terça-feira, 28 de abril de 2009

Vontade de potência


Rosa Maria Dias

a publicação do ensaio de Wolfang Müller-Lauter é seguramente um acontecimento importante para leitores e estudiosos de Nietzsche. Como bem observa Scarlett Marton, na sua apresentação do livro, Müller-Lauter inaugura uma nova vertente interpretativa, distanciando-se de Martin Heidegger e Michel Foucault. Assim, os leitores do filósofo de "Genealogia da Moral", numa outra vereda e com um novo par de óculos (assim diz Marcel Proust), poderão seguir, passo a passo, linha a linha, através de uma investigação clara e rigorosa, a complexa problemática que envolve a afirmação: "O mundo seria vontade de potência e nada além disso".
No sentido de explicitar o que Nietzsche considera como vontade de potência (ou vontade de poder, como o termo é traduzido por Oswaldo Giacóia), Müller-Lauter inicia sua trajetória com uma questão de método: para se compreender o conceito de vontade de potência deve-se fazer uso das anotações de Nietzsche ou é preciso limitar a pesquisa apenas aos textos por ele publicados? Se o objetivo é entender as idéias daquele "que se compreendeu como o mais escondido de todos os ocultos" tudo é importante: o que anotou para si mesmo e o que publicou.
Deve-se fazer ressalvas apenas ao livro "Vontade de Potência", construído por Elizabeth Fõster-Nietzsche a partir de manuscritos de Nietzsche para uma obra futura. Foi apresentado como sua obra principal, mas na verdade somente em parte contribui para o esclarecimento do que Nietzsche entende por vontade de potência. Segundo Müller-Lauter, é questionável a escolha dos fragmentos póstumos que compõem tanto a primeira edição (1901) quanto a segunda (1906). Atualmente o leitor estudioso de Nietzsche pouco precisa desse livro para suas pesquisas, pode ter em mãos a edição crítica das obras de Nietzsche, organizada inicialmente por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, e hoje coordenada e dirigida por Müller-Lauter.
A questão filosófica que motiva a investigação de Müller-Lauter é a problemática da vontade de potência, inicialmente despertada, como ele mesmo revela, por indicação de Gilles Deleuze, mas elaborada para contrapor-se à interpretação de Heidegger. Este filósofo, nos dois volumes consagrados a Nietzsche, que reúnem os cursos de 1936 a 1940, assim como os desenvolvimentos anexos de 1940 a 1946, analisa o conceito de vontade de potência, inseparável, para ele, do conceito de eterno retorno do mesmo, nos "Fragmentos Póstumos" da edição canônica das obras de Nietzsche, e atribui à filosofia dele uma significação particular na história da metafísica -interpreta-a como momento de "completude da metafísica ocidental".
Ao efetuar a inversão da metafísica, Nietzsche teria esgotado todas as possibilidades de sua operacionalidade. Assim, para Heidegger, Nietzsche seria "o último grande metafísico". Ao fazer a inversão do platonismo, ao considerar como ilusório o mundo supra-sensível e ao pôr em evidência o mundo sensível, teria levado a metafísica até suas últimas consequências, mas caído na cilada da própria metafísica, sem poder dela se separar. A mera inversão do platonismo não lhe teria permitido ultrapassar a metafísica, concebida como ciência do ente, para aceder ao verdadeiro conhecimento do Ser. Com isso, Nietzsche pertenceria ainda a uma tradição que, por não fazer a pergunta pelo Ser, se encerraria na órbita do ser e do ente.
Para Müller-Lauter, Heidegger não faz justiça a Nietzsche, insistente crítico da metafísica, ao afirmar que sua filosofia pergunta pelo fundamento do ente no sentido da metafísica tradicional. Essa concepção de Heidegger poderia fazer algum sentido, segundo Müller-Lauter, quando Nietzsche pensa, por exemplo, a doutrina do eterno retorno como "extrema aproximação de um mundo do vir-a-ser com o do ser", mas esse aspecto não é para ser generalizado, já que todo o percurso de Nietzsche parece ter a intenção clara de provocar a dissolução da metafísica a partir dela mesma.
É importante notar que, embora a interpretação de Müller-Lauter contradiga a de Heidegger, em nenhum momento ele pretende excluir Nietzsche da história da metafísica, entendida por ele de modo mais abrangente e mais elevado, como sendo "o perguntar pelo ente em sua totalidade e enquanto tal", nem ser contrário a um esforço de Heidegger por um "ultrapassamento da metafísica tradicional". Segundo ele, todo o pensamento de Heidegger nessa direção foi impulsionado pela maneira de pensar do próprio Nietzsche.
A análise de Müller-Lauter do conceito de vontade de potência mostra, portanto, como por detrás da afirmação de Nietzsche, aparentemente tão simples, "o mundo é vontade de potência -e nada além disso", se encontra uma complexa problemática construída com o objetivo de demolir os pilares que sustentam a metafísica tradicional: "a unidade, a identidade, a duração, a substância, a causa, a coisidade e o ser".
Rosa Maria Dias é professora do departamento de filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autora de "Nietzsche Educador" (Scipione) e "Nietzsche e a Música" (Imago).

Folha de São Paulo

Um filósofo político?


Thelma L. Da Fonseca

Há temas, dignos e relevantes, que não podem ser tacitamente atribuídos a um autor, por não serem evidentes no conjunto de sua obra. Isso ocorre quando se quer achar preocupações políticas em certos filósofos. Temos, aqui, um caso exemplar: "Nietzsche Como Pensador Político" parece ser uma idéia a ser expressa primeiramente na forma de uma questão, pois, ao que se sabe, jamais fez parte das intenções explícitas desse autor a construção de um projeto político.
Ao se apresentar com esse título, um livro pode indicar três intenções: abordar os pontos da obra em que o autor se referiu a temas políticos e, para isso, seria necessário apenas recensear os trechos em que o assunto aparece; buscar estabelecer confrontos com a tradição de comentário defensora de uma apropriação política do autor; ou, enfim, defender a tese de que os textos nietzscheanos estão umbilicalmente ligados à questão política, propósito que suporia as duas tarefas anteriores.
Diante do subtítulo, "Uma Introdução", seríamos levados a crer que o objetivo do livro se atém a um rol de referências comentadas, destinado a auxiliar iniciantes. Entretanto, o autor anuncia que não é bem esse o caso: "Nietzsche é um pensador preocupado com o destino da política no mundo moderno. Basta passar os olhos em suas abrangentes preocupações (...) para se compreender que ele é primeira e primordialmente um pensador 'político'±". Com essa posição, Ansell-Pearson se distingue da grande maioria dos comentadores anglo-saxões de Nietzsche, que, frequentemente, costuma privilegiar os temas relacionados à linguagem e ao conhecimento.
Enquanto muitos desses comentadores tomam como evidente o fato de que Nietzsche tenha formulado uma "teoria do conhecimento", Ansell-Pearson apresenta sua abordagem como uma via diferenciada: "O consenso que se manteve dominante por várias décadas (...) foi de que Nietzsche não era de modo algum um pensador político". A cautela diante da problematicidade do tema escolhido, já manifestada, pode ser lida como indicação de que se trata de uma tese.
O capítulo três, entre outros, traz intuições instigantes. Ora, todos conhecem o teor da disputa de Nietzsche com Platão, bem como as ambiguidades desta, expostas por diversos autores (como Heidegger). Sabe-se, também, da acusação dirigida a Nietzsche por não ter se decidido entre o terreno da arte e o da filosofia (Habermas, por exemplo). Diante dessas críticas, Ansell-Pearson esboça outro caminho, pois, em vez de encontrar nele um simples antípoda não consumado da filosofia platônica ou um poeta não convicto, entende que "o problema de Platão, para Nietzsche, é que ele não conseguiu reconhecer a base artística da própria filosofia e apresentou-a como verdade eterna e objetiva. Para Nietzsche, tal verdade é uma ilusão; o que o artista ou poeta faz é inventar um mundo 'verdadeiro'. Na política, contudo, pode ser necessário disfarçar a produção artística da verdade de modo a dar a aparência, a ilusão, de uma ordem natural das coisas".
E, no momento em que se pergunta pelo sentido atribuído ao termo "política", começa a se diluir a impressão de que o livro sabe afastar-se da tentação de se apoiar em um suposto "common sense". Isso porque o texto prossegue com citações de Nietzsche e de autores que reivindicam sua herança (Thomas Mann, Camus, entre outros), até chegar ao capítulo quatro, em que "política" é aproximada à idéia de "um novo modo de filosofar histórico", o que é vago. Aí, sua crítica à modernidade é confrontada (não pela primeira vez) com as de Hobbes, Locke e Rousseau, e é legada ao leitor a tarefa de extrair, pela negação, aquilo que Nietzsche, ou o próprio comentador, estaria entendendo por "política".
Ansell-Pearson não deixa dúvidas sobre sua intenção de apartar Nietzsche das tendências liberais (ver sua leitura do aforismo 472 de "Humano, Demasiado Humano"). Entretanto, o que se está supondo como definição de "política" não é, ainda, esclarecido. Resta, pois, a expectativa de que, ao cabo de tantos confrontos e citações, seja extraída do próprio Nietzsche uma chave para essa inquietação. É, então, que se desenha um Nietzsche que, ao recusar também o socialismo, "apoia sua crença no governo aristocrático recorrendo a sua noção da vida como vontade de poder, que ele postula sob o aspecto de uma lei da natureza". Essa política seria exercida por um "indivíduo soberano", identificado por Ansell-Pearson como aquele capaz de fazer promessas mencionado na segunda dissertação da "Genelogia da Moral". Ora, segundo a mesma dissertação, o prometer exclui o esquecimento, supõe uma vontade adestrada e é excludente em relação a toda criação. Bem, de que maneira esses fatores poderiam ser constituintes da "grande política", a "única política patente ou explícita que é possível associar a Nietzsche"?
Contornando esses e outros paradoxos, Pearson conclui haver dimensões "reacionárias" e "positivas" nas posições políticas de Nietzsche, o que não parece acrescentar muito aos dados iniciais, sobretudo porque continua como uma incógnita o referencial desses adjetivos.
Os últimos anos conheceram um "boom" de publicações sobre Nietzsche em inglês. Grande parte parece sofrer de um fenômeno que se poderia denominar "contaminação": interpretações de trechos e de conceitos são pressupostas, de modo que o leitor não filiado a essa recente tradição se sente excluído por uma leitura esotérica. Se "Nietzsche Como Pensador Político" se destaca da grande maioria delas em virtude do tema eleito, ainda assim parece carecer do distanciamento necessário para discriminar a tese e a paráfrase. Deste modo, é prudente atentar para o subtítulo e não esperar do livro mais do que uma introdução.
Thelma Lessa da Fonseca é professora do departamento de filosofia da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Folha de São Paulo

Recepções de Nietzsche


Scarlett Marton
Até setembro de 1888, Nietzsche permanecia praticamente desconhecido. Três meses depois, mergulhava nas trevas do enlouquecimento e sua obra vinha à luz. Com o tempo, multiplicaram-se os trabalhos a respeito de suas idéias. Em 1971, a "International Nietzsche Bibliography" registrava cerca de 5.300 títulos, entre livros e ensaios, em diversas línguas: alemão, inglês, francês, italiano, espanhol e português, além de japonês, finlandês e grego.
Quem se disporia, então, a reunir num único volume artigos sobre o filósofo assinados por vários autores? E com que objetivo se entregaria a essa tarefa, se nenhum deles fosse inédito? Em 1980, Jõrg Salaquarda não hesita em tomar tal iniciativa. Agora, acaba de lançar a segunda edição da coletânea de 15 trabalhos intitulada "Nietzsche", que organizou.
É um objetivo aparentemente modesto que Salaquarda persegue. Quer oferecer ao leitor uma visão de conjunto da pesquisa filosófica em torno do pensamento nietzschiano, enfatizando as principais linhas por ela desenvolvidas. Ao eleger textos originalmente publicados na Alemanha, na França e nos EUA entre 1950 e o final dos anos 70, almeja apresentar uma seleção desse período que seja antes de tudo representativa. Por isso mesmo, adota como critério de escolha dos trabalhos que compõem o volume a importância objetiva que possuem, a extensão de efeitos que provocam, as tendências específicas que expressam.
Autor de diversos artigos sobre Schopenhauer e Nietzsche, co-editor dos "Nietzsche-Studien" e professor de filosofia junto à Universidade de Viena, Salaquarda propõe na coletânea que organiza diferentes interpretações, leituras diversas da obra do filósofo. E presenteia o leitor com a máxima diversidade, diversidade de temas, abordagens, perspectivas. Muito se engana, pois, quem supõe que os textos se achem apenas justapostos. Apresentando múltiplas perspectivas, eles se cruzam e entrecruzam em incessante diálogo.
Heidegger e Jaspers procuram fazer de Nietzsche o representante de determinadas espécies de filosofar; Camus e Bataille realçam o aspecto sobretudo crítico de suas idéias. Se Heidegger entende que o filósofo é o último metafísico, Jaspers julga que ele é o pensador existencial "par excellence". Por outro lado, enquanto Jaspers busca inscrevê-lo na história da filosofia, Josef Simon espera investigar sua relação com a tradição metafísica. Kaufmann, por sua vez, examina a posição que Nietzsche assume face a Sócrates e o próprio Salaquarda analisa sua atitude para com o apóstolo Paulo. Em contrapartida, enquanto Simon explora a questão da verdade no contexto da crítica à linguagem, Alfred Schmidt quer investigá-la no quadro da teoria do conhecimento.
Temas como a vontade de potência e o eterno retorno do mesmo são objeto de trabalhos instigantes que apontam em diferentes direções. Heidegger considera que a vontade de potência designa o ser do ente enquanto tal, sua essência, e o eterno retorno do mesmo exprime a maneira pela qual o ente é, em totalidade, sua existência. Em seu ensaio "A Doutrina de Vontade de Potência em Nietzsche", Müller-Lauter entende, contrapondo-se a Heidegger, que a reflexão nietzscheana exclui a pergunta pelo ente, no sentido da metafísica tradicional. Para tanto, a cada passo do texto, destitui a concepção de vontade de potência das conotações com que os intérpretes a carregaram: unicidade, permanência, substancialidade, fixidez, universalidade. Bernd Magnus, por fim, julga que, em vez de tese metafísica, a doutrina do eterno retorno constitui um "imperativo existencial"; sua veracidade real ou possível desempenha apenas um papel heurístico. Exemplificando a atitude necessária para superar o niilismo, a atitude que se opõe à decadência e ao declínio, ela exprime a afirmação da vida ascendente.
A escolha dos textos que Salaquarda reúne em seu "Nietzsche" também documenta controvérsias. Assim é que, em "A Ariadne de Nietzsche", Podach polemiza com Heidegger e os que seguem a sua interpretação. E, no artigo "Os Limites da Elucidação Psicológica de Nietzsche", Heftrich questiona a metodologia adotada por Podach. Por outro lado, enquanto Lukács pretende apresentar "Nietzsche enquanto fundador do irracionalismo do período imperialista", Bataille espera desfazer o equívoco que ligou o seu nome ao de Hitler.
Avaliando a importância dos fragmentos póstumos para a compreensão da filosofia nietzscheana, Mazzino Montinari e Karl Schlechta discutem, a partir de diferentes pontos de vista, as formas de editá-los. Em 1954, Schlechta levara a termo uma edição das obras de Nietzsche em três volumes, limitando-se a divulgar pequeno número de inéditos. Nos anos 70, ao lado de Giorgio Colli, Montinari organizou uma edição crítica das obras completas do filósofo, ordenando e publicando os póstumos, na íntegra, de acordo com a cronologia original.
O organizador acrescenta, ainda, extensa e pormenorizada bibliografia, que distribui em torno de diferentes itens: edições das obras de Nietzsche, incluindo as cartas e os trabalhos musicais; biografias do filósofo; periódicos, coleções e coletâneas acerca de seu pensamento; apresentações gerais de sua filosofia; monografias e ensaios sobre problemas específicos de sua obra. Para a segunda edição do livro, agrega as referências bibliográficas dos textos que apareceram nos últimos 15 anos em torno do pensamento nietzscheano, suprindo em parte a lacuna deixada pela "International Nietzsche Bibliography". E, em cuidadoso posfácio, examina o estado atual dos estudos acerca do filósofo. Este esforço bastaria, sem dúvida, para fazer deste trabalho importante fonte de informação.
Contudo, bem mais que obra de referência ou coletânea de artigos, o livro organizado por Jõrg Salaquarda espelha quase 30 anos da pesquisa filosófica em torno de Nietzsche. Constitui assim importante capítulo da história mesma da recepção deste filósofo sempre controvertido e jamais esquecido.
Scarlett Marton é professora do departamento de filosofia da USP e autora de vários livros sobre Nietzsche.

Folha de São Paulo

ARQUITETURA GREGA E ROMANA


O detalhe essencial
Luiz Marques

Este clássico de Robertson, "Arquitetura Grega e Romana", foi publicado em 1928 e reeditado com revisões importantes em 1940. Obviamente, desde então, assistiu-se a um enorme desenvolvimento dos estudos no âmbito da arqueologia clássica e da história da arte antiga, de tal maneira que aspectos pontuais da exposição sem dúvida terão sido problematizados pela erudição recente. Tal circunstância não afeta contudo substancialmente a atualidade da obra, que permanece uma das mais sólidas referências e um dos mais indispensáveis manuais em arqueologia e história da arte antiga.
Seu objetivo "é expor de maneira sucinta, mas clara, os principais fatos da história da arquitetura grega, etrusca e romana, dos tempos mais remotos à fundação de Constantinopla, até onde são conhecidos hoje". Passemos este "até onde são conhecidos hoje", anglicismo que está provavelmente por algo como: "Conforme podemos atualmente conhecê-los". O importante é notar como a obra se justifica, definindo com segurança a envergadura de sua missão. E, ao longo das mais de 500 páginas do livro, o objetivo é alcançado com um rigor e uma simplicidade bastante típicos da grande tradição britânica de divulgação científica.
Qual é o segredo do sucesso de Robertson? Para responder a questão façamos uma pequena digressão. O manual é um tipo muito peculiar de organização do material histórico. A exposição aqui flui placidamente, mas esta placidez oculta opções dramáticas do autor, resulta de batalhas cruentas e, finalmente, de compromissos engenhosos, entre a insaciável ebriedade da erudição e a sobriedade estóica da síntese seletiva. A grande dificuldade do compêndio reside justamente no fato de que não existe uma substância contrastante que, aplicada ao material histórico, permite distinguir com objetividade o que é essencial e o que é secundário. Este contraste, em primeiro lugar, depende de uma hierarquização elaborada pelo próprio autor, a partir de seu próprio universo intelectual, e isto em medida muito maior do que presume a leda crença num consolidado consenso historiográfico.
Em segundo lugar, a separação do essencial e do secundário é tanto mais difícil porque o essencial em história não é de uma matéria diferente da que é feita o detalhe. Se, como se tornou moda afirmar depois que Aby Warburg foi transformado em best seller por Carlo Guinsburg, "Deus está no detalhe", então a tarefa do historiador da arte, do arqueólogo, do historiador "tout court", não é tanto a de separar o joio do trigo, mas a de saber enxergar no joio, na história pulverizada da erudição, a presença latente da significação, do fato gerador de sentido. A grandeza da gesta histórica da arquitetura antiga só se revela no monumento arquitetônico, e a grandeza deste só se revela frequentemente no exame detido e minucioso de um aspecto aparentemente secundário (quanto cresce o Partenon, por exemplo, em nossa admiração ao compreendermos o subterfúgio mediante o qual seus arquitetos obtiveram o efeito eurítmico de sua colunata!).
Em terceiro lugar, finalmente, é no mais das vezes impossível trazer adequadamente à luz a densidade significativa do pormenor, a importância geral de uma partícula do material histórico, sem recorrer à tecnicalidade da linguagem na qual uma questão pontual foi formulada. Insiste-se com acerto no fato que a linguagem na qual a ciência contemporânea "pensa" tornou-se aos poucos em certa medida intraduzível em linguagens não formalizáveis, o que levanta de resto uma nova e curiosa barreira entre o saber e a cultura. Em ciências humanas, em história da arte, por exemplo, esta alteridade entre o especialista e o "honnête homme" não é obviamente tão intransponível e provavelmente não o será jamais. Ela não deixa entretanto de subsistir e de resistir crescentemente a toda tentativa de comunicação com o "profano".
Subjetividade controlada da hierarquização dos fatos históricos, revelação da dimensão geral do fato menor, formulação de uma estratégia linguística que permita comunicar um saber necessariamente especializado -Robertson deixa entrever no prefácio à primeira edição a vivência destas três dificuldades: "Ao lidar com este vasto tema, meu esforço foi o de manter o texto básico livre de detalhes capazes de confundir o leitor e dirigir a atenção para questões essenciais". Mas sua evidente serenidade ao enfrentar a tarefa e levá-la a bom porto não depende aparentemente tanto de uma excepcional habilidade metodológica, quanto de uma consciência positiva e feliz de que as premissas metodológicas não são rigorosamente premissas, de vez que emanam "naturalmente" da frequentação aprofundada do objeto.
Não é ceder excessivamente à tentação do estereótipo reiterar que esta sorte de bom senso seja algo peculiar a uma tradição historiográfica propriamente britânica. Não é por acaso que o compêndio histórico atingiu na língua inglesa, senão suas formas mais monumentais (troféu indisputado da historiografia alemã), ao menos sua forma mais acabada. Uma das qualidades imediatamente sensíveis da obra de Robertson é, neste sentido, a elegância, isto é, sua capacidade de moldar em 500 páginas mais de um milênio de história de três das civilizações arquitetônicas maiores do Mediterrâneo.
A questão da elegância histórica remete-nos a um aspecto importante da obra aqui examinada, e que diz menos respeito ao valor de verdade de seus enunciados (interrogação a que, como é o caso, um resenhista não especializado não estaria habilitado a dar resposta digna de crédito) que ao valor intrínseco de sua forma. Poder-se-ia indagar se o que justifica a tradução de uma obra de síntese concebida a partir do "estado da arte" da historiografia em 1928 não é justamente o fato de que é entre o último terço do século 19 e o primeiro terço do nosso século que a arte da síntese histórica alcançou sua máxima eficiência, enquanto projeto intelectual, enquanto forma de saber.
Robertson pertence plenamente à geração dos grandes historiadores anteriores às inquietações metodológicas sobrevindas com a crise do positivismo, com as abordagens meta-históricas dos "Annales". E, ainda que a historiografia inglesa tenha permanecido relativamente indiferente ao criticismo daí oriundo, é evidente que as genuínas tentativas de síntese e de introdução geral escassearam desde o pós-guerra, perdendo com frequência seu caráter acadêmico ou transformando-se em ensaios de interpretação de um grande período histórico, ou ainda em mosaicos de artigos especializados abordando diferentes aspectos de uma temática global, ou enfim (o que é menos inglês) em sanguinários ajustes de contas metodológicos com a consciência historiográfica imediatamente anterior. Daí a importância da tradução entre nós de um verdadeiro compêndio como o que aqui se noticia. Importância que não se resume à sua evidente utilidade para os estudantes e para a demanda de informação do homem cultivado, pois que é também uma bela oportunidade de dar a conhecer uma forma clássica, por assim dizer já histórica, da historiografia: a forma compêndio.
Naturalmente, alguns dos critérios estratégicos assumidos pelo autor seriam sem dúvida hoje mais discutíveis do que pareciam no início do século. Organizar a exposição a partir da evolução dos estilos dórico, jônico e coríntio com toda a probabilidade não pareceria a melhor opção para o arqueólogo e/ou historiador atual. Discutir as transformações da arquitetura sacra vinculando insuficientemente a dinâmica de sua morfologia aos aspectos antropológicos e filosóficos da religião grega, bem como ao mítico imaginário da "polis", ao menos no caso grego, não satisfará igualmente uma certa expectativa contemporânea.
Nunca é supérfluo repetir que não se pode requerer de uma abordagem, de uma perspectiva de inteligência dos fenômenos histórico-artísticos, algo que tal perspectiva não se propõe como questão. A obra de Robertson, se não pode ser atual para o leitor que a aborda a uma distância de quase 70 anos, não é menos por isso, necessária.
Luiz Marques é professor de história da arte na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Folha de São Paulo

A ELOQUÊNCIA DOS SÍMBOLOS


O espelho das épocas

Victor Knoll

Ao acompanhar a orientação de Aby Warburg, defendendo a posição que podemos chamar de "culturalista" para a interpretação das obras de arte e dos nexos entre os segmentos históricos, Edgar Wind se opôs ao formalismo de Riegl, o qual logo em seguida foi assumido por Woelfflin.
Riegl estabeleceu o conceito de "Kunstwollen", "vontade de arte", que ganha melhor tradução pela expressão "vontade formativa", pois explicita de modo mais próprio o sentido ali cunhado. Trata-se de compreender as variações de estilo ao longo da história, recusando as explicações derivadas de materiais e técnicas, em função de um "impulso estético" aliado a um desejo inato de mudança -uma vontade formativa. Solidária desta orientação, de modo geral, a principal preocupação de Woelfflin esteve voltada para a análise estilística. A evolução dos estilos se dá em função da mudança de esquemas visuais como, por exemplo, do linear para o pictórico. O estilo é reconhecido por Woelfflin como um valor em si; graças a este dispositivo, a história da arte pode então ser vista como uma disciplina independente, isto é, que não necessita recorrer às informações provenientes de outras disciplinas -basta "a visão pura".
Contra esse "esteticismo" -que nas últimas décadas do século 19 teve grande presença na Alemanha- já houvera se levantado Aby Warburg, em cuja pista irá se desenrolar a atividade teórica e crítica de Edgar Wind. A grande preocupação de Warburg foi a de pensar as obras de arte não em termos de valores formais, mas inseridas no leque dos acontecimentos da época, seja no que diz respeito aos aspectos materiais da sociedade, seja pela avaliação da produção intelectual. Ao comentar os propósitos do Instituto Warburg quando de sua criação, assim Panofsky exprimiu a postura metodológica de seu patrono: a eliminação das fronteiras entre o desenvolvimento histórico da arte, das religiões, dos cultos, das superstições, da ciência e da literatura.
"A Eloquência dos Símbolos", uma compilação de artigos, aulas e comunicações, cobrindo a atividade de Edgar Wind de 1930 até 1971, é um eloquente exemplo do modo como assumiu as premissas de Warburg e de como sua crítica de determinadas teorias -como a concepção platônica de arte e sua reedição no Renascimento- e de pontuadas obras de arte expandiu as convicções do mestre. Estamos diante de uma repulsa ao que Victor Cousin chamou pela expressão "arte pela arte"; o artista e suas obras não habitam esse lugar que Sainte-Beuve chamou de "Torre de Marfim".
A formação de Edgar Wind, entretanto, é mais complexa, pois aglutina diferentes linhas de pensamento e valores culturais. Vamos nos ater às referências centrais. Em Berlim, no final da segunda década do século, acompanha as conferências de Cassirer que desperta seu espírito para as implicações culturais do mito e do símbolo; ao mesmo tempo, as preleções de Husserl não encontram abrigo em seu interesse teórico; ainda por este tempo frequenta assiduamente as aulas do grande helenista Wilamowitz-Moellendorff. Converte-se no primeiro aluno que Panofsky orientou para a obtenção do título de doutor, que ocorre em 1922. A data é importante, pois é nesse momento que encontramos os primeiros indícios do rompimento de Panofsky com a tradição formalista da história da arte. Em 1924, Wind parte para os EUA, onde entra em contato com o empirismo anglo-americano, que passa a exercer influência sobre as suas análises de obras e de história da arte. Os textos dos pragmatistas Peirce e William James ingressam em sua bibliografia.
De volta à Alemanha em 1927, aos 27 anos de idade, conhece Aby Warburg. O contato com o ponto de vista teórico de Warburg se ajusta e confere acabamento às experiências intelectuais pelas quais passou; assim, após ter seguido os cursos de Cassirer, ter trabalhado com Panofsky e passado a temporada nos EUA, agora o encontro com Warburg completa a sua formação. A aglutinação destas vertentes se mostrou muito clara -e consistente- no ensaio sobre a concepção de "história cultural" e depois, na polêmica com os formalistas, no comentário ao conceito de Warburg de "Kulturwissenschaft", "ciência da cultura", em que trata da questão da imagem e da polaridade dos símbolos, pondo em xeque a tese de Woelfflin acerca da "evolução dos estilos" como movimento independente dos conteúdos das obras ou dos interesses das épocas.
O método de Edgar Wind, em linhas gerais, estabelece que a interpretação de obras de arte ou de momentos históricos está associada à exploração da produção literária contemporânea às obras ou aos períodos, bem como devem-se levar em conta as concepções filosóficas, a composição musical e as explicações que a ciência oferece acerca da natureza. Entretanto, o "visual" -sem se confundir com o estritamente formal- não é esquecido em suas análises e ocupa lugar de destaque. No exame do "visual" importa situar as obras de arte no meio social no qual brotaram -onde se incluem atitudes, comportamentos e expectativas irracionais-, no contexto cultural do qual se alimentaram e no mundo intelectual que as guiaram. Assim, a pintura renascentista está comprometida com a interseção da filosofia dos séculos 15 e 16, do simbolismo clássico e das crenças daqueles que encomendaram as obras.
A posição de Edgar Wind, se não a reconhecemos como radical, é ao menos firme ao se opor até mesmo a Bradley, que aceitava uma relação "subterrânea" entre a arte e a vida (é bem verdade, relação derivada do estilo e dos valores formais). Ao contrário, afirma enfaticamente uma relação "superficial" entre a vida e a arte, isto é, epidérmica ou, melhor, congênita. As obras de arte são depositárias de toda gama de experiências vividas pelos indivíduos e pelas comunidades, que se confundem com as determinações estéticas -as quais não podem ser pensadas em separado de seus conteúdos. A arte não é um fenômeno isolado, que se basta a si mesmo. A arte pertence, ao mesmo tempo, a uma pletora de significações e como tal se constitui.
"A Eloquência dos Símbolos" aborda uma multiplicidade de temas como, por exemplo, a iconografia renascentista, o caráter religioso do "mítico" no renascimento, analisa Donatello, Botticelli, Gruenewald, e ainda volta seu olhar para Rouault e Matisse ao considerar o cristianismo na arte moderna (avaliando a tese hegeliana de que a religião já não ocuparia o centro da cena artística). Da coletânea que constitui o livro, dois textos se salientam: um sobre o "divino temor", no qual aborda a teoria da arte de Platão, procurando reconstituir as condições históricas efetivas que a motivaram (há ainda outros dois textos que envolvem a filosofia platônica: "A Justiça Platônica Concebida por Rafael" e "A Tirania Platônica e a Fortuna Renascentista"), e outro sobre "O Conceito de Warburg de 'Kulturwissenschaft' ("ciência da cultura")". No ensaio sobre o "divino temor" (que originalmente foi o tema da aula inaugural como "privatdozent" em Hamburgo em 1932), Edgar Wind, ao contrário de tomar como ponto de partida e texto privilegiado o "Livro 10" da "República", põe sob o seu olhar crítico "As Leis". Ao lado de Pierre-Maxime Schuhl, com seu pequeno grande livro "Platão e a Arte de seu Tempo", de 1934, é pioneiro na reavaliação de uma estética platônica. "A Eloquência dos Símbolos" traz em apêndice o comentário de Edgar Wind à biografia que sir Ernst Gombrich escreveu sobre Aby Warburg.
Além da atividade acadêmica, notabilizou-se também como conferencista, tendo sido convidado pela BBC de Londres para pronunciar um ciclo de palestras que, em 1963, foram reunidas em livro sob o título "Arte e Anarquia". As seis palestras convertidas em seis capítulos podem ser tidas como um breviário de seu pensamento sobre a arte e sua história.
Victor Knoll é professor de filosofia da arte na USP

Folha de São Paulo

IGREJA CATÓLICA - OS ESPIRITUAIS FRANCISCANOS


História de uma rebeldia
Ana Paula Tavares Magalhães

Muito pouco se pode desvendar sobre a Idade Média no ocidente europeu, se não se levar em consideração a vigência de uma instituição tentacular, cuja esfera de abrangência ultrapassa os meros cuidados com a alma para se fazer largamente presente na vida dos indivíduos, das sociedades, dos Estados: a Igreja Católica. Suas determinações, bem como as querelas que suscitaram, acabaram por evidenciar o conceito de uma "cristandade ocidental", sobreposto a quaisquer eventuais consciências mais particulares de pertinência étnica, cultural ou nacional. As flutuações que então se operavam no conjunto desse imenso complexo arrastavam atrás de si um grande número de apaixonados, de desesperados, de crentes fervorosos e diligentes na condução de sua fé.
O trabalho de Nachman Falbel é a resposta a uma questão que lhe fora apresentada ainda nos anos 60: "Por que os franciscanos não conservaram os princípios originais de São Francisco de Assis?". O que está em jogo em "Os Espirituais Franciscanos" é uma tentativa de detectar o papel que desempenhou a Ordem -e, mais especificamente, sua facção denominada "Espirituais"- no conjunto das relações entre Igreja e Estado, entre clero secular e clero regular, entre os espirituais franciscanos e os demais membros da comunidade.
A linha mestra será o exame do percurso encetado pelos espirituais, grupo que permaneceu refratário à série de determinações ordenadas pela Sé romana por intermédio de vários sumos pontífices, e acatadas por outros elementos no interior da ordem ao longo do século 13, num momento em que se procurava consolidá-la enquanto instituição da igreja católica. O advento da burocracia e do pecúlio material representariam fatores de entrave à manutenção da pobreza em seus moldes mais absolutos, diretriz primeira da ordem e pensamento original de São Francisco de Assis quando concebera sua regra.
A crise no interior da ordem eclode num momento de tensão: no plano externo, a igreja medieval, essa verdadeira "monarquia pontifical", rivaliza com os Estados numa disputa de poder: ela pleiteia o poder temporal, utilizando como trampolim o poder espiritual. No plano interno, a disputa ocorre em dois níveis: aquele que envolve uma luta acirrada, feita de ciúmes e intrigas, entre o clero secular e o clero regular; e aquele processado no interior da própria Ordem Franciscana, envolvendo, de um lado, a comunidade, os defensores das medidas papais com vistas à burocratização e à posse comedida de bens, e, de outro, os Espirituais, aqueles que questionam a validade de tais medidas por julgarem não estarem elas em consonância com os valores primordiais pelos quais se pautava a ordem.
O autor faz o mapeamento dos antecedentes e da trajetória operada pelo grupo, mediante a análise da saga e das idéias de figuras que lograram vital importância para a emergência da crítica espiritual. É o caso, por exemplo, de Joaquim de Fiore, o monge cisterciense calabrês que viveu no século 12 e que desenvolveu uma interpretação da história da igreja e do mundo segundo uma concepção trinitária (ou seja, tomando por referencial a Santíssima Trindade); suas idéias serão retomadas no século seguinte pelos Espirituais.
Já situados no interior do movimento, podemos citar os franciscanos Ângelo Clareno, de Ancona, e Ubertino de Casale, da Toscana, cujos escritos e asserções lhes valeram sérias admoestações por parte da Sé Apostólica; o catalão Arnaldo de Vilanova, médico do papa Bonifácio 8º, posição esta que lhe garantiu uma certa proteção, apesar do teor crítico das idéias que professava; por fim, o franciscano provençal Pedro de João Olivi, cujo texto mais conhecido, a "Postilla Super Apocalypsim", continha elucubrações apocalípticas inspiradas em Joaquim de Fiore; Olivi teve alguns elementos de sua obra condenados pelo Concílio de Viena (1312).
Também se observa a reconstituição das posturas dos sucessivos papas, com seus concílios e bulas, em relação ao grupo dissidente. Discernem-se momentos de relaxamento e reprimenda, chegando-se, inclusive, a lançar mão daquele aparato supremo da coerção eclesiástica: a Inquisição.
Tentativa de restauração, como aquela que São Francisco teria uma vez empreendido, quando de seu despertar por meio de um sonho, no qual o Senhor lhe teria recomendado: "Francisco, restaura minha Igreja!". Aquele patriarca conseguira de fato realizar tal empresa, dentro dos cânones da ortodoxia, obtendo a aprovação de sua ordem por intermédio de uma habilidosa manobra política de cooptação do papa Inocêncio 3º; estes rebeldes do século seguinte, entretanto, permaneceram marginais à instituição, e a queda de braço entre a facção espiritual e o restante da comunidade acabou por não ser favorável ao grupo de críticos. Tal contraste de atitudes da Sé romana em relação a grupos minoritários e/ou à absorção de novas idéias apenas prima por reforçar a tese segundo a qual é impossível falar em heresia ou heterodoxia aprioristicamente. Uma heresia só se constitui a partir de uma doutrina que se possa infringir e, além disso, os limites entre a ortodoxia e a heterodoxia são muito flexíveis; sua linha divisória oscila conforme as situações conjunturais mais ou menos críticas, a orientação de tal ou qual política papal etc.
História de uma contestação doutrinária, aventura em defesa de um princípio: esta foi a inabalável luta dos Espirituais Franciscanos, que entendiam viver por um ideal e jamais abrir mão dele. Nachman Falbel busca reconstruir esse capítulo da vida do ocidente medieval europeu, contribuindo com mais uma pista para desvendar as intrincadas relações vigentes entre as várias instituições e entre os vários níveis desse imenso complexo da civilização.
Ana Paula Tavares Magalhães é mestranda em história social da USP.

Folha de São Paulo

FILOSOFIA - "The Language of Morals"


O modo imperativo

Armando Mora De Oliveira


O filósofo moral que escreveu o agora clássico "The Language of Morals" (1952) pretenderia, em primeiro lugar, que não o confundíssemos com um moralista. Sua tarefa não consiste em dizer às pessoas o que elas devem fazer; nem tampouco, à boa maneira dos filósofos do século 18, basear a reflexão moral numa teoria das paixões humanas, como se a psicologia filosófica pudesse fundamentar os conceitos morais.
Seu ponto de partida é aquela competência socrática que todos os falantes possuem, acessada em maior ou menor grau, de analisar o significado das palavras, a habilidade de compreender uma sentença nas suas várias condições de utilização. O filósofo moral é apenas alguém um pouco mais especializado nesse caminho analítico. Vem a ser um filósofo da linguagem ordinária muito interessado em palavras como "bom" e "dever", que majoritariamente vêm servindo como veículos semânticos de nossas intuições éticas. Hare define o seu projeto como uma análise dos conceitos morais, que leva ao conhecimento das suas propriedades lógicas e permite a seguir avaliar os argumentos baseados em inferências que utilizam essas palavras.
Embora Hare seja habitualmente considerado um utilitarista, é interessante observar que ele só aceita essa classificação se também for reconhecida em seu trabalho a influência de Kant, especialmente o seu apriorismo metodológico. Como é que se pode avaliar um argumento moral, se não tivermos efetuado uma análise lógica dos conceitos envolvidos? A construção da teoria moral supõe a lógica: é necessário determinar a natureza dos conceitos morais. E é assim que Hare nos fornece duas propriedades desses conceitos: a "universabilidade" e a "prescritividade"; com as duas crê ele ser possível contribuir para a elaboração duma lógica modal que representasse a linguagem moral. (Hare desenvolve a "universabilidade" dos conceitos morais no livro "Freedom and Reason", de 1963, denominando a sua teoria como "prescritivismo universal".)
Da mesma forma que Austin denunciou a falácia descritiva ao descobrir o fenômeno pragmático dos enunciados performativos, também Hare vai se opor a uma série de reducionismos e equívocos na interpretação dos enunciados imperativos. (Os imperativos explícitos, junto com as palavras de valor como "bom" e "justo", por exemplo, constituem o essencial dessa linguagem prescritiva, que é a moral.) Um imperativo não expressa um estado de espírito do falante: "Feche a porta" não equivale a "quero que você feche a porta" (expressando um desejo meu), mas tem a força duma recomendação, incita ou "prescreve" (no sentido em que o médico prescreve uma receita) que o ouvinte deva tomar um determinado curso de ação. Ora, com a devida complexidade e dirigidos a agentes livres, dotados de racionalidade, os enunciados morais possuem essa propriedade "prescritiva".
Por outro lado, a natureza universalizável dos enunciados morais é propriamente lógica (enquanto a função prescritiva não é exclusiva da pragmática moral). Se tomo para mim um princípio moral ("Devo respeitar a vida privada alheia", por exemplo), tenho que mantê-lo sempre que se me deparem situações semelhantes. Este "dever ser" está inscrito na função descritiva da linguagem, paralelamente à linguagem ética: se domino o significado de "cadeira", em princípio estou obrigado pela ética da convenção linguística (e da cognição) a usar "cadeira" sempre que a situação mo impuser.
Mas um "princípio moral", segundo Hare, não é apenas um imperativo, um mero comando: "Em São Paulo às terças-feiras não circulam carros de final 4", restringe-se a uma data e a uma determinada área administrativa. Todavia, "Você deve ajudar: utilize o transporte coletivo" pode ser considerado um exemplo de princípio moral; é absolutamente geral, e a minha adesão ao seu teor prescritivo implica da minha parte uma justificativa "racional" (por exemplo, que sou um ecologista ardente etc.).
Se primeiramente a construção da moral exige um exame cuidadoso dos conceitos e a análise da natureza dos enunciados morais (o lado kantiano da empreitada de Hare, completado com a tese sobre inferências com imperativos), é evidente que a moral pressupõe fatos e deriva da ação (e aqui é o lado utilitarista que domina). Embora Hare aceite a separação entre "fatos" e "valores" comum à descendência humeana, a sua posição é singularmente kantiana. Tome-se este seu exemplo: suponhamos que algum cientista (contrariamente às nossas crenças) tenha determinado que um grupo racial é menos dotado intelectualmente que outro; infelizmente seria um fato. Não cabem censura política ou científica, certamente. Mas é curioso que em "virtude" desse fato "não temos que" adotar tal ou tal política de investimento de recursos educacionais, por exemplo. Pode-se adotar a alternativa de privilegiar o grupo menos dotado ou, inversamente, fornecer mais recursos ao grupo racial que se considera ser mais produtivo.
Moralmente, para termos alternativas (moral é "escolha" dum curso de ação) precisamos conhecer os "fatos", discriminar na realidade toda a complexidade situacional sobre a qual temos que agir. Por exemplo: quem pode dizer que conhece e é capaz de justificar (integralmente) a sua posição perante o aborto? Temos a certeza ou podemos ter a certeza de conhecer os fatos que substanciariam a nossa escolha? Até onde deverá ir a defesa da liberdade de imprensa na divulgação da vida privada das figuras públicas (como Diana Spencer)? O filósofo analítico não propõe uma moral (nem uma filosofia da linguagem, aliás), mas -ao lado do sociólogo, do teólogo, do economista, do linguista, do editor-chefe- ajuda a escolher melhor qual das nossas intuições morais se aproxima duma racionalidade defensável.
Armando Mora de Oliveira é professor de filosofia da linguagem no departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo