segunda-feira, 5 de julho de 2010

Blackness Without Ethnicity. Constructing Race in Brazil


Osmundo de Araujo Pinho

SANSONE, Livio. Blackness Without Ethnicity. Constructing Race in Brazil. New York, Palgrave MacMillan, 2003, 248p.

Os estudos sobre relações raciais no Brasil padeceram durante muito tempo de certa ênfase em determinadas dualidades que, se em certa medida não impediu o surgimento de contribuições importantes, por outro lado permitiu que se consolidasse uma visão algo fragmentada sobre a agência histórica dos afrodescendentes brasileiros, sobre suas práticas culturais e sobre a relação entre a racialização de sujeitos sociais e a estrutura social brasileira. Quero destacar duas dessas dualidades. A primeira, que marcou uma separação entre estudos de "cultura negra" e pesquisas sobre "desigualdade racial", como se aquilo que poderíamos entender como cultura negra, esse objeto "mal-identificado", e as estruturas sociais de reprodução social desigual não estivessem profundamente interligadas de diversos modos dinâmicos e complexos. A segunda dualidade poderia ser apontada como aquela que localiza as formas culturais afrodescendentes no território da tradição, das particularidades regionais, de uma imaginária essência cultural, pedra angular na retórica chauvinista da nacionalidade, identificando, em contrapartida, como "não-nacional", "não-negro", "não-autêntico" tudo o que não se encaixasse nos cânones hierarquizados da "cultura negra".

Ora, o trabalho pioneiro e original de pesquisadores como Livio Sansone surgiu para pôr abaixo essas divisões estanques e inaugurar novos parâmetros para as pesquisas sobre relações raciais no Brasil. Neste livro, que acaba de ser lançado nos Estados Unidos e em breve será traduzido no Brasil, Sansone reúne reflexões e resultados empíricos de pesquisas realizadas no Brasil, ou em comparação com o Brasil, ao longo de mais de dez anos de experiência de pesquisa e docência acadêmica em Salvador, no Rio de Janeiro e em Campinas. Este livro reúne, assim, o pensamento amadurecido de um pesquisador que tem sido favorecido pelo intercâmbio com diversos contextos sociais, realidades raciais, atores acadêmicos, ativistas e acadêmicos-ativistas. Além de toda sua prévia experiência internacional, o que certamente lhe vacinou contra determinados, e sinistros, essencialismos e parti pris, muito comuns entre estudiosos acadêmicos do tema no Brasil.

O trabalho de Livio Sansone, condensado de maneira coerente e abrangente no volume que ora vem à luz, tem se caracterizado por um profundo interesse nas formas empíricas de constituição dos significados sociais sobre a raça, o racismo, as classificações raciais e as desigualdades vividas no cotidiano de comunidades populares. O interesse por essas formas encarnadas de ação social significativa permitiu-lhe, por exemplo, chamar a atenção para o que hoje, muito graças ao seu trabalho, se descreve como o caráter contingencial, negociado e pragmático das categorias raciais. Ou seja, Sansone aponta para os usos concretos das categorias raciais de adscrição. É óbvio que estas categorias portam toda a historicidade e a racialização prévia dos sujeitos sociais, mas o que é importante destacar é que estas categorias são acionadas por sujeitos sociais. Ou seja, aí se revela a agência e a capacidade de re-interpretação dos agentes que interagem em contextos diversos, transformado esses contextos e reinventando-se em cada interação. E esse é outro aspecto importante que transparece na obra de Sansone, a atenção especial que recai nas formas múltiplas e abertas sob as quais se configuram as identidades afrodescendentes, descritas não mais como entidades fechadas em si mesmas, realizadas metafisicamente como a manifestação de alguma postulada essência trans-histórica e deslocada dos contextos sociais, desiguais, nos quais estas realmente ocorrem.

Assim também, o autor, nesta obra, e ao longo de sua carreira no Brasil, tem produzido uma leitura sobre as formas culturais afrodescendentes que as descreve como reconectadas a duas instâncias fundamentais, das quais muitas vezes tinham sido alienadas. Em primeiro lugar, a modernidade e, em estreita conexão, a globalização. Neste livro podemos ver através da reconstituição cuidadosa de situações etnográficas bem delimitadas – quer sejam bailes funk, comunidades populares em favelas no Rio de Janeiro, ou bairros pobres na Região Metropolitana de Salvador – como a cultura negra e as formas de classificação racial e de reação ao racismo são informadas e transformadas pelos contatos culturais globais. E mais, como a relação destes sujeitos sociais tem passado por reinvenções e reinterpretações constantes e criativas num diálogo intenso e densamente marcado pelas repercussões locais, com formas transnacionais de cultura negra. Por outro lado, a modernidade tal como vivida nos contextos analisados, passa, sem dúvida alguma, pela constituição de novos sujeitos raciais ou racialidades constituídos(as) em trânsitos geracionais e de classe. De modo que aparecem assim bem localizadas as transformações que o autor analisa contra o pano de fundo dos contextos de classe, modernização e gênero, de tal sorte que podemos perceber, por exemplo, como os mais jovens e mais escolarizados tendem e reagir de forma diferente daquela de seus pais à pobreza e ao racismo, construindo novas identidades e expectativas, e de como estes mesmos sujeitos mais jovens são aqueles que mais tendem a se auto-classificar como "negros" e a identificar no seu dia-a-dia situações de racismo. A acomodação dos pais, ou da geração mais velha, a determinado lugar social, parece desse modo impedi-los de fazer o tipo de identidade negra de seus filhos, ao mesmo tempo mais "racial", mais internacional, mais atrelada ao mundo das mercadorias e mais moderna e oposicional.

Por fim, o autor pôde realizar a passagem fundamental, ancorada em sólidos dados de pesquisa, entre os contextos localizados discutidos nos diversos capítulos do livro e o "Lugar do Brasil no Atlântico Negro", título do capítulo de conclusão. De tal forma, que fica claro que os movimentos históricos de identificação, e seus contextos correspondentes podem ser entendidos através de modelos teóricos que beneficiem o fluxo e a mobilidade, em vez da cristalização e dos "retratos instantâneos", formas metafóricas acabadas de retirar a história e a transformação, a invenção e a criatividade social do domínio de sujeitos sociais subalternos, enfoque tão ao gosto de determinada antropologia praticada no Brasil, que enxerga negros, pobres, homossexuais e demais "Outros" como membros perdidos de tribos isoladas fora da história e da modernidade. Livio Sansone nos apresenta sujeitos sociais negros modernos e dinâmicos que interagem com a história, a globalidade e a modernização tal como ela ocorre na periferia de Salvador e do Rio de Janeiro, assim como nos fluxos transcontinentais.

Revista Estudos Afro-Asiáticos

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