sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O primeiro leitor




Schwarcz, Luiz. O primeiro leitor. Ensaio de memória. São Paulo: Companhia das Letras, 2025


O livro de Luiz Schwarcz é composto por 22 capítulos, precedidos de introdução e seguidos por agradecimentos, notas e referências bibliográficas. A ordenação do conteúdo é engenhosa, pois os capítulos ímpares reúnem reflexões sobre o mundo editorial e seus personagens, enquanto os pares apresentam perfis de escritores já falecidos, que foram importantes para o autor e para a trajetória da editora que fundou, a Companhia das Letras. Assim, textos de cunho ensaístico mesclam-se com outros que evocam convivências e experiências compartilhadas, o que justifica a menção a diferentes gêneros textuais expressa no subtítulo. A unidade e coerência do conjunto - o fio de Ariadne que conduz o leitor ao longo de todo o percurso - são as questões relativas à figura social do editor, o papel e as ações desse primeiro leitor, segundo percepção de profundo conhecedor do métier.



Os ensaios abordam temáticas variadas, a começar pelo questionamento acerca do que leva alguém a dedicar a vida à edição de livros. Para além do caso pessoal, Schwarcz evoca exemplos nacionais e internacionais, pontuando o peso do acaso e do fortuito nas escolhas profissionais, antidoto contra a ilusão biográfica que, a posteriori, atribui coerência e predestinação ao vivido (Bourdieu, 2006). Se os caminhos que conduzem alguém a se dedicar ao mundo dos livros podem ser tortuosos, como avaliar o desempenho dos que abraçam a profissão? O autor relativiza o propalado “faro” e distingue os que foram capazes de enxergar novas possibilidades no mercado, a exemplo de Allen Lane, criador do livro de bolso em seu formato atual, daqueles que levam adiante dedicado e paciente trabalho com os originais que lhes chegam às mãos. E é exatamente esse aspecto que é reiteradamente retomado no decorrer dos capítulos ímpares.



Segundo a perspectiva defendida, cabe ao primeiro leitor não apenas certificar-se da coerência da narrativa, mas comungar da subjetividade do autor e “defender o livro ferozmente [...] protegendo a obra, todo o tempo, mesmo que em contraposição a quem a criou” (p.96), o que evidencia a posição ambígua do editor, que assume a tarefa de se colocar ao lado da criatura, mas sempre em prol do criador. Assim, todo o esforço implica trazer à luz o que, em potência, já existia de forma latente no texto. O talento continua creditado ao autor, enquanto ao editor reserva-se, de acordo com a argumentação apresentada, posição modesta e respeitosa, pois ao segundo somente caberia “um mérito indireto, remoto e que deve restar à sombra” (p.141). Tal postura, contudo, nem sempre guiou a ação editorial e Schwarcz ilustra a tensa relação entre os dois polos com exemplos de desacordos, conflitos e rompimentos, o que lhe permite questionar até que ponto poderia ou deveria se estender a intervenção de quem julga em primeira mão uma obra. Ao caso emblemático entre o editor Max Perkins e o autor Thomas Wolf, detalhado de forma saborosa, soma-se a rebelião pública de Raymond Carver contra as interferências de Gordon Lish, editor da Knopf, no seu livro de contos, ou o lamento de Alberto Manguel frente aos cortes que Ezra Pound, na condição de editor, realizou nos versos de The waste land, de T. S. Elliot. Não por acaso, a bibliografia especializada tem se interrogado acerca do ato editorial e da figura do editor no intuito de identificar não apenas as diferentes práticas vigentes desde a Renascença, mas também a especificidade e a historicidade da leitura editorial (Legendre; Robin, 2005; Ouvry-Vial; Réach-Ngô, 2010).



Ao lado do problema do grau e da profundidade da presença do primeiro leitor no resultado, também são referidos por Schwarcz os erros de julgamento que levaram à rejeição de obras que compõem o cânone literário ou frequentaram a lista dos mais vendidos, sem esquecer os enganos cometidos por sua empresa. Se alguns recusaram, por exemplo, Madame Bovary, Em busca do tempo perdido, A revolução dos bichos, On the road e a saga Harry Potter, outros escritores contaram com editores sensíveis, que os incentivaram a persistir, caso de William Faulkner e Ernest Hemingway.



A censura, por sua vez, é outro ator a rondar o mundo da edição e o tortuoso caminho para a publicação de Ulysses nos Estados Unidos é um exemplo paradigmático, retomado no livro. No cenário atual, as tentativas de esvaziar estantes de bibliotecas tem origem em demandas de pais, diretores de escolas, autoridades religiosas e públicas, sob argumento de proteção aos jovens. A despeito da falácia dos argumentos, explicitada de forma enfática pelo autor, os dados apresentados, relativos aos Estados Unidos e ao Brasil, são desoladores. A eles se pode acrescer a tentativa, levada a cabo em 2021, de expurgo do acervo da Fundação Palmares, cuja lista de obras visadas continha volumes assinados pelos brasileiros Octavio Ianni, Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Jacob Gorender e Celso Furtado, de tal sorte que o romance distópico de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, reveste-se de atualidade.



A curiosidade em torno dos processos de criação é um dos corolários da lida cotidiana com a produção artística e o autor confessa sua paixão pelo tema e o desejo de aventurar-se pela psicanálise e neurociências. Os próprios escritores e escritoras oferecem pistas sobre seu processo criativo e o leitor tem a oportunidade de se familiarizar com os que afirmam ter personagens e enredos previamente definidos antes de enfrentar o papel (agora a tela) em branco e os que não sabem, de antemão, as veredas a serem percorridas. Os que leem os originais, por sua vez, têm por obrigação conhecer as exigências dos diferentes gêneros literários, saber avaliar as múltiplas possibilidades de início e término dos textos, seu andamento, coerência e consistência, perceber “sinais de esgotamento pelo caminho” (p.280) ou “fantasias inusitadas” (p.282), atuando como mediadores entre o autor e os futuros leitores. Assim, editores tanto se colocam como defensores da obra quanto precisam levar em conta o destinatário, o que enseja a pergunta, não menos instigante, acerca da memória que o leitor (imaginado pelo editor) guardará do enredo, pois quem o percorrer também mobilizará recursos imaginativos. Daí a complexa interrogação: a quem pertence o livro?



A prática de colocar o nome e a data no ato da compra ou da finalização da leitura equivale a um ato de apropriação, pois, ao lado do autor, insistentemente identificado no volume, agora figura o leitor. Schwarcz argumenta que tal presença também se encontra na própria materialidade, ou seja, nas margens e nas entrelinhas, espaço ocupado, pela primeira vez, por quem se depara com o original que aspira assumir a forma livro. A perspectiva é importante por evidenciar que o compromisso e o respeito do editor não se restringem ao autor, mas devem ter em conta o outro extremo da cadeia produtiva. Mais do que questão de estética ou bom gosto, o uso de papel que propicie conforto visual, capas que deixem espaço para a imaginação, assim como entrelinhas e manchas generosas admitem o protagonismo dos percorrerão as páginas da obra, expresso no projeto próprio gráfico. E não faltam exemplos na história literária de escritores que, de fato, fizeram usos desses espaços, tanto que as anotações autógrafas nas margens constituem-se em fontes importantes e bastaria citar a relevância do projeto que recolheu as marginálias de Mário de Andrade (Lopez, 2011).



Luiz Schwarcz, que conta com mais de quatro décadas de atuação profissional, chama a atenção para as demandas atuais, muito diversas das que enfrentou quando se lançou no mercado. Saber que leitores se pretende atingir, ter identidade visual bem definida, analisar dados provenientes de instrumentos de marketing são aspectos agora indispensáveis e que ultrapassam em muito a mera intuição. O exemplo das capas, confeccionadas antes da produção da obra, e a prática da pré-venda são exemplos de novas práticas. Autores e autoras não permaneceram imunes aos novos tempos e agora devem promover suas obras e comparecer a feiras, eventos e palestras, além de administrarem suas redes sociais. O interesse dos leitores pela vida pessoal dos nomes estampados nas capas de livros não é uma novidade, tal como indicam as entrevistas realizadas por João do Rio (1909) para a Gazeta de Notícias no início do século XX, mas obviamente a exigência da performance atingiu patamares inéditos com os novos meios de difusão da informação, como salienta o autor.





SCHWARCZ, Luiz O primeiro leitor. Ensaio de memória. São Paulo, Companhia das Letras, 2025.


No que concerne ao leitor dos dias atuais, fica a inquietação a respeito da mudança do suporte e suas múltiplas consequências, que incluem novas práticas de apropriação e leitura dos textos, dissolução do formato códice e alteração da própria noção de autoria (Chartier, 1994, p.95-111; 2014). Talvez valesse a pena inquirir acerca do papel social ocupado pelo editor num contexto em que se multiplicam as formas de publicar sem sua intermediação e, de maneira ainda mais abrangente, sobre o processo de reconfiguração de todo o ecossistema editorial atualmente em curso (Sordet, 2023).





O editor Caio Graco Prado, da editora Brasiliense, na 11ª Bienal do Livro de São Paulo.


O tom dos capítulos pares é bastante diverso, uma vez que se trata de partilhar vivências, o que permite ao leitor vislumbrar aspectos da personalidade e da intimidade de nomes estampados nas capas dos livros. As evocações, sempre relativas a personalidades já falecidas, iniciam-se com o editor Caio Graco, único a ocupar dois capítulos, o que é compreensível em vista da importância do proprietário da Editora Brasiliense para a trajetória do autor, e se fecham com o também editor Jorge Zahar, cuja centralidade para a vida pessoal e profissional de Schwarcz é evidenciada. Os anos de juventude, o início na casa fundada por Caio Prado Júnior, as ações inovadoras, a exemplo da famosa coleção “Primeiros Passos”, até a decisão de abrir sua própria editora e os percalços iniciais enfrentados remetem não apenas a aspectos de âmbito privado, uma vez que fornecem elementos para se compreender práticas e padrões vigentes no mercado, alguns dos quais alterados pela Companhia das Letras.

Dentre os oito nomes que figuram entre Caio Graco e Jorge Zahar há quatro brasileiros - José Paulos Paes, Paulo Francis, Rubem Fonseca e Jô Soares - e quatro estrangeiros - Susan Sontag, Amos Oz, Oliver Sacks e José Saramago. Os capítulos detalham como se deu o primeiro encontro e a posterior fraternal aproximação com cada um, as solicitações e gostos, as manias e as particularidades, as tocantes demonstrações de afeto e respeito. Schwarcz não esconde suas indecisões, gafes e acertos e, dessa forma, compõe um quadro sobre fraquezas e grandezas que atravessam as sempre complexas relações pessoais, sem deixar de se referir à condição de editor, que o levou, por exemplo, a recursar obra de amigo próximo, ou acompanhar o dia a dia da escritura de um romance. Mas não cabe retirar do leitor o prazer dessas descobertas.

Referências
BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. de M.; AMADO, J.; PORTELLI, A. Usos & abusos da história oral. 8.ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p.183-91.
CHARTIER, R. Post Escriptum. Do códice à tela: as trajetórias do escrito. In: ___. ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília, UnB, 1994. p.95-111.
_______. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
LEGENDRE, B.; ROBIN, C. (Dir.) Figures de l’éditeur. Représentations, savoirs, compétences territoires. Pairs: Nouveau Monde Éditions, 2005.
LOPEZ, T. A. Mário de Andrade leitor e escritor: uma abordagem de sua biblioteca e de sua marginália. Escritos, ano 5, n.5, p.53-75, 2011.
OUVRY-VIAL, B.; RÉACH-NGÔ, A. (Dir.) Publier à la Renaissance et aujourd’hui. Paris: Classiques Garnier, 2010.
RIO, J. do. O momento literário. Rio de Janeiro: Garnier [1909].
SORDET, Y. História do livro e da edição. Produção & circulação, formas & mutações. Cotia: Ateliê Editorial; São Paulo: Edições Senac São Paulo, 2023.
Revista Estudos Avançados - USP

E viva a vida!

 



BARBOSA, Nelson Luís. (pesquisa documental, edição de texto fidedigno e anotada, introdução). E viva a vida! Correspondência entre os escritores Osman Lins e Hermilo Borba Filho. São Paulo: Hucitec, 2024


A edição da correspondência entre Osman Lins (1924-1978) e Hermilo Borba Filho (1917-1976), E viva a vida!, alcança duplo mérito: amplia a obra e também a fortuna crítica dos dois escritores, graças ao rigoroso, paciente, esmerado trabalho empreendido por Nelson Luís Barbosa em pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP). No fornido volume de 508 páginas (formato 16 x 23 cm), o estudioso graduado em Letras Francês/Português, mestre e doutor em Literatura Comparada, sempre pela USP, reúne, analisa e contextualiza 201 cartas, incluindo bilhetes e telegramas, trocadas pelos dois grandes autores pernambucanos de 1965 a 1976; Osman (106) em São Paulo e Hermilo (95) em Recife. A escritora Julieta de Godoy Ladeira (1927-1997), viúva de Osman Lins, deixou a correspondência reunida, com anotações e o título colhido no fim da última carta de Hermilo, e Nelson Barbosa fez a pesquisa documental (encontrou novos papéis), a edição de texto fidedigno e anotada e uma esclarecedora apresentação desse “livro valioso” e de “leitura imperdível”, como atesta na orelha Sandra Nitrini, uma pioneira nos estudos osmanianos. De fato, o livro traz novidades até mesmo para os mais aplicados estudiosos dos dois escritores.


Outro mérito do pesquisador e organizador no alentado estudo: dispensa espaço e atenção iguais a cada um dos missivistas, desde a apresentação, as minuciosas e substanciosas notas de pé de página (muitas analíticas e interpretativas) e a transcrição de textos de Julieta a respeito da correspondência e da amizade dos dois escritores, de artigos de Osman Lins sobre Hermilo Borba Filho e da professora gaúcha Regina Zilberman a respeito do autor de Avalovara. No pe- ríodo da correspondência, poucas vezes os escritores se encontraram - imprevistos evitaram longas conversas presenciais -, o que fez das cartas o lugar privilegiado de diálogo, como salienta Barbosa. Osman e Hermilo tratam sobretudo de questões literárias e editoriais, com significativas revelações para seus habituais leitores.


Poucas vezes assuntos pessoais e familiares têm espaço na correspondência. Intelectuais atuantes e progressistas (Osman fora aluno de Hermilo em curso de Arte Dramática em Recife), discutem os temas mais candentes do período da ditatura militar, como a censura imposta a representações artísticas e culturais - livros, filmes e peças -, dificuldade de publicação, indiferença de editores, bastidores de concursos literários, mas também dividem momentos de angústia nos tempos de incerteza e de alegria com a produção, edição e tradução de suas obras. Autores diferentes, mas complementares, eles próprios identificam nas cartas pontos de contato na visão e prática da literatura. No entanto, são as divergências que rendem as páginas mais admiráveis da correspondência, como as sequências em que discutem a montagem de peças clássicas pelo Teatro Popular do Nordeste, dirigido por Hermilo, e da peça Auto do salão do automóvel, de Osman Lins, pelo TPN, a cargo de um diretor do grupo e da confiança de Hermilo, José de Souza Pimentel (1934-2018). Nos dois episódios, Osman discorda com veemência e Hermilo rebate com serenidade. No caso do Auto, que ficou pouco tempo em cartaz, com apenas 15 apresentações, a realidade mostrou que Osman tinha razão ao questionar a mudança do lugar em que é ambientada a peça, de São Paulo, de 8 milhões de habitantes na época (“com mil dificuldades a esmagar o indivíduo”) para o Recife (“marítima e, apesar do movimento, doce sob muitos aspectos”, p.246) e outras radicais intervenções do encenador (que desfigurou o original) e devem ter desagradado também o público pernambucano. Vale a pena transcrever alguns trechos dessas cartas (Barbosa, 2024).


Osman a Hermilo, em 10 de julho de 1967 (p.121):


Vivendo aí, Hermilo, talvez você tenha deixado de ver claro algumas coisas. Juro-lhe: não tem o menor sentido levar dramas gregos, ou elisabetanos, ou racinianos no Nordeste. É puro esteticismo, por mais esforços que se procure fazer em contrário. Isso é uma terra bruta e áspera, você sabe disso. E inculta, além do mais. Uma terra à procura do que significa. São os dramaturgos daí, Hermilo, com todas as suas deficiências, que devem ser postos diante dos nossos conterrâneos. Sófocles, Ésquilo, Eurípedes que vão para o inferno. Seu entusiasmo, por verdadeiro que seja, é a sobrevivência do velho Teatro do Estudante e deve ser enterrado. Um homem como você, visceralmente ligado à sua terra - todos os seus trabalhos literários mais recentes comprovam isto -, não pode ter outro papel, como homem de teatro, senão o de revelar ao público de Pernambuco os textos nordestinos que ainda não tiveram sua oportunidade. Essa, sim, é a grande aventura espiritual que o espera enquanto homem de teatro. O mais são bordados, rendas e etiqueta.


Da resposta de Hermilo a Osman, em 29 de agosto de 1967 (p.123/4):


O Teatro Popular do Nordeste tem um programa em relação a teatro: os clássicos e os autores brasileiros. Não temos fugido dessa linha. Creio na atualidade do clássico e creio justamente na medida em que vem ao encontro da nossa posição de homem de teatro da hora atual. Montei dois nesta nova fase do TPN: O inspetor, de Gogol, e Um inimigo do povo, de Ibsen. O primeiro denunciava, dentro do espírito épico, o anti-iluminista que preside as nossas encenações, a corrupção administrativa e o ridículo das classes armadas; o segundo denunciava, ou melhor, rasgava o abscesso da demagogia e a falsa compreensão de massa. O que acontece com Antígona? O abuso da autoridade e a violentação do indivíduo. Não acha que isso é de uma atualidade a toda prova? Aí estão os IPMs, e aí está a realidade nordestina, principalmente tendo você em vista que a “roupagem” do espetáculo induz o espectador a situar-se numa situação que se repete há séculos e que estamos, nela, sofrendo. [...] Estamos vivendo uma época terrível e cabe a nós, artistas, lutar com as nossas armas pela sobrevivência do homem no momento e sua vivência integral através de exemplos. Montamos dois autores brasileiros: Dias Gomes e Hermilo Borba Filho. O primeiro com uma denúncia - O santo inquérito - e segundo uma farsa plautina à maneira nordestina, de sabor de região. E por que Antônio José? Porque todos nós sentimos a necessidade de ser Quixotes contra as baionetas e as bombas. Não é uma forma de luta? Além disso, a peça está dentro do espírito nordestino lúdico, do bestiário, da imaginação, dos cantos, do mamulengo. [...] Todas as peças que citei estão perfeitamente enquadradas dentro da nossa linha anti-iluminista, com bases muito menos em Brecht, por exemplo, que no Bumba-meu-boi.


Osman a Hermilo, em 6 de setembro de 1976 (p. 127):


Sou muito grato por haver acolhido com tanta generosidade minha última carta. Eis uma das raras vezes em que uma argumentação contrária nos causa uma grande alegria, pela dignidade e pela consciência que revela. Gostaria de, um dia, dar a público essa sua carta, documento intelectual de grande importância e um dos melhores que me têm chegado às mãos. Você esclareceu a sua posição com raro equilíbrio e extrema lucidez.



Agora, a questão da montagem do Auto do salão do automóvel. Depois de ter assistido a um ensaio da peça, Osman escreve em 21 de outubro de 1970 uma longa carta a Hermilo (p.246-50), em que discorda da concepção do espetáculo pelo diretor. Eis alguns trechos:



Concluí, da conversa com o Pimentel e do ensaio, que vi, que ele está bastante errado na sua compreensão da peça. [...] Foi feita, sem nenhuma consulta a mim, uma transposição da peça, concebida tendo em vista a realidade paulistana, para o Recife. [...]




BARBOSA, Nelson Luís (pesquisa documental, edição de texto fidedigno e anotada, introdução). Correspondência entre os escritores Osman Lins e Hermilo Borba Filho. São Paulo, Hucitec, 2024.


O Pimentel disse-me que iria rever o problema. Mas faço questão de insistir: não concordo de maneira nenhuma com a transposição. [...] Foram feitas várias alterações no texto, também sem nenhuma consulta a mim. Algumas, é certo, devido à transposição da ação da peça. Outras, porém, foram simplesmente despropositadas. [...] O Pimentel compreendeu que na peça há um guarda. Nada mais errado. O guarda de Ciclistas e Pedestres nada tem de “real”. É um guarda fantástico, solidário com os Bancos, a mass media, a propaganda, com tudo que dirige os homens.






Os conterrâneos Osman Lins e Hermilo Borba Filho mantiveram constante e densa correspondência epistolar, entre 1965 e 1976.


[...] Ora, o Pimentel estava vendo nesse guarda um indivíduo esmagado quando ele é exatamente um ser solidário com o esmagamento. [...] Vão então, aqui, algumas exigências para a apresentação da peça, aliás poucas mas importantes: obediência rigorosa ao texto que lhe enviei, sendo considerado inidôneo o que está em mãos do Pimentel; só serão feitas, no mesmo, as modificações absolutamente indispensáveis, devendo ser mantidas, tanto quanto possível, as informações existentes sobre a topografia de São Paulo e outras características da cidade; decorre daí que a ação da peça não poderá ser transferida para qualquer outra cidade; ainda em obediência ao texto, deverá haver, na encenação, uma delimitação tão clara quanto possível entre o mundo de Ciclistas e Pedestres e o restante da peça. [...] O Fanático do Trânsito. Na direção de Pimentel, está ágil, vivaz. Errado. Trata-se de um chato, um conversa-mole. Um tipo que não tem o que fazer e que fica bestando junto ao guarda. [...] Nem por sonho os gritos de “bicha! bicha” que meteram no texto, com o objetivo de fazer graça. A fala de Hamlet aos comediantes continua válida. [...] P.S. - Se você quiser manter a peça, precisa tomar providências urgentes para submeter à Censura o texto verdadeiro. Pois o que está lá, se é uma cópia do que vi com o Pimentel, não é meu.


Hermilo a Osman, em 29 de outubro de 1970 (p.251-2):

Com toda a honestidade acho que Pimentel imprimiu ao seu texto uma dinâmica que ele não tem. Você esmiúça certos detalhes como autor, esquecendo que uma mesma peça, encenada por cinco diretores diferentes, poderá ter cinco visões diferentes. Leia com atenção e amizade a carta de Pimentel e nos responda por telegrama a sua resolução. Será uma pena que não montemos a peça, já com publicidade iniciada, já com contratos em outras cidades, já com estreia marcada aqui para o dia 20 de novembro, mas quero dizer-lhe que concordo com quase tudo que Pimentel lhe diz. [...] Lembre-se de Hamlet em roupas modernas, de A megera domada musicada, de tantos outros exemplos, não seja intransigente à manutenção de certos subjetivismos do texto, lembre-se de que o drama é uma coisa e o espetáculo outra. [...] Pense um pouco, Osman: a interpretação de um romance pertence ao leitor, a de um quadro ao observador, a de um texto escrito para teatro ao encenador. Claro que tudo o que lhe dizemos, eu e Pimentel, é da maneira mais fraternal possível, dentro da abertura da sua carta, afastadas certas ranzinzices, a amizade permanecendo a mesma, quer você dê ou não a sua autorização. Neste último caso, seria uma pena, porque o espetáculo é absolutamente idôneo.





Em 1975, Hermilo escreve a Osman.



Conforme pedido de Hermilo, Osman responde por telegrama: “Concordo”. Mas, após o fim precoce da temporada da peça, ele escreve ao amigo, em carta de 2 de fevereiro de 1971 (p.268): “Vai vendo que o nosso Pimentel não estava tão certo quanto pretendia estar”. Numa carta ao “fraterno” conterrâneo, Osman Lins se refere aos Estados Unidos como “[n]aquele diabo de país” (p.102), e em carta a Leda Alves (p.493), viúva de Hermilo, chama Walt Disney de “vigarista”. O leitor de E viva a vida! certamente vai se perguntar o que Osman Lins diria hoje sobre os Estados Unidos e o seu atual presidente.

Referências
BARBOSA, N. L. (pesquisa documental, edição de texto fidedigno e anotada, introdução). Correspondência entre os escritores Osman Lins e Hermilo Borba Filho. São Paulo, Hucitec, 2024.
Revista Estudos Avançados - USP