade venha se debruçar sobre sua obra. Não importa se isso resulta de um gesto cooptador ou evidencia real inserção na contemporaneidade. O certo é que, com uma abordagem sempre rica em informações e nada reducionista, "A Paixão Pelo Real" cria um proveitoso diálogo entre Pasolini e a universidade.
Apesar das eventuais tentações de classificação burocratizante, vai-se traçando um quadro revelador da figura histórica de Pasolini, dentro da perspectiva de intelectual militante em que vida e obra se misturavam. Para tanto, estabelece-se uma fascinante rede de "diálogos" entre Pasolini e os intelectuais italianos, que o analisaram muitas vezes duramente, enquanto vivo e depois de morto. Assim, Franco Fortini, amigo e depois adversário intelectual de Pasolini, chama-o de perturbado mental que se fixou na infância e por isso vê o mundo pelas lentes de uma fantasia paradisíaca, fundada num quadro histórico regressivo.
Tais críticas revelam o Pasolini polemista plural, corajoso, comprometido e solitário, descobrindo nichos político-culturais em desacordo com a média dos seus contemporâneos. Elas são evidências do esforço de Pasolini em manter vida e criação no território da ambiguidade. Assim, cantava a tradição para integrá-la à modernidade, denunciava "avant la lettre" os riscos da globalização no capitalismo avançado, criticava a esterilidade da vanguarda, denunciava a falsa cultura da mídia, chocava-se de frente com o feminismo, abria fogo contra o movimento estudantil tanto quanto a esquerda ortodoxa e odiava autores de cunho político imediatista, como o recente Prêmio Nobel Dario Fo. Não por acaso, Pasolini transformou em problema filosófico de importância um tema que a esquerda de 68 usava como varinha mágica simplista: a realidade. Ao contrário, para Pasolini o compromisso com a realidade fundamentava todos os paradoxos da poesia. Não há fronteira clara entre o real e o simbólico. Em seu pensamento, digladiam-se o tempo mítico e o tempo histórico, numa contradição que ele pretendia manter viva como a própria realidade.
Se este livro parece ser de interesse muito restrito a exegetas de Pasolini ou estudiosos da língua de Dante, trata-se antes de tudo de um título bem-vindo no espaço rarefeito que o mercado editorial brasileiro outorga à literatura italiana. Por outro lado, num momento em que, reafirmando a antevisão pasoliniana, a crítica literária tornou-se mero apêndice do jornalismo cultural mais apressado, é reconfortante tomar contato com uma reflexão que, já nos anos 70, propunha a crítica literária como parte da antropologia. Se recordar faz parte da ilusão de viver, nunca é demais resgatar a memória dos profetas para indagar a realidade.
João Silvério Trevisan é autor de "Seis Balas num Só Buraco - A Crise do Masculino" (Record).

Folha de São Paulo

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