Schwarcz, Luiz. O primeiro leitor. Ensaio de memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2025
O livro de Luiz Schwarcz é composto por 22 capítulos, precedidos de introdução e seguidos por agradecimentos, notas e referências bibliográficas. A ordenação do conteúdo é engenhosa, pois os capítulos ímpares reúnem reflexões sobre o mundo editorial e seus personagens, enquanto os pares apresentam perfis de escritores já falecidos, que foram importantes para o autor e para a trajetória da editora que fundou, a Companhia das Letras. Assim, textos de cunho ensaístico mesclam-se com outros que evocam convivências e experiências compartilhadas, o que justifica a menção a diferentes gêneros textuais expressa no subtítulo. A unidade e coerência do conjunto - o fio de Ariadne que conduz o leitor ao longo de todo o percurso - são as questões relativas à figura social do editor, o papel e as ações desse primeiro leitor, segundo percepção de profundo conhecedor do métier.
Os ensaios abordam temáticas variadas, a começar pelo questionamento acerca do que leva alguém a dedicar a vida à edição de livros. Para além do caso pessoal, Schwarcz evoca exemplos nacionais e internacionais, pontuando o peso do acaso e do fortuito nas escolhas profissionais, antidoto contra a ilusão biográfica que, a posteriori, atribui coerência e predestinação ao vivido (Bourdieu, 2006). Se os caminhos que conduzem alguém a se dedicar ao mundo dos livros podem ser tortuosos, como avaliar o desempenho dos que abraçam a profissão? O autor relativiza o propalado “faro” e distingue os que foram capazes de enxergar novas possibilidades no mercado, a exemplo de Allen Lane, criador do livro de bolso em seu formato atual, daqueles que levam adiante dedicado e paciente trabalho com os originais que lhes chegam às mãos. E é exatamente esse aspecto que é reiteradamente retomado no decorrer dos capítulos ímpares.
Segundo a perspectiva defendida, cabe ao primeiro leitor não apenas certificar-se da coerência da narrativa, mas comungar da subjetividade do autor e “defender o livro ferozmente [...] protegendo a obra, todo o tempo, mesmo que em contraposição a quem a criou” (p.96), o que evidencia a posição ambígua do editor, que assume a tarefa de se colocar ao lado da criatura, mas sempre em prol do criador. Assim, todo o esforço implica trazer à luz o que, em potência, já existia de forma latente no texto. O talento continua creditado ao autor, enquanto ao editor reserva-se, de acordo com a argumentação apresentada, posição modesta e respeitosa, pois ao segundo somente caberia “um mérito indireto, remoto e que deve restar à sombra” (p.141). Tal postura, contudo, nem sempre guiou a ação editorial e Schwarcz ilustra a tensa relação entre os dois polos com exemplos de desacordos, conflitos e rompimentos, o que lhe permite questionar até que ponto poderia ou deveria se estender a intervenção de quem julga em primeira mão uma obra. Ao caso emblemático entre o editor Max Perkins e o autor Thomas Wolf, detalhado de forma saborosa, soma-se a rebelião pública de Raymond Carver contra as interferências de Gordon Lish, editor da Knopf, no seu livro de contos, ou o lamento de Alberto Manguel frente aos cortes que Ezra Pound, na condição de editor, realizou nos versos de The waste land, de T. S. Elliot. Não por acaso, a bibliografia especializada tem se interrogado acerca do ato editorial e da figura do editor no intuito de identificar não apenas as diferentes práticas vigentes desde a Renascença, mas também a especificidade e a historicidade da leitura editorial (Legendre; Robin, 2005; Ouvry-Vial; Réach-Ngô, 2010).
Ao lado do problema do grau e da profundidade da presença do primeiro leitor no resultado, também são referidos por Schwarcz os erros de julgamento que levaram à rejeição de obras que compõem o cânone literário ou frequentaram a lista dos mais vendidos, sem esquecer os enganos cometidos por sua empresa. Se alguns recusaram, por exemplo, Madame Bovary, Em busca do tempo perdido, A revolução dos bichos, On the road e a saga Harry Potter, outros escritores contaram com editores sensíveis, que os incentivaram a persistir, caso de William Faulkner e Ernest Hemingway.
A censura, por sua vez, é outro ator a rondar o mundo da edição e o tortuoso caminho para a publicação de Ulysses nos Estados Unidos é um exemplo paradigmático, retomado no livro. No cenário atual, as tentativas de esvaziar estantes de bibliotecas tem origem em demandas de pais, diretores de escolas, autoridades religiosas e públicas, sob argumento de proteção aos jovens. A despeito da falácia dos argumentos, explicitada de forma enfática pelo autor, os dados apresentados, relativos aos Estados Unidos e ao Brasil, são desoladores. A eles se pode acrescer a tentativa, levada a cabo em 2021, de expurgo do acervo da Fundação Palmares, cuja lista de obras visadas continha volumes assinados pelos brasileiros Octavio Ianni, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Jacob Gorender e Celso Furtado, de tal sorte que o romance distópico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, reveste-se de atualidade.
A curiosidade em torno dos processos de criação é um dos corolários da lida cotidiana com a produção artística e o autor confessa sua paixão pelo tema e o desejo de aventurar-se pela psicanálise e neurociências. Os próprios escritores e escritoras oferecem pistas sobre seu processo criativo e o leitor tem a oportunidade de se familiarizar com os que afirmam ter personagens e enredos previamente definidos antes de enfrentar o papel (agora a tela) em branco e os que não sabem, de antemão, as veredas a serem percorridas. Os que leem os originais, por sua vez, têm por obrigação conhecer as exigências dos diferentes gêneros literários, saber avaliar as múltiplas possibilidades de início e término dos textos, seu andamento, coerência e consistência, perceber “sinais de esgotamento pelo caminho” (p.280) ou “fantasias inusitadas” (p.282), atuando como mediadores entre o autor e os futuros leitores. Assim, editores tanto se colocam como defensores da obra quanto precisam levar em conta o destinatário, o que enseja a pergunta, não menos instigante, acerca da memória que o leitor (imaginado pelo editor) guardará do enredo, pois quem o percorrer também mobilizará recursos imaginativos. Daí a complexa interrogação: a quem pertence o livro?
A prática de colocar o nome e a data no ato da compra ou da finalização da leitura equivale a um ato de apropriação, pois, ao lado do autor, insistentemente identificado no volume, agora figura o leitor. Schwarcz argumenta que tal presença também se encontra na própria materialidade, ou seja, nas margens e nas entrelinhas, espaço ocupado, pela primeira vez, por quem se depara com o original que aspira assumir a forma livro. A perspectiva é importante por evidenciar que o compromisso e o respeito do editor não se restringem ao autor, mas devem ter em conta o outro extremo da cadeia produtiva. Mais do que questão de estética ou bom gosto, o uso de papel que propicie conforto visual, capas que deixem espaço para a imaginação, assim como entrelinhas e manchas generosas admitem o protagonismo dos percorrerão as páginas da obra, expresso no projeto próprio gráfico. E não faltam exemplos na história literária de escritores que, de fato, fizeram usos desses espaços, tanto que as anotações autógrafas nas margens constituem-se em fontes importantes e bastaria citar a relevância do projeto que recolheu as marginálias de Mário de Andrade (Lopez, 2011).
Luiz Schwarcz, que conta com mais de quatro décadas de atuação profissional, chama a atenção para as demandas atuais, muito diversas das que enfrentou quando se lançou no mercado. Saber que leitores se pretende atingir, ter identidade visual bem definida, analisar dados provenientes de instrumentos de marketing são aspectos agora indispensáveis e que ultrapassam em muito a mera intuição. O exemplo das capas, confeccionadas antes da produção da obra, e a prática da pré-venda são exemplos de novas práticas. Autores e autoras não permaneceram imunes aos novos tempos e agora devem promover suas obras e comparecer a feiras, eventos e palestras, além de administrarem suas redes sociais. O interesse dos leitores pela vida pessoal dos nomes estampados nas capas de livros não é uma novidade, tal como indicam as entrevistas realizadas por João do Rio (1909) para a Gazeta de Notícias no início do século XX, mas obviamente a exigência da performance atingiu patamares inéditos com os novos meios de difusão da informação, como salienta o autor.

SCHWARCZ, Luiz O primeiro leitor. Ensaio de memória. São Paulo, Companhia das Letras, 2025.
No que concerne ao leitor dos dias atuais, fica a inquietação a respeito da mudança do suporte e suas múltiplas consequências, que incluem novas práticas de apropriação e leitura dos textos, dissolução do formato códice e alteração da própria noção de autoria (Chartier, 1994, p.95-111; 2014). Talvez valesse a pena inquirir acerca do papel social ocupado pelo editor num contexto em que se multiplicam as formas de publicar sem sua intermediação e, de maneira ainda mais abrangente, sobre o processo de reconfiguração de todo o ecossistema editorial atualmente em curso (Sordet, 2023).

O editor Caio Graco Prado, da editora Brasiliense, na 11ª Bienal do Livro de São Paulo.
O tom dos capítulos pares é bastante diverso, uma vez que se trata de partilhar vivências, o que permite ao leitor vislumbrar aspectos da personalidade e da intimidade de nomes estampados nas capas dos livros. As evocações, sempre relativas a personalidades já falecidas, iniciam-se com o editor Caio Graco, único a ocupar dois capítulos, o que é compreensível em vista da importância do proprietário da Editora Brasiliense para a trajetória do autor, e se fecham com o também editor Jorge Zahar, cuja centralidade para a vida pessoal e profissional de Schwarcz é evidenciada. Os anos de juventude, o início na casa fundada por Caio Prado Júnior, as ações inovadoras, a exemplo da famosa coleção “Primeiros Passos”, até a decisão de abrir sua própria editora e os percalços iniciais enfrentados remetem não apenas a aspectos de âmbito privado, uma vez que fornecem elementos para se compreender práticas e padrões vigentes no mercado, alguns dos quais alterados pela Companhia das Letras.
Dentre os oito nomes que figuram entre Caio Graco e Jorge Zahar há quatro brasileiros - José Paulos Paes, Paulo Francis, Rubem Fonseca e Jô Soares - e quatro estrangeiros - Susan Sontag, Amos Oz, Oliver Sacks e José Saramago. Os capítulos detalham como se deu o primeiro encontro e a posterior fraternal aproximação com cada um, as solicitações e gostos, as manias e as particularidades, as tocantes demonstrações de afeto e respeito. Schwarcz não esconde suas indecisões, gafes e acertos e, dessa forma, compõe um quadro sobre fraquezas e grandezas que atravessam as sempre complexas relações pessoais, sem deixar de se referir à condição de editor, que o levou, por exemplo, a recursar obra de amigo próximo, ou acompanhar o dia a dia da escritura de um romance. Mas não cabe retirar do leitor o prazer dessas descobertas.
Referências
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CHARTIER, R. Post Escriptum. Do códice à tela: as trajetórias do escrito. In: ___. ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília, UnB, 1994. p.95-111.
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Revista Estudos Avançados - USP
 
 


