quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

MECENAS E PINTORES - ARTE E SOCIEDADE NA ITÁLIA BARROCA

O palco dos mecenas
11/Jul/98
João Masao Kamita

FRANCIS HASKELL
Se Florença foi o maior pólo cultural do Renascimento, Roma foi sem dúvida a capital do barroco italiano. Reassumindo-se como o centro do mundo católico, a cidade empreende, ao final do século 16, um ambicioso programa de reconstrução, cujas maiores realizações são a reforma urbanística de Sisto 5º e a construção da basílica de São Pedro. A partir daí, a cidade se torna o centro de todas as atenções, atraindo os maiores artistas da Itália e da Europa. É o período das grandes realizações romanas de Bernini, Borromini, Pietro de Cortona, mas por lá também passam Poussin, Rubens, Claude Lorrain e Velázquez.
Essa Roma de notáveis realizações e grandes artistas também é o palco de grandes mecenas. Enfim, é o espaço privilegiado para Francis Haskell iniciar suas investigações sobre as circunstâncias e o contexto social no qual eram produzidas as obras de arte durante o período barroco. "Mecenas e Pintores Arte e Sociedade na Itália Barroca" é um estudo exaustivo, detalhado e rigorosamente bem documentado sobre o ambiente artístico da Itália dos séculos 17 e 18.
O primeiro capítulo de "Mecenas e Pintores" é dedicado à Roma dos papas, no seu período de maior glória; o segundo, já em meados do século 17, focaliza a decadência do mecenato oficial da igreja, quando as encomendas passam progressivamente a ser assumidas por estrangeiros; o último se centra em Veneza, quando esta se torna, no início do século seguinte, a escola artística mais respeitada e requisitada da Itália.
O sistema de mecenato vigente, tal como o descreve Haskell, era um sistema extremamente personalista, funcionando à base de favorecimentos, privilégios e lealdades. O artista devia ao mecenas as oportunidades de trabalho e a sua introdução num circulo social de futuros clientes; em troca, o mecenas exigia exclusividade e dedicação.
Dentre os tipos apresentados no ambiente romano, figuram o papa Urbano 7º, o maior dos mecenas do século, autoridades eclesiásticas, ordens religiosas, famílias nobres e diplomatas estrangeiros que residiam em Roma. Embora houvesse um mercado informal de gêneros menores (pintura de paisagens e cenas do cotidiano), dominavam as obras de vulto, como a construção e decoração de igrejas, capelas, túmulos e palácios privados, notabilizando o barroco romano pela monumentalidade e exuberância plásticas.
Em Veneza, os mecenas eram predominantemente aristocratas (a igreja tinha pouca presença). Apesar do cosmopolitismo da cidade, o período áureo da escola artística veneziana, representada por Tiepolo e Canaletto, coincide com o momento de decadência comercial -sentimento que de certo modo é compensado por um desejo de glorificação das tradições históricas da cidade, o que explica a preferência da aristocracia pelas pinturas históricas e pela retratística.
Porém, a qualidade marcante que, segundo Haskell, diferencia os vários personagens descritos no livro é a erudição -os mecenas eram profundos amantes das artes e das ciências, e seus gostos e preferências eram a mais clara demonstração de sua cultura. Mais do que meros solicitantes, os mecenas eram, na realidade, interlocutores culturais dos artistas, a ponto de exercerem papel decisivo na formação do gosto e do estilo da época.
Esta é, de fato, a tese de Haskell, ainda que nem sempre a influência desses homens altamente instruídos se processasse num sentido exclusivamente positivo -por exemplo, mediante o incentivo e as oportunidades dadas, caso notório dos artistas preferidos da corte papal: Bernini e Pietro de Cortona. Em algumas situações, o gosto culto desses homens provocava efeitos opostos. Segundo Haskell, foi o que se deu com Salvador Rosa, com Giuseppe Crespi e com o último Canaletto, que teriam refreado suas poéticas em função das pressões temáticas, estilísticas ou mesmo do próprio mercado. Tanto um caso quanto o outro, contudo, são argumentos empregados justamente para reforçar a tese do autor.
A publicação de "Mecenas e Pintores", independente de qualquer consideração prévia, merece desde logo destaque, dada a carência no Brasil de traduções de temas da história da arte, especialmente de um período como o barroco, com o qual temos aliás particular afinidade. No entanto, há problemas conceituais no livro que não podem ser desconsiderados.
Haskell declara no prefácio que -para evitar generalizações conceituais (quer de cunho marxista, quer formalista) que explicassem, a priori, a relação entre arte e sociedade- procurou adotar um ponto de vista severamente empírico. Ou seja, optou por um tratamento "objetivo" dos fatos, ancorando-se num vasto suporte documental. Assim, o sistema de mecenato é apresentado em todas as suas variantes possíveis (mecenas eclesiásticos, institucionais, nobres, burgueses, estrangeiros etc). Levando-se em conta que o mesmo procedimento é aplicado sobre dois objetos diferentes -Roma e Veneza-, o texto, que a princípio flui pela novidade informativa, logo se torna repetitivo.
Haskell se abstém de interpretar os fatos, preferindo apresentá-los, como se isso garantisse sua maior inteligibilidade. O resultado é um trabalho extensíssimo, mas apenas panorâmico, uma vez que os diversos itens apresentados não ultrapassam a condição de partes independentes: o único elo conceitual a uni-los é o tema do mecenato. O imprescindível exercício de erudição, necessário a uma análise interpretativa dos fatos, não se concretiza.
Afinal, obviamente, a exuberância plástica do barroco romano não se deve meramente ao surto construtivo ocorrido, nem resulta do gosto erudito e exibicionista de uma certa aristocracia no poder. Tampouco os aspectos laico e decorativo da arte veneziana podem ser reduzidos a puro reflexo da frivolidade de uma nobreza em declínio. No mínimo, a questão cultural do barroco tem a ver com a reposição do problema da autoridade (quer da igreja, quer do Estado) no mundo e de sua forma de representação -algo que, segundo Argan (1), diz respeito à cultura barroca como um todo, e não apenas à arte.
Além de tal pretensão de "objetividade", o mais questionável em "Mecenas e Pintores" é o fato de seu autor decidir mergulhar tão decididamente no sistema de mecenato e encarar a sua contrapartida, a arte, de um ponto de vista exterior, como se o valor estético não fosse ele próprio um valor histórico. Assim reduzida, a arte aparece como elemento apenas subsidiário a reforçar um certo argumento.
Ora, a hipótese de uma influência substantiva de certo sistema institucional sobre a produção artística, com o intuito de justificar socialmente este sistema, exige em igual medida uma interrogação sobre as poéticas em questão. Ou seja, verificar em que medida esse diálogo efetivamente ocorria no interior da própria produção. No entanto, estranhamente, Haskell não se questiona sobre o valor da arte para aquela sociedade, sobre a eventual identidade ou oposição entre a visão do artista e a ideologia dominante (seja da igreja, seja do Estado) ou sobre o aspecto retórico e persuasivo que a forma barroca assume.
"Mecenas e Pintores", enfim, é um livro que fala muito das atividades dos mecenas da época, descreve copiosamente seus gostos, escolhas e preferências, mas pouco nos diz sobre a arte que tais homens apreciavam.

Nota
1. G.C. Argan, "L'Âge Baroque", Genebra, Skira, 1994.

João Masao Kamita é professor de história da arte e da arquitetura na Pontifícia Universidade Católica (RJ).

Folha de São Paulo

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