quarta-feira, 17 de junho de 2009

Apocalipse Motorizado

Crítica à sociedade motorizada
Livro discute poluição, exclusão social e outros males trazidos pelo uso do carro


Por que nos sujeitamos a um meio de transporte que causa, só no Brasil, a morte de 46 mil pessoas por ano? A troco de quê ajudamos a sustentar o mercado da indústria automobilística e petrolífera que fomenta tantas guerras? Por que julgamos tão necessário um veículo que é a maior causa da poluição atmosférica e do aquecimento global? Quantos ainda terão que se sacrificar para que alguns desfrutem o conforto de seu carro em congestionamentos?
Essas são algumas questões levantadas pelo livro Apocalipse motorizado - a tirania do automóvel em um planeta poluído. A obra é uma coletânea de textos que questionam a imposição social desse veículo, discutem problemas gerados pela sua superabundância, a expropriação do espaço público urbano e a exclusão social que ele acarreta.

O livro é organizado por Ned Ludd, que no ensaio de abertura conta a história do veículo no Brasil e chama a atenção para o culto ao carro que se pratica no cotidiano. "Questionar o automóvel implica, imediata e necessariamente, questionar a própria organização social e as necessidades e funções que lhes são próprias", defende.

A leitura continua com os textos do ambientalista radical Ivan Illich e do sociólogo André Gorz, que apontam os problemas da poluição e destruição do meio ambiente pela obtenção de energia para a produção e 'consumo' do carro. Gorz denuncia um paradoxo ligado à cultura do automóvel: "Ele é imprescindível para escapar do inferno urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo tornou-se necessário".

Outra reflexão levantada por Gorz -- e pelos textos seguintes, dos grupos Aufheben (alemão) e Mr. Social Control (tcheco) -- discute a estruturação do espaço urbano. "A verdade é que ninguém tem opção", lamenta Gorz. "Não se é livre para ter ou não um carro uma vez que o universo dos subúrbios é projetado em função dele."

Os grupos europeus também destacam a identidade estabelecida pelo carro e a exclusão social por ele provocada. "Quanto mais dinheiro é gasto por motoristas, mais lugares tornam-se fora do alcance das pessoas que não possuem carros, veja-se o êxodo de lojas das ruas principais para os anéis viários", afirma o texto tcheco. A falsa sensação de liberdade associada ao veículo e alimentada pela publicidade é outro tema evocado. "Ironicamente, a máquina que é vendida por sua capacidade de dar liberdade de movimentos e por sua capacidade de cobrir distâncias cria tanta distância quanto atravessa", acusam os alemães.

Os artigos de Apocalipse motorizado são ilustrados com charges do cartunista americano Andy Singer

O livro segue com propostas criativas e bem-humoradas de ações práticas para se opor à ditadura do automóvel -- como transformar as placas de 'Pare' em 'Pare de dirigir'. "Construa uma armação do tamanho de um carro para sua bicicleta e ande com ela pela cidade", sugerem ainda os autores.

Os artigos de Apocalipse motorizado têm linguagem simples e didática. Embora muitas vezes defenda pontos de vista irredutíveis e não apresente contrapontos ou soluções concretas para os problemas expostos, o livro funciona como um instigante guia de reflexão sobre a organização do atual sistema de transportes.

Apocalipse motorizado - a tirania do
automóvel em um planeta poluído
Ned Ludd (org.)
São Paulo, 2004, Conrad Editora
Telefone: (11) 3346-6088
160 páginas

Revista Ciência Hoje

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Convite à Filosofia


Para que serve a filosofia?
Maria Das Graças De Souza Nascimento

Convite à Filosofia
Marilena Chauí.
Ática 440 págs.

Concebido originalmente como um livro para estudantes de segundo grau, o Convite à Filosofia, de Marilena Chauí, recentemente publicado pela Editora Ática, é muito mais do que um simples texto didático. É uma introdução ao universo filosófico que deverá interessar a todos aqueles leitores que tenham o gosto pelo exercício do pensamento.
São várias as dificuldades que devem ser enfrentadas pelo autor de uma introdução à filosofia. Uma delas diz respeito à exigência de manter a clareza e a simplicidade, sem contudo abandonar o rigor. Neste aspecto, o livro de Marilena Chauí é notável. Sem recorrer a procedimentos facilitadores, trata questões por natureza difíceis de modo claro e perfeitamente compreensível para um leitor não iniciado, mantendo sempre a exatidão exigida pela linguagem filosófica.
Costuma acontecer que os autores deste gênero de livros, temendo que a aridez dos conceitos afaste o leitor, cedam à tentação de resvalar para temas que lhes pareçam mais atraentes, e acabem introduzindo no texto questões não filosóficas. O Convite à Filosofia, distanciando-se desta tendência, permanece estritamente no campo filosófico, e trata dos temas mais árduos, sem se furtar a apresentá-los ao leitor iniciante.
Tendo optado por uma organização temática, não perde de vista a história da filosofia. Abrangente e bem ordenada, a divisão dos temas estabelece a contextualização dos problemas, de tal modo que se possa acompanhar as suas retomadas no decorrer da tradição, assim como as transformações que possam ter ocorrido tanto na maneira de formular as questões quanto na natureza de suas respostas, segundo os diversos autores e as diversas épocas.
Émile Brehier, na introdução de sua clássica História da Filosofia, considera que aquele que quiser empreeender um estudo histórico da filosofia deve antes tomar posição a respeito de três questões fundamentais. Em primeiro lugar, é preciso enfrentar a questão das origens da filosofia e de suas fronteiras. Em seguida, trata-se de estabelecer se a filosofia tem ou não um desenvolvimento autônomo em relação a outras disciplinas, como as ciências, as artes ou a literatura. Por último, o historiador da filosofia deve mostrar se há ou não na filosofia uma evolução regular, ou se as soluções dos problemas colocados já foram dadas definitivamente pela tradição. O Convite à filosofia, embora não se apresente sob a forma de uma história da filosofia, mas de uma introdução temática a questões filosóficas, parece ter resolvido estas questões de forma extremamente feliz.
A análise da natureza do saber filosófico, no capítulo inicial, chega a resultados importantes tanto para a iniciação filosófica propriamente dita quanto para o conhecimento de nossa cultura. Ao estabelecer o legado da filosofia grega para o ocidente em geral, a autora assinala uma distinção fundamental entre a filosofia e as chamadas sabedorias orientais. Estas, embora constituam um saber a respeito do mundo e dos homens, não podem ser consideradas como filosofias. O saber filosófico, como mostra Marilena Chauí, não é apenas um modo de pensar inaugurado pelos gregos da Antiguidade, mas uma "aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana", que enquanto tal marcou definitivamente nossas próprias formas de apreender o mundo e as ações dos homens, independentemente de possuirmos ou não informação sobre o conteúdo dos sistemas filosóficos.
Acreditamos, por exemplo, que a natureza obedece a leis regulares, que nosso próprio pensamento também obedece a certas regras lógicas, e que tanto as leis naturais quanto as leis do pensamento podem ser conhecidas. Aceitamos que as ações humanas são resultado de nossas decisões e costumam ser realizadas a partir de certos valores. Enfim, concordamos que o mundo e a realidade dos homens não são governados por poderes desconhecidos, mas, ao contrário, são compreensíveis para qualquer um que se proponha a buscar a verdade. Fazemos isto porque somos herdeiros de um modo específico de pensar que é o da filosofia cuja origem é grega. Ao desvendarmos as características da filosofia, acabamos descobrindo a natureza de nossas próprias formas de pensar atuais.
Em relação à autonomia do saber filosófico diante dos outros domínios do saber, Marilena Chauí mostra não apenas que por sua natureza a indagação filosófica se distingue das questões a que se propõem a literatura, as ciências e a teologia, como também assinala que estes mesmos saberes não filosóficos se tornam objeto de investigação do filósofo. Assim , por exemplo, a arte se torna objeto da estética, disciplina filosófica que investiga a natureza da obra de arte e o conceito de beleza artística. A própria ciência tem seus fundamentos investigados pela filosofia da ciência, assim como ocorre com a teologia e a ciência política.
No que diz respeito à justaposição dos sistemas filosóficos elaborados pela tradição, o livro não deixa de apresentar a sua diversidade e mesmo a impermeabilidade de uns em relação aos outros, mas ao mesmo tempo procura assinalar a contribuição específica destes sistemas para a cultura. Na visão da autora, o "conflito das filosofias" não é razão para nos levar ao ceticismo. Ao contrário, a tradição filosófica é, tal como se apresenta no livro, um patrimônio cultural de cujo reconhecimento depende a compreensão de nosso mundo contemporâneo, dos impasses com os quais ele se defronta e da descoberta de soluções satisfatórias para estes impasses.
Mas não é apenas na perspectiva geral de herança cultural que a filosofia nos remete à nossa própria cultura. Os instrumentos oferecidos pela reflexão filosófica possibilitam a problematização das experiências da vida cotidiana, criando condições para a sua melhor compreensão. É assim que, por exemplo, o estudo do problema filosófico da verdade, além de nos colocar em contato com as diversas doutrinas desenvolvidas pela tradição, nos leva a refletir sobre certos aspectos de nossas sociedades contemporâneas. Tomemos, por exemplo, o fenômeno da propaganda pelos meios de comunicação de massa. A filosofia nos ensina que uma das exigências que constituem o campo da busca do verdadeiro consiste em compreender as causas da diferença entre o ser e o parecer. Assim, ela nos permite tomar distâncias em relação a estes meios de persuasão coletiva e assumir diante deles a atitude crítica que nos põe a salvo do domínio desta técnica contemporânea, que como sabemos, não se limita a oferecer produtos de consumo, mas também idéias, concepções políticas e morais e mesmo religiosas. Do mesmo modo, é a distinção entre o ser e o parecer que nos permite desvendar, por trás da pretensa verdade dos discursos políticos, as ideologias, que, enquanto representações da sociedade comprometidas com interesses de grupos, mascaram as verdadeiras relações de dominação.
É por ter assumido esta perspectiva que Marilena Chauí enfrenta uma questão que não costuma ser levada a sério: para que serve a filosofia? A autora, ousadamente, afirma que a filosofia "proclama o direito de ser inútil", se entendermos como útil algo que proporciona riquezas, fama ou vantagens desta natureza. Mas se considerarmos útil aquilo que nos liberta da ignorância e do preconceito, o que nos permite criticar os poderes estabelecidos de qualquer natureza, o que possibilita compreender o sentido das ações e da história dos homens, então a filosofia, diz a autora, "é o mais útil de todos os saberes".
MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA NASCIMENTO é professora do departamento de filosofia da USP

Folha de São Paulo

A Emancipação do Discurso - Vols. 1 e 2


A invenção da América
Fábio De Souza Andrade
A Emancipação do Discurso - Vols. 1 e 2
Vários autores
Organizadora: Ana Pizarro Memorial da América Latina, Ed. da Unicamp, 829 págs.
No discurso latino-americano, o Brasil costuma aparecer às vezes como um imenso aposto, às vezes como uma adversativa -um país ilhado em língua própria, em autocontemplação satisfeita ou preocupada de suas diferenças e dimensões, cioso de sua singularidade. É preciso desfazer energicamente esta confusão. Um país, uma nação, mesmo uma comunidade de países, não é questão apenas de cercas e fronteiras. É coisa mental, como a poesia. E, se um país se faz mesmo com homens e livros, nunca isso foi tão verdade quanto durante o romantismo, quando também a poesia fez da idéia de nação o seu oxigênio.
Os ensaístas do segundo volume da obra coletiva "América Latina: Palavra, Literatura e Cultura" tratam justamente da "emancipação do discurso" literário durante o século 19 nestes países emergentes, saindo ou recém-saídos do contexto colonial, em busca de identidades próprias e às voltas com problemas comuns. Emancipação também da própria arte das palavras, caminhando ao longo do século em direção à profissionalização dos escritores e do esteticismo dos movimentos de vanguarda. Através desta coletânea, acompanha-se a progressiva submissão da literatura a uma especialização do saber. Sua importância, antes dispersa por todas as esferas da vida latino-americana, concentra-se. No lugar de uma literatura de sondagens, tentacular, afirma-se uma de maior consciência formal, menos diletante e abrangente, mais madura e autocentrada.
O recorte cronológico do volume coincide com o período do historicismo e particularismo românticos. Os primeiros ensaios tratam justamente da transição do pensamento ilustrado para o romântico, na virada do século 18. Jorge Reudas de la Serna, por exemplo, faz uma revisão do arcadismo brasileiro à luz da assimilação brasileira do Iluminismo. O professor e diplomata mexicano mostra que, sob a aparente neutralidade e universalismo da forma neoclássica, se escondem pressões locais e externas, um forte e conflitivo desejo de originalidade. Como resultado, confessamente tributário de Antonio Candido, Ruedas de la Serna afirma que obras como a dos árcades brasileiros não podem ser reduzidas a uma manifestação epigonal e obediente das academias européias.
Os movimentos de independência política representam no contexto latino a troca de interlocutores e de modelos. As colônias ibéricas voltam-se para França em particular e, no contexto local, acentuam as diferenças entre si. O caso brasileiro tem suas particularidades. Enquanto os vizinhos precisavam inventar peculiaridades e mitos de fundação que os identificassem, o Brasil buscava suprimir os focos de divergência regional e fortalecer uma imagem comum, mas para isso precisou também cultivar uma genealogia mitologizada, fabricada.
Estamos às voltas com a fundação de literaturas nacionais, evidente em artigos como o de Flora Süssekind, atenta ao trabalho de ferreiros que os escritores românticos brasileiros têm para forjar uma língua própria. A decisão por um estilo impuro é pensada. Do empenho em criar um país novo, vem a necessidade de mesclar à fala hegemônica, herança do colonizador, a expressão local, expurgar ou ampliar vocabulários como gesto político.
A invenção simultânea de país e literatura fica clara também no ensaio de Jaime Alazraqui, que descreve a invenção do romance e do conto argentinos em meio ao torvelinho social-político do processo de modernização dos pampas. Exilados durante a ditadura de Rosas, a ficção de Sarmiento, Echeverría e Marmól diagnostica e representa liberariamente a crise do país, em meio ao surgimento de caudilhos e dos primeiros embriões do populismo. Apanha no ar e coloca em palavras uma terra que ainda se reconhecia na liderança dos estancieiros do Plata, ao mesmo tempo em que passa a flertar com o cosmopolitismo inglês.
A valorização do único, do próprio, do peculiar, em suma, das diferenças, traduziu-se em desafio de incorporação ou cooptação de expressões literárias populares. A equivalência entre nacional e popular aparecia como defesa natural contra a atração das culturas estrangeiras. Não são poucos os ensaios que mostram o quanto de idealização -paradoxalmente, carregada de valores eurocêntricos- permeou esta equação romântica, transfigurando o local em pitoresco, em exótico.
Mas a opção pelo típico foi mais do mera ideologia. A aproximação da literatura tradicional, da oralidade da poesia popular deu corpo a boa parte da literatura latina do século passado. O volume organizado por Ana Pizarro traz tanto ensaios dedicados a uma apresentação panorâmica das diversas correntes regionalistas do continente (a poesia gauchesca, o cordel brasileiro, as expressões ligadas às culturas indígenas), como discussões sobre as modalidades de apropriação desta herança, de assunto a elemento determinante da forma.
O leque de possibilidade no estudo das relações entre palavra e vida social é explorado de ponta a ponta no volume -desde a instrumentalização documental do fato literário, até a realização da mais tradicional história literária, o elenco de nomes e obras. Isto se explica em parte pelo gigantismo do projeto -envolvendo mais de 20 autores por volume- em parte também pelo tamanho da ignorância recíproca, que obriga, a cada passo em busca das semelhanças, a recomeçar do princípio, recapitular ab ovo.
Mas a diversidade de enfoques mostra também a pluralidade metodológica. Ao lado de ensaios marcadamente influenciados pelo último grito acadêmico -a reescrita da teoria e história literárias a partir do ponto de vista de minorias (mulheres, literatura engajada etc)-, aparecem estudos monográficos sobre figuras singulares e gigantes na literatura do continente. Este é o caso de trabalhos como o de Walnice Nogueira Galvão, sobre Euclides da Cunha, ou o de Roberto Schwarz, sobre Machado de Assis, estudando na ascensão e queda de Capitu, os motivos sociais que tornam Bentinho, o narrador pouco confiável de "Dom Casmurro", uma construção convincente, representativa e genial.
Nem todos estudos encontram o balanço feliz entre palavra, literatura e cultura. Mas, ainda que desequilibrado aqui e ali, o conjunto não deixa de acender uma vela no breu. Tem o mérito esclarecedor de combater um desconhecimento vergonhoso e convidar à reflexão sobre os fios que interligam idéias de pensadores aparentemente tão remotos. Até o mais ferrenho adversário do latino-americanismo, se pegará matutando sobre o que faz, por exemplo, das imagens do Eldorado, da Terra da Utopia e da "raça americana" esperança da humanidade tão recorrentes? Por que atravessaram os séculos e entusiasmaram pensadores tão distantes ideologicamente quanto os mexicanos Alfonso Reyes, José Vasconcelos ou o nosso Darcy Ribeiro? O comparatismo, apenas engatinhando entre nós, se encarregará de responder.
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE é professor de teoria literária na Universidade Estadual Paulista

Folha de São Paulo

A Emancipação do Discurso - Vols. 1 e 2


A invenção da América

Fábio De Souza Andrade

A Emancipação do Discurso - Vols. 1 e 2
Vários autores
Organizadora: Ana Pizarro Memorial da América Latina, Ed. da Unicamp, 829 págs.

No discurso latino-americano, o Brasil costuma aparecer às vezes como um imenso aposto, às vezes como uma adversativa -um país ilhado em língua própria, em autocontemplação satisfeita ou preocupada de suas diferenças e dimensões, cioso de sua singularidade. É preciso desfazer energicamente esta confusão. Um país, uma nação, mesmo uma comunidade de países, não é questão apenas de cercas e fronteiras. É coisa mental, como a poesia. E, se um país se faz mesmo com homens e livros, nunca isso foi tão verdade quanto durante o romantismo, quando também a poesia fez da idéia de nação o seu oxigênio.
Os ensaístas do segundo volume da obra coletiva "América Latina: Palavra, Literatura e Cultura" tratam justamente da "emancipação do discurso" literário durante o século 19 nestes países emergentes, saindo ou recém-saídos do contexto colonial, em busca de identidades próprias e às voltas com problemas comuns. Emancipação também da própria arte das palavras, caminhando ao longo do século em direção à profissionalização dos escritores e do esteticismo dos movimentos de vanguarda. Através desta coletânea, acompanha-se a progressiva submissão da literatura a uma especialização do saber. Sua importância, antes dispersa por todas as esferas da vida latino-americana, concentra-se. No lugar de uma literatura de sondagens, tentacular, afirma-se uma de maior consciência formal, menos diletante e abrangente, mais madura e autocentrada.
O recorte cronológico do volume coincide com o período do historicismo e particularismo românticos. Os primeiros ensaios tratam justamente da transição do pensamento ilustrado para o romântico, na virada do século 18. Jorge Reudas de la Serna, por exemplo, faz uma revisão do arcadismo brasileiro à luz da assimilação brasileira do Iluminismo. O professor e diplomata mexicano mostra que, sob a aparente neutralidade e universalismo da forma neoclássica, se escondem pressões locais e externas, um forte e conflitivo desejo de originalidade. Como resultado, confessamente tributário de Antonio Candido, Ruedas de la Serna afirma que obras como a dos árcades brasileiros não podem ser reduzidas a uma manifestação epigonal e obediente das academias européias.
Os movimentos de independência política representam no contexto latino a troca de interlocutores e de modelos. As colônias ibéricas voltam-se para França em particular e, no contexto local, acentuam as diferenças entre si. O caso brasileiro tem suas particularidades. Enquanto os vizinhos precisavam inventar peculiaridades e mitos de fundação que os identificassem, o Brasil buscava suprimir os focos de divergência regional e fortalecer uma imagem comum, mas para isso precisou também cultivar uma genealogia mitologizada, fabricada.
Estamos às voltas com a fundação de literaturas nacionais, evidente em artigos como o de Flora Süssekind, atenta ao trabalho de ferreiros que os escritores românticos brasileiros têm para forjar uma língua própria. A decisão por um estilo impuro é pensada. Do empenho em criar um país novo, vem a necessidade de mesclar à fala hegemônica, herança do colonizador, a expressão local, expurgar ou ampliar vocabulários como gesto político.
A invenção simultânea de país e literatura fica clara também no ensaio de Jaime Alazraqui, que descreve a invenção do romance e do conto argentinos em meio ao torvelinho social-político do processo de modernização dos pampas. Exilados durante a ditadura de Rosas, a ficção de Sarmiento, Echeverría e Marmól diagnostica e representa liberariamente a crise do país, em meio ao surgimento de caudilhos e dos primeiros embriões do populismo. Apanha no ar e coloca em palavras uma terra que ainda se reconhecia na liderança dos estancieiros do Plata, ao mesmo tempo em que passa a flertar com o cosmopolitismo inglês.
A valorização do único, do próprio, do peculiar, em suma, das diferenças, traduziu-se em desafio de incorporação ou cooptação de expressões literárias populares. A equivalência entre nacional e popular aparecia como defesa natural contra a atração das culturas estrangeiras. Não são poucos os ensaios que mostram o quanto de idealização -paradoxalmente, carregada de valores eurocêntricos- permeou esta equação romântica, transfigurando o local em pitoresco, em exótico.
Mas a opção pelo típico foi mais do mera ideologia. A aproximação da literatura tradicional, da oralidade da poesia popular deu corpo a boa parte da literatura latina do século passado. O volume organizado por Ana Pizarro traz tanto ensaios dedicados a uma apresentação panorâmica das diversas correntes regionalistas do continente (a poesia gauchesca, o cordel brasileiro, as expressões ligadas às culturas indígenas), como discussões sobre as modalidades de apropriação desta herança, de assunto a elemento determinante da forma.
O leque de possibilidade no estudo das relações entre palavra e vida social é explorado de ponta a ponta no volume -desde a instrumentalização documental do fato literário, até a realização da mais tradicional história literária, o elenco de nomes e obras. Isto se explica em parte pelo gigantismo do projeto -envolvendo mais de 20 autores por volume- em parte também pelo tamanho da ignorância recíproca, que obriga, a cada passo em busca das semelhanças, a recomeçar do princípio, recapitular ab ovo.
Mas a diversidade de enfoques mostra também a pluralidade metodológica. Ao lado de ensaios marcadamente influenciados pelo último grito acadêmico -a reescrita da teoria e história literárias a partir do ponto de vista de minorias (mulheres, literatura engajada etc)-, aparecem estudos monográficos sobre figuras singulares e gigantes na literatura do continente. Este é o caso de trabalhos como o de Walnice Nogueira Galvão, sobre Euclides da Cunha, ou o de Roberto Schwarz, sobre Machado de Assis, estudando na ascensão e queda de Capitu, os motivos sociais que tornam Bentinho, o narrador pouco confiável de "Dom Casmurro", uma construção convincente, representativa e genial.
Nem todos estudos encontram o balanço feliz entre palavra, literatura e cultura. Mas, ainda que desequilibrado aqui e ali, o conjunto não deixa de acender uma vela no breu. Tem o mérito esclarecedor de combater um desconhecimento vergonhoso e convidar à reflexão sobre os fios que interligam idéias de pensadores aparentemente tão remotos. Até o mais ferrenho adversário do latino-americanismo, se pegará matutando sobre o que faz, por exemplo, das imagens do Eldorado, da Terra da Utopia e da "raça americana" esperança da humanidade tão recorrentes? Por que atravessaram os séculos e entusiasmaram pensadores tão distantes ideologicamente quanto os mexicanos Alfonso Reyes, José Vasconcelos ou o nosso Darcy Ribeiro? O comparatismo, apenas engatinhando entre nós, se encarregará de responder.
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE é professor de teoria literária na Universidade Estadual Paulista

Folha de São Paulo

Monções ; Caminhos e Fronteiras


Sérgio Buarque de Holanda entre a história e a sociologia
Laura De Mello E Souza

Monções
Sérgio Buarque de Holanda
Brasiliense, 326 págs.

Caminhos e Fronteiras
Sérgio Buarque de Holanda
Companhia das Letras, 301 págs.
Sobre Sérgio Buarque de Holanda, existem hoje algumas certezas bem firmadas. Dentro e fora dos círculos acadêmicos, é visto como o maior dos historiadores brasileiros. Todo leitor culto reconhece em Raízes do Brasil uma obra-prima ; todo estudioso de História considera Visão do Paraíso a expressão máxima da erudição nacional. Existem entretanto dois livros seus que ainda não receberam a atenção merecida: Monções, de que a imprensa praticamente ignorou a edição ampliada vinda à luz em 1990; Caminhos e Fronteiras, reeditado pela terceira vez em 1994 e tratado com igual indiferença.
A afinidade entre os dois trabalhos é evidente, e, aliás, explicitada pelo autor na Introdução ao segundo. Monções foi publicado pela primeira vez em 1945, e Caminhos e Fronteiras reuniu, doze anos depois, ensaios escritos nesse meio tempo. Mais de um especialista aludiu ao papel de divisor de águas representado pelos dois livros, que documentam o nascimento de um Sérgio eminentemente historiador, às voltas com os arquivos e a pesquisa sistemática de fontes primárias, e o abandono do ensaísmo mais sociológico de Raízes do Brasil (1). Da fase anterior, permaneceu entretanto a presença da cultura alemã (ou por esta influenciada), sobretudo na forma da antropologia. É interessante ressaltar esta interdisciplinariedade, central em todas as profissões de fé produzidas durante a primeira fase da "revolução historiográfica francesa", capitaneada por Lucien Febvre e Marc Bolch, e à qual Sérgio chegou por vias diferentes das dos historiadores dos Annales (2). Em decorrência do intercâmbio fecundo com a psicologia social, a sociologia, a antropologia e a linguística, os franceses postularam uma "história total", abrindo posteriormente espaço para que vicejasse uma história das mentalidades e, mais recentemente, uma história cultural. Após o estudo minucioso das técnicas e práticas da vida cotidiana - cuja inspiração veio da etnologia de Koch Grünberg, Nordenskiõld, Friederici, mas produziu resultados metodológicos originais - , encetado justamente nos dois livros que aqui se comenta, Sérgio concebeu Visão do Paraíso, obra próxima da história da cultura dos alemães mas igualmente aparentada à história das mentalidades francesa, que então - 1959 - dava seus primeiros passos.
A antropologia parece ter sido, assim, uma via necessária para refletir sobre processos históricos, notadamente no viés da análise cultural. No plano o mais genérico possível, o objeto de Monções e Caminhos e Fronteiras é a história dos paulistas antigos: populações mamelucas que viviam a cavaleiro de duas culturas, equilibrando-se na tensão entre mobilidade - o caminho, a penetração fluvial (monção) - e sedentarização - a fronteira, onde tradições de natureza diversa se combinavam, produzindo técnicas, costumes, atitudes, artefatos. Do ponto de vista metodológico, o autor busca compreender, em toda a sua complexidade, o mecanismo das trocas, sínteses e soluções culturais. Não se trata de constatar difusão de traços, mas de perceber que a forma assumida por tais traços foi definida pela situação histórica: esta é, afinal, a prova dos nove de todo o processo. Por fim, no plano mais circunscrito, a análise incide sobre a vida material - viés de que parte a compreensão mais funda, restabelecendo-se, assim, o percurso de volta do particular ao geral.
Em Monções, o autor destaca o fabrico das canoas - que o acidentado das viagens acabou por tornar cobertas -, a utilização dos rios como caminhos - introduzida pelos paulistas e imitada posteriormente no extremo Norte -, a adoção de roupas simples e rústicas, a configuração de uma dieta alimentar definida a partir das contingências da itinerância - o milho, cujas sementes eram de transporte fácil e germinação rápida; o toucinho, que se conservava bem.
Tributário, em muitos pontos, do livro anterior, Caminhos e Fronteiras apresenta, porém, complexidade bem maior. Os artigos originais datam de momentos diversos, mas o autor os dispôs de forma a dar ao todo uma grande unidade - reescrevendo, obviamente, pequenas passagens para assegurar a harmonia final. Os capítulos se ordenam em três núcleos: Índios e mamalucos, Técnicas rurais e O Fio e a teia. Nas palavras do autor, o primeiro núcleo aborda "as situações surgidas do contato entre uma população adventícia e os antigos naturais da terra com a subsequente adoção, por aquela, de certos padrões de conduta e, ainda mais, de utensílios e técnicas próprios dos últimos" (p.12). O segundo e o terceiro núcleos, por sua vez, abordam o processo de diluição desse legado, ocorrido nos primeiros tempos, e a lenta recuperação subsequente; a herança indígena se faz mais presente no segundo núcleo, pois no terceiro abordam-se "atividades que tendem a acomodar-se aos meios urbanos e se tornam, neste caso, cada vez mais dóceis aos influxos externos" (id.).
Apesar do pioneirismo no estudo do cultivo dos trigais, da pilação dos grãos, do trato do solo, da tecelagem de cunho doméstico - quando o autor mostra que a boa análise das técnicas deve se valer da antropologia e da consideração dos universos mentais envolvidos -, Índios e mamalucos se destaca das demais partes e conta entre as páginais mais brilhantes já produzidas pelas Ciências Humanas no Brasil.
Os nove artigos que compõem este núcleo se sucedem para o leitor como uma série de obras-primas impressionantes, capazes de surpreender e maravilhar a cada parágrafo. Muito antes das considerações de Carlo Ginzburg sobre o conhecimento indiciário, Sérgio Buarque de Holanda aborda este problema em "Veredas de pé posto" e "Samaritanas do sertão", detendo-se sobre a dimensão cultural dos sentidos e da percepção. No primeiro, discorre sobre a arte de se orientar no mato por meio da leitura de pegadas e ramos quebrados, mostrando ainda como há um "jeito de corpo" próprio para a marcha longa - os pés devem ficar ligeiramente voltados para dentro - , desde cedo incorporado pelos mameucos de São Paulo. No segundo, trata da questão do abastecimento de água durante as longas jornadas sertão adentro, e da forma própria aos caminhantes de decifrarem sinais referentes à existência de mananciais ou reservatórios.
"Iguarias de Bugre", "Caça e Pesca" e "Botica da Natureza" são um marco na trajetória do autor, contendo já algumas das questões posteriormente exploradas em Visão do Paraíso, onde o "gosto do maravilhoso" iria adquirir importância central. Exploram a incorporação, por parte do europeu, de hábitos alimentares, venatórios e curativos inusitados e exóticos, mostrando que, mesmo se subordinada à fome - "companheira da aventura" - , à itinerância ou à premência da doença, ela se fazia quase sempre através de critérios ora seletivos, ora analógicos. Estes últimos se encontram presentes, por exemplo, na crença na virtude de certas pedras existentes nas entranhas dos animais, identificadas pelos colonos à lendária pedra bezoar; manifestam-se ainda na adoção de certas práticas indígenas de pesca, como o hábito de intoxicar os peixes, velhas conhecidas dos portugueses. Na nova terra, diante de peculiaridades do meio natural, "onde não se reproduzem exatamente as visões habituais, a imaginação adquire direitos novos", apesar de haver sempre quem insistisse nas analogias, procurando "o honesto pão de trigo" na mandioca, a castanha européia na araucária, a uva na jabuticaba, a carne de vaca na de tamanduá - como registraram tantos dos primeiros cronistas.
Tais procedimentos, portanto, mostraram-se muito mais complexos do que as aparências levam a supor: "nada tão difícil (...) como uma análise histórica tendente a discriminar (...) entre os elementos importados e os que procederam diretamente do gentio. Traços comuns prepararam, sem dúvida, e anteciparam, a síntese desses diversos elementos" (p.78). "(...) ...são dignos de interesse, por outro lado, os processos de racionalização e assimilação a que o europeu sujeitou muitos de tais elementos, dando-lhes novos significados e novo encadeamento lógico, mais em harmonia com seus sentimentos e seus padrões de conduta tradicional" (pp.79-80).
Cabe destacar ainda "Frechas, feras, febres", o mais longo dos ensaios, e um dos mais belos - combinação exemplar de pesquisa histórica e observação etnográfica -, e "Frotas de Comércio", que retoma, às vezes de forma literal, passagens de Monções, acrescentando contudo uma analogia brilhante entre o fascínio lusitano pelo ultramar e o fascínio dos mamelucos paulistas pelo interior, as monções assumindo, neste imáginário, a forma de uma "migração ultramarina" (pp.149-150). Para Sérgio, trata-se, assim, do mesmo objeto repensado já à luz de outras cogitações: as que embalavam a feitura de Visão do Paraíso.
Escrevendo num momento em que muitos acreditavam na sobredeterminação do econômico, e quando se começava a cogitar, entre os historiadores franceses, na autonomia das mentalidades - fenômenos de longuíssima duração - Sérgio Buarque de Holanda fica numa espécie de meio-caminho extremamente sugestivo: Caminhos e Fronteiras mostra que foi nos aspectos da vida material que o colono e seus primeiros descendentes se mostraram mais sensíveis "a manifestações divergentes da tradição européia", mantendo, sempre que possível, o legado ancestral no tocante à vida familiar e em sociedade (p.12). Mas foram determinados traços de mentalidade, peculiares aos colonizadores portugueses, que permitiram operar a seleção das técnicas adotadas, a retirar, da botica da natureza, certas substâncias e não outras, imprimindo sentido nos arranjos culturais e influindo sobre a história dos homens. Mentalidade que não se apresentava quase imóvel, como nos trabalhos de Philippe Ariès, mas passível de ir se alterando aos poucos, sob o impacto da "agitação de superfície" representada pela adoção de novas técnicas e de novos costumes (p.136).
Mas se é um marco inovador, Caminhos e Fronteiras não perde de vista a melhor tradição historiográfica brasileira. Vida e Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado, econtra-se presente em muitos pontos - Sérgio mostra, em "Redes e redeiras", que uma rede valia tanto, ou pouco mais do que uma casa de um lanço (um pavimento) na São Paulo seiscentista (p.249). A habilidade em desvendar os significados ocultos nos hábitos alimentares, nas vestimentas, na relação com a topografia e as plantas invocam Capistrano de Abreu e os Capítulos de História Colonial, citados em várias passagens. Como diz o título, Caminhos e Fronteiras demarca territórios, indicando um tempo novo nos estudos de história, mas é também confluência de muitas picadas e atalhos mais antigos.
1. Cabe destacar as considerações de Maria Odila Silva Dias, "Sérgio Buarque de Holanda, historiador" - Introdução a Sérgio Buarque de Holanda, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1985, pp. 25 e segs.
2. Uso a expressão de Peter Burke, A escola dos Annales - 1929-1989 - A Revolução Francesa da Historiografia, trad., São Paulo, Editora Unesp, 1991.
LAURA DE MELLO E SOUZA é professora do departamento de filosofia da USP

Folha de São Paulo

CAPÍTULOS DE LITERATURA COLONIAL


Além da história literária
Ricardo Musse

CAPÍTULOS DE LITERATURA COLONIAL
Sérgio Buarque de Holanda
Antonio Candido
Brasiliense
465 págs.
A oscilação entre as tentativas de crítica literária e a tarefa de historiador - presente tanto na vida profissional de Sérgio Buarque de Holanda dedicada ora ao jornalismo, ora ao ensino, quanto nas próprias obras que também poderiam ser organizadas segundo estas vertentes - perpassa esses Capítulos de Literatura Colonial adquirindo aí, precisamente pela confluência e paroxismo dessas tendências, um estatuto que talvez ilumine essa conexão ao longo de toda a sua obra.
Afinal, Capítulos... articula a leitura de textos, sua avaliação e inserção no complexo literário com o tratamento biográfico e historiográfico dos autores e dos estilos, procurando identificar idéias, modos de sentir, e, estabelecer, assim, seus significados históricos e culturais. Se, portanto, é possível discernir, por um lado, o manejo do aparato de crítico literário na abordagem da métrica, na identificação de tropos ou na análise ponderada dos valores estéticos das obras, por outro lado, torna-se visível - seja na reconstituição filológica de textos, seja na pesquisa empírica levada a cabo junto à Arcádia Romana - a mão do historiador.
O resultado final e a organicidade do todo, no entanto, nos obrigam a suspeitar que há mais conexões entre estes pólos do que acreditam aqueles intérpretes que enfatizam a dicotomia na obra de Sérgio Buarque.
Nos trechos onde prevalece o enfoque daquela disciplina acadêmica que requer a simultaneidade destes dois saberes - a história da arte -, o crítico e o historiador se superpõem harmonicamente. Assim, em páginas magistrais Sérgio Buarque nos encaminha para o entendimento da especifidade de épocas e de universos mentais distintos do nosso, destacando, por exemplo, a premissa racionalista que nos impede de compreender como pôde Vieira conciliar, ao mesmo tempo, a crença sebastianista e o pragmatismo econômico.
A tensão dialética, as interferências entre o arsenal e o enfoque do historiador e do crítico nem sempre se resolvem na reconciliação marcada pela figura do historiador da literatura. Nos momentos mais interessantes do livro essas vertentes entrecruzam-se gerando novas modalidades: o historiador crítico, revisitando o passado com um olho na historiografia presente (e que não hesita em desmentir Afrânio Coutinho e Gilberto Freyre), ou o crítico historiador, reconstituindo eruditamente as conexões internas e externas, sociais e literárias, de um poema.
No andamento da obra, ou melhor, na sua composição, estas interferências ficam ainda mais claras. Afora os apêndices que contêm um esboço incompleto da biografia de Vieira e um panorama introdutório da literatura colonial, o livro pode ser dividido em três partes: um capítulo sobre a poesia épica, um ensaio que procura determinar a singularidade teórica do Arcadismo e um longo estudo sobre Cláudio Manuel da Costa.
A novidade do primeiro capítulo - a construção de uma sequência que, longe do gradualismo ou da cronologia, previlegia a persistência, através das diversas vertentes do gênero épico, de conjuntos temáticos e estilos de época - é contrabalanceada pelo segundo ensaio dedicado a uma rigorosa delimitação do Arcadismo, separando-o do Barroco e do pré-Romantismo. A atenção de Sérgio Buarque à relação entre continuidade e ruptura - uma constante em seus escritos, num diálogo permanente com o historicismo e a escola dos Annales - transmuta, porém, questões específicas da crítica literária, tais como a determinação e filiação a estilos de época, em questões mais gerais da historiografia, de tal forma que o estudo sobre Cláudio Manuel da Costa deve ser visto como uma síntese dessas relações entre processo, tradição e inovação, ruptura.
Nessa ótica, Capítulos de Literatura Colonial, estudo da vida espiritual numa de suas formas mais elaboradas, complementa a reconstituição da vida material durante os tempos coloniais levada a cabo em Caminhos e Fronteiras. Ambos tematizam a formação social e cultural do Brasil, detendo-se em processos paralelos: neste, a fronteira cultural gerada pela chegada do europeu, as novas modalidades de convívio, a mistura étnica e a aculturação são examinadas à luz de uma experiência concreta e efetiva de diluição e recuperação do legado europeu. Já em Capítulos..., trata-se de mostrar como a tradição literária do Ocidente se aclimatou no Brasil, mantendo seus recursos expressivos e, ao mesmo tempo, incorporando a realidade e as aspirações locais.
Aqui torna-se inevitável uma comparação com Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido. A comunhão de uma série de pressupostos indica semelhanças entre essas obras, seja na determinação das fontes culturais do Arcadismo brasileiro, na compreensão da especificidade da mimese arcádica, na ênfase no papel da comunicabilidade ou na discordância em relação ao estatuto dado à nossa literatura colonial pelos românticos. Outros fatores, porém, tais como a determinação das influências da literatura italiana em nosso processo formativo ou a atenção às persistências barrocas no Arcadismo, próprias ao livro de Sérgio Buarque, e ainda a delimitação distinta de objetos - enquanto um visa a gênese do Arcadismo, ressaltando o peso do séc. XVII, o outro previlegia a continuidade da incorporação arcádica pelo Roman-tismo -, a par da afinidade de propósitos, tornam esses livros, mesmo em se tratando de autores distintos, um exemplo ímpar de complementação e colaboração intelectual.

RICARDO MUSSE é professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Folha de São Paulo

Medicina Teológica



Os males da paixão
Mary Del Priore

MARY DEL PRIORE
Medicina Teológica
Atribuída a Francisco de Melo Franco
Ed. Giordano, 154 págs.


Em 1757, nascia na vila de Paracatu, em Minas, um personagem tão apaixonante quanto mal conhecido: Francisco de Melo Franco. Do pouco que se sabe, consta que iniciou seu aprendizado no Rio de Janeiro, partindo, a seguir, para Coimbra, disposto a realizar estudos de medicina. Quintanista em 1779, foi então acusado de "herege, naturalista e de negar o sacramento do matrimônio", sendo preso, com um grupo de barulhentos estudantes, nos cárceres da Inquisição. Cumpriu pena de um ano no palácio de Rilhafoles; bacharel em 1785, passou então, a escrever e, entre outras obras, publica um dos primeiros manuais de puericultura de que temos notícia para o período: o "Tratado da Educação Física dos Meninos para Uso da Nação Portuguesa", no qual pacientemente explicava às leitoras como alimentar, banhar, vestir e proteger de superstições os seus pequenos rebentos.
Em 1794, cioso dos humores do Santo Ofício, fez editar, sem o nome do autor, esta "Medicina Teológica".
O que terá levado o médico miniero a esta incursão em território da teologia? Simples: estes são tempos em que tanto a Igreja Católica quanto a ciência médica estão empenhadas em elaborar idéias sobre a natureza humana e suas instáveis paixões. Médicos fisiologistas e sábios moralistas estudavam anatomia e patologia, curiosos, sim, em suprir as lacunas de seus conhecimentos, mas, também, em capturar a natureza humana e entender os princípios aos quais ela obedeceria. Neste cenário, diferentes correntes do pensamento científico debatiam-se em questões do tipo: "Qual a razão metafísica da cópula?"
Em certos autores do século 18, a liberdade era considerada uma faculdade orgânica de regulação dos corpos. Assim, as modificações sofridas pelo corpo, em virtude das influências do mundo exterior, modificavam, elas também, o espírito humano. As funções espirituais eram irredutíveis àquelas corporais. Os órgãos, por sua vez, respondiam a uma força interna que os controlava, tendo em vista a missão que lhe era imputada pela economia geral do corpo.
Nesta perspectiva, as temidas paixões, estudadas tanto por estrangeiros quanto por nosso Melo Franco, eram forças orgânicas que haviam perdido a sua regularidade. Tais paixões introduziam na máquina do corpo modificações incessantes que aumentavam infinitamente as dificuldades de qualquer diagnóstico: "São as paixões humanas um produto da sensibilidade e movimento de seus nervos... um grande amor, uma grande saudade, uma grande cólera e uma grande bebedice ocasionarão sempre sintomas nervosos os mais funestos e horríveis", escrevia o médico de Paracatu.
Mas por que, então, escrutar as paixões por meio de uma medicina teológica? Pois os modelos fisiológicos, adotados na época, atribuíam à alma, ao mesmo tempo, uma concepção animista (na alma, achava-se a finalidade do corpo) e um sentido cartesiano residual (a absoluta autonomia do corpo é condição necessária para a autonomia da alma): o termo designava, ao mesmo tempo, o bom estado do corpo, uma justa hierarquia de todos os órgãos e a sabedoria de uma conduta afinada com um objetivo espiritual. Introduziam-se, assim, categorias morais naquelas fisiológicas. Acreditava-se na idéia de uma correlação entre o corpo são, a bondade dos atos e a retidão de espírito. Ao médico cabia restabelecer o equilibrio interno do corpo, incentivar o espírito ao bem e torná-lo capaz da verdade. Inversamente, as idéias de uma moral sadia teriam um efeito benéfico sobre o corpo, estimulando uma espécie de medicina moral, ou seja, uma medicação do homem pelo ensinamento de valores.
Ora, o pensamento médico do século 18 desautorizava, a homens e mulheres, a reivindicação de uma liberdade que contradissesse os princípios da fisiologia moral. Qualquer mal-estar do corpo era interpretado como signo e sanção de um desvio de conduta. Quando Melo Franco afirma, peremptório, que "o amor é enfermidade", causando loucura, está apenas incorporando noções médicas que circulavam em toda a Europa. Na interpretação mecanicista, por ele adotada, o amor resultava de fenômenos puramente orgânicos e era rapidamente reconhecido por sintomas imediatos: olhos fundos, tristes e abatidos, ranger de dentes etc.
Nas mulheres, tal infecção mostrava-se claramente quando perdiam "a vontade de comer e dormir, degenerando num furor amoroso de que elas não se podem deter e as fazem entregar-se a toda sorte de indecências". A mulher era considerada um ser disposto a provar todas as paixões que resultassem da mudança de curso dos fluidos internos. Ao mesmo tempo, as paixões eram, elas mesmas, causa de novos problemas. A mulher histérica, doente de amor, tornava-se prisioneira de uma espécie de causalidade recíproca que se articulava entre a paixão e o corpo. A apaixonada era considerada uma doente. Suas convulsões não representavam mais que a incapacidade de seu corpo e espírito em assumir a paixão. O mesmo se dava entre os casados que se excediam nos prazeres do amor e que por isto, tornavam-se enfermos. Para curá-los, Melo Franco não hesitava em recomendar remédios refrigerantes que aplacassem seus ardores: mascar losna (conhecida por seu amargor), dormir em tábua dura e banhar-se em água fria.
A erotomania, bem como a satiríase, indicavam a irritação geral da máquina. Para sanar suas vítimas, dariam conta do recado purgantes de tamarindo, eleutérios à base de sementes de urtiga e aplicações de vitríolo. Como outros tantos médicos alienistas e moralistas da segunda metade do século 18, Melo Franco procurava definir as leis fundamentais da natureza biológica a fim de propor aos homens e mulheres doentes fórmulas infalíveis de reabilitação. Só que, para ele, o estatuto da saúde estava associado a um modelo de retidão moral.
Vale sublinhar que medicina teológica não é a única expressão, em Portugal, desta corrente de idéias. Autores como Francisco da Fonseca Henriques ou Bernardo Pereira debruçaram-se, eles também, sobre esse fascinante cardápio de males físicos e morais, de doenças da alma e do corpo. A diferença é que eles eram debitários da tradição agostiniana que via nos desvios da sexualidade, ou nas paixões, da forma por excelência do pecado. Esta doutrina teológica colocava sob suspeita o uso dos corpos e dos prazeres, predispondo-se a reconhecer, nas mais miúdas alterações, as manobras do demônio. Por isto mesmo, a união de médicos e exorcistas para combater diagnósticos muito semelhantes aos de Melo Franco, só que vencidos à base de defumadouros de dente de defunto e pós de asa de morcego.
A singularidade do médico de Paracatu está na sua identificação com um discurso racionalista (independentemente da concepção que ele fazia da natureza e das funções da razão) no interior do qual afirmava-se a certeza de uma perfeita adequação entre o humano e o racional. Eis o motivo da grita que se levantou contra a publicação do livro, qualificado de perigoso e heterodoxo por parte de gente pia e zelosa, para quem Deus justificava tudo.
No mais, ler a "Medicina Teológica" é simplesmente delicioso; com apresentações de Antonio Candido e Alberto Dines, o livro é um passeio pela história do amor, das paixões e do esforço que sempre fizeram os homens para compreender o que todos, hoje, sabemos ser inexplicável.


MARY DEL PRIORE é professora de história do Brasil colonial na USP e autora de "A Mulher na História do Brasil

Folha de São Paulo

Negros da Terra - Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo


Negros Brasis
Ronaldo Vainfas

John Monteiro
Companhia das Letras, 300 págs

Um dos aspectos mais surpreendentes das ciências humanas produzidas no Brasil é o relativo silêncio dos historiadores em relação à questão indígena. Silêncio em tudo contrastante com o trabalho de antropólogos, sociólogos e etnólogos, brasileiros ou estrangeiros, desde há muito dedicados a estudar os índios em perspectiva etno-histórica. Bastaria citar, à guisa de exemplo, a magnífica obra de Alfred Métraux, autor, entre outros livros, de "A Religião dos Tupinambás", os estudos clássicos de Egon Schaden, o importantíssimo "A Organização Social dos Tupinambás", de Florestan Fernandes e, mais recentemente, os estudos de Eduardo Viveiros de Castro e de Manuela Carneiro da Cunha, organizadora da recente "História dos Índios no Brasil".
No campo dos historiadores, sem considerar os estudos novecentistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (e muitos historiadores do século passado, inclusive Varnhagen, detratavam muito os índios, apesar de estudar suas culturas e línguas), prevaleceu mesmo o silêncio. Entre as honrosas exceções figurariam autores como Capistrano de Abreu, que soube perceber a importância do índio no processo colonizatório e na formação cultural brasileira, e, como sempre, o grande Sérgio Buarque de Holanda, sobretudo em seu "Caminhos e Fronteiras", recentemente reeditado pela Companhia das Letras. Dignos de menção são ainda o estudo clássico de Alexander Marchant, "Do Escambo à Escravidão" (anos 40) e o instigante livro de Luis Felipe Baeta Neves, "O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios", livro sobre as idéias e práticas missionárias dos jesuítas no século 16.
O certo, porém, é que os índios têm sido pouco estudados pela historiografia brasileira, a não ser como objeto, jamais como sujeito da nossa história. O índio como alvo da catequese jesuítica, o índio como feroz obstáculo ao avanço da colonização, o índio como mão-de-obra, eis as maneiras mais frequentes do tratamento da questão indígena pelos historiadores. Raramente se aventuram a estudar as culturas indígenas e quase nunca utilizam etnônimos (tupinambá, goitacá, aimoré etc.), preferindo abrigar-se na vaga expressão índio, palavra de óbvia origem colonialista.
O livro de John Monteiro, "Negros da Terra", se não rompe totalmente com esta postura reificadora predominante entre os historiadores, certamente se insurge contra o silêncio da historiografia e põe abaixo vários mitos e estereótipos nela consagrados acerca do papel desempenhado pelos índios na colonização do Brasil.
Baseado em tese de doutoramento defendida em 1985 na Universidade de Chicago, o livro é antes de tudo um sólido exemplo de pesquisa documental. Monteiro realmente devassou inúmeros arquivos nacionais, sobretudo de São Paulo, coligindo vastíssima documentação cartorária, eclesiástica e epistolar. Pesquisou também importantes arquivos estrangeiros, sobretudo em Portugal (o Arquivo Ultramarino, a Biblioteca da Ajuda) e na Itália, a exemplo do Archivum Romanum Societatis Iesu, em Roma. E não faltou, nem poderia faltar, o exame da numerosa crônica e tratadística impressa sobre seu tema de investigação.
"Negros da Terra" é, pois, um trabalho consistente, muito atualizado em termos bibliográficos e dotado, ainda, de um título criativo. Negros da terra ou negros brasis eram, com efeito, expressões utilizadas pelos colonos luso-brasileiros desde o século 16 para designar genericamente as várias nações indígenas, diferenciando-as das africanas, então denominadas, com igual generalidade, de negros da Guiné. Trata-se, a bem dizer, de nomenclatura colonialista, mas que serve perfeitamente aos objetivos do autor.
O livro se dedica exatamente a resgatar o papel central que os índios desempenharam na história de São Paulo durante os séculos 16 e 17, tempo em que a região nada mais era do que uma periferia da América Portuguesa. John Monteiro, começa, assim, a desmistificar a idéia de que o bandeirantismo paulista tenha contribuído decisivamente para o alargamento territorial e povoamento do interior brasileiro. "Muito pelo contrário: ao invés de contribuírem diretamente para a ocupação do interior pelo colonizador, as incursões paulistas concorreram antes para a devastação de inúmeros povos nativos." O bandeirantismo foi, na realidade, uma ação tragicamente despovoadora.
Profissão de fé feita à partida, Monteiro vai derrubando, uma a uma, com grande perícia e apoio documental, antigas "verdades consagradas". Demonstra, por exemplo, que a verdadeira riqueza do sertão eram mesmo os índios, objeto da cobiça dos colonos ou do afã salvacionista missionário que, aliás, não excluía a utilização do trabalho nativo nos aldeamentos. O trabalho cativo ou administrado dos índios relacionou-se, porém, como indica o autor, com um "projeto coletivo de desenvolvimento", sobretudo no governo de D. Francisco de Sousa (1591-1601). Dedicou-se o governador à busca de metais e pedras preciosas, busca estimulada pela lenda tupiniquim de Itaberaba-açu, "uma serra resplandecente que, para muitos, localizava-se nas cabeceiras do rio São Francisco".
Mais que isso, D. Francisco pretendia articular os setores de mineração, agricultura e indústria, todos sustentados por trabalhadores indígenas, inspirando-se talvez no modelo da América Hispânica. Tudo isto malogrou, à falta do achamento de uma Potosi em terra brasílica e face ao crescimento da lavoura comercial. O cativeiro indígena, no entanto, seguiu firme, fornecendo a base de trabalhadores para a economia regional numa época em que, no litoral, a escravidão africana ganhava vulto.
Monteiro acompanha a expansão bandeirante até o Guairá, examinando a competição entre luso-brasileiros, paraguaios e jesuítas pela mão-de-obra indígena. E não deixa de relativizar, a propósito, a idéia de que os paulistas teriam investido contra as reduções porque elas ofereciam mão-de-obra já disciplinada pelos jesuítas. Na verdade, mostra o autor que os portugueses se interessavam pelos Guarani desde o século 16, justamente pela notícia que tinham de sua eficiente agricultura. Não é de surpreender, portanto, que os paulistas assaltassem prioritariamente as aldeias não controladas pelos jesuítas, mesmo depois da chegada dos padres ao Guairá.
Capítulo muito inovador do livro é, sem dúvida, o intitulado "Celeiro do Brasil". É nele que nosso historiador põe abaixo a imagem de uma escravidão indígena irrelevante no século 17, bem como a de uma capitania de São Paulo absolutamente pobre e quase isolada dos setores de ponta da colônia. Nas palavras do autor, "o surgimento de uma agricultura comercial no planalto, sobretudo com a produção do trigo, pode explicar muito da constituição da sociedade colonial na região, uma vez que a presença de um número elevado de cativos índios possibilitou a articulação da economia do planalto com a do litoral, redundando, ao mesmo tempo, na composição desigual da riqueza na sociedade local".
"Negros da Terra" é, por tudo isso, livro de grande importância. Ilumina menos, a bem da verdade, o que significa o colonialismo e o cativeiro para os próprios índios do que os sentidos do bandeirantismo e o funcionamento ancilar da economia paulista apoiada no trabalho dos nativos. Mas não deixa de apontar, com máxima ênfase, o que foi o "despovoamento" perpetrado pela expansão bandeirante, heróica para uns, absolutamente trágica para as populações locais.

RONALDO VAINFAS é doutor em história pela USP e professor titular do departamento de história da UFF (Universidade Federal Fluminense)

Folha de São Paulo

A invenção do cotidiano


A improvisação de Carlitos
Elias Thomé Saliba
A invenção do cotidiano
Michael de Certeau
Tradução: Ephraim Ferreira Alves
Vozes, 351 págs.

A vida cotidiana, no seu misto de inércia e rotina, nunca constituiu um tema muito nobre para as ciências humanas, nem fundou uma escola de historiadores ou cientistas sociais. Foi só através de um intenso exercício de inquietação crítica, que rejeitava grandes teorias sociais e construções abstratas, que o tema do cotidiano foi ganhando espaço nas ciências humanas nos últimos dez anos. Exercício de reflexão estimulado pelas próprias experiências históricas mais recentes, nas quais a cultura passou a ser celebrada como motivadora de significativas transformações sociais.
Publicado originalmente em 1980, "A Invenção do Cotidiano", de Michel de Certeau, é um livro pioneiro nesse exercício de desvendar as práticas culturais contemporâneas, vistas aí, não mais do ângulo elitista da razão técnica e produtivista, mas pelo lado mais fraco da produção cultural: o da recepção anônima, da cultura ordinária, da criatividade das pessoas comuns.
Para além de certa vertigem populista, por aí já se vê que estamos diante de um livro difícil que não se contenta em definir, ingenuamente, o popular através do povo e/ou vice-versa. Profundamente insatisfeito com as teorias sociais, que pintam o quadro de uma sociedade estruturada em papéis abstratos e estereótipos, Certeau procura esboçar uma teoria das práticas cotidianas e identificar uma espécie de lógica operatória nas culturas populares. Lógica do avesso e da teimosia, fundada quase que apenas no real, pois recusa a escrita como espaço da dominação e do controle; lógica do informal, porque utiliza suas táticas conforme as estratégias dos outros; lógica do instável, porque, sem qualquer ponto de ancoragem emocional busca, afinal, a própria sobrevivência.
Lógica que é muito mais uma "arte de fazer", pois as experiências do homem ordinário não se deixam aprisionar pela linguagem escrita: quer se trate da voz do selvagem, dos primeiros relatos etnográficos, do ato de assistir TV ou de enveredar pelas inesperadas ruas das grandes cidades. Certeau quer buscar uma lógica cujos modelos remontam talvez às astúcias multimilenares dos peixes disfarçados ou dos insetos camuflados e que, em todo caso, é ocultada por uma racionalidade hoje dominante no Ocidente. Por isso, busca exemplos em tradições, provérbios e atitudes que a cientificidade do Ocidente ocultou: a "Arte da Guerra" de Sun Tze, da tradição chinesa; ou o "Livro das Astúcias", da tradição árabe.
Mas encontra "artes de fazer" em todas as sociedades: cita episódios relacionados às gestas de Frei Damião, no Brasil; episódios de "Robinson Crusoé" ou, até, do impagável Carlitos, de Chaplin. Com seu bigodinho e andar de pato, Carlitos tece a rede de uma antidisciplina: rejeita destinos prévios e trajetórias previsíveis, e resiste, com a leveza do lúdico, a toda situação opressiva. Na improvisação sem limites, Carlitos rejeita toda mecanização, procura sempre contornar a dificuldade em vez de resolvê-la e, nesta sua não-aderência às coisas e aos acontecimentos, parece revelar-nos que os objetos de nossa cultura se inscrevem no vazio, não têm qualquer futuro, a não ser fora do sentido que a sociedade lhes atribui.
Por que na cultura, a eficácia da produção teria que produzir necessariamente uma eficácia no consumo? Demontando a suposta passividade do leitor-consumidor, Certeau nos oferece páginas luminosas sobre a atividade da leitura. Mais que mera submissão ao mecanismo textual -do livro, do espetáculo ou de qualquer outro produto cultural-, a leitura é um "ato de espreitamento", uma viagem de nômade, sem paradas obrigatórias: o telespectador lê a paisagem de sua infância na reportagem de atualidades, pois ler "é constituir uma cena secreta", lugar onde se entra e se sai à vontade; é criar cantos de sombra e de noite numa existência submetida à transparência tecnocrátrica. Ou, como concluiu poeticamente Marguerite Duras: "Talvez se leia sempre no escuro... a leitura depende da escuridão da noite. Mesmo que se leia em pleno dia, fora, faz-se noite em redor do livro".
Nem o marxismo, nem as concepções liberais, com suas ambições totalizantes, foram capazes de perceber na vida cotidiana este espaço de gestação de processos alternativos, de esperteza e de inventividade, que se forjava à revelia dos cerrados processos de hegemonia e dominação na modernidade. Certeau faz verdadeiros malabarismos teóricos para se equilibrar entre Freud, Foucault e Bourdieu, mas parece encontrar inspiração nos inquietantes fragmentos de Wittgenstein. Talvez porque o historiador saiba, como o "homem ordinário" de Wittgenstein, que a página em branco é um lugar desenfeitiçado das ambiguidades do mundo e que as narrativas do cotidiano estão mais próximas da intensidade da vida real.
ELIAS THOMÉ SALIBA é professor de teoria da história do departamento de história da USP, autor de "Utopias Românticas

Folha de São Paulo

Condomínio do Diabo


O limiar da violência
Lygia Sigaud

Condomínio do Diabo
Alba Zaluar
Revan, 277 págs.
Em “Condomínio do Diabo”, Alba Zaluar reuniu um conjunto de artigos a respeito da violência nas áreas a respeito da violência nas áreas pobres do Rio de Janeiro, sobretudo no conjunto habitacional Cidade de Deus, onde realizou pesquisa na década de 80. Os textos, escritos entre 1981 e 1993, e publicados previamente em jornais de circulação nacional, revistas científicas e revistas de divulgação, abordam o tema da violência sob diversos ângulos, como as implicações políticas da violência, a participação das mulheres em atividades tidas como “criminosas”, as relações entre violência e religiosidade etc.
Os textos agora reeditados não são precedidos por uma introdução que situe o leitor em relação ao contexto em que foram produzidos e aos debates nos quais se inserem. É possível no entanto resgatar dois tipos de preocupação que parecem ser recorrentes ao longo do livro. Há, por um lado, um interesse de Alba Zaluar em intervir nos debates acerca da “violência urbana”, valendo-se para tanto da autoridade que a pesquisa científica lhe confere. Assim, a autora utiliza o material coletado durante a pesquisa e sua interpretação dos fatos para fundar suas tomadas de posição: ela defende a descriminalização da droga, crítica a visão “esquerdista” de que os agentes da “violência” sejam bandidos sociais, denuncia a “corrupção” da polícia, alerta para as distorções do código penal, chama a atenção para as omissões do Estado brasileiro em relação às populações das áreas pobres etc.
Por outro lado, os artigos denotam a preocupação de fornecer explicações para a “criminalidade” em Cidade de Deus. A tese da autora é a de que a “criminalidade” não é um efeito direto da pobreza dos habitantes destas áreas mais desfavorecidas da cidade. Para entendê-la torna-se necessário levar em conta um conjunto de outros fatores, como o fim das relações personalizadas entre pobres e ricos; o afastamento dos filhos em relação aos pais; as dificuldades dos jovens em obter uma formação adequada e, portanto, um emprego; as práticas discriminatórias da polícia em relação aos jovens das áreas pobres (como as prisões arbitrárias); e ainda a emergência de uma sub-cultura que desqualifica o trabalho como meio de obtenção de recursos e atribui prestígio às manifestações de força mediante emprego de armas de fogo e à posse de bens tidos como privativos dos ricos, sobretudo as vestimentas inacessíveis aos pobres.
O trabalho que vem sendo desenvolvido por Alba Zaluar no estudo da violência é, sem sombra de dúvida, pioneiro e da maior relevância. Foi ela uma das primeiras a se dispor a examinar um tema polêmico e a fazê-lo com seriedade. Ao invés de servir de correia de transmissão das indignações, fantasmas e preconceitos de sua própria classe, Alba procurou entender a complexidade dos mecanismos sociais que culminam nas manifestações de violência. Para tanto, não hesitou em frequentar uma área da cidade tida como de alto risco e foi ouvir, valendo-se das técnicas da antropologia, o que “bandidos” e seus vizinhos trabalhadores tinham a contar acerca de suas vidas. Graças à sua ousadia e a de outros que seguiram os seus passos, dispõe-se hoje de valiosas informações a respeito do universo social das áreas pobres do Rio de Janeiro.
“Condomínio do Diabo” atesta o empenho de Alba Zaluar em revelar um mundo que o senso comum das elites tende a perceber apenas através de suas expressões mais mediatizadas -as explosões de violência-, como se naquele universo só existissem fuzis e metralhadoras, homens maus e drogas perigosas. Os textos agora reunidos permitem restituir a racionalidade daquele mundo e torná-lo inteligível.
Os leitores encontrarão ao longo do livro inúmeros elementos que ajudam a perceber a ordem moral e política que prevalece em Cidade de Deus. Poderão também os leitores se dar conta do modo como os que vivem naquela área elaboram simbolicamente o que se rotula, de forma simplificadora, como o crime. Alba Zaluar transcreve diversos extratos de entrevistas, realizadas tanto com os que estão dentro quanto fora do “crime”, que expressam a visão dos moradores daquele conjunto habitacional acerca dos “bandidos”, das razões que os teriam levado a aderirem à “vida do crime” de suas relações com a polícia etc... Encontrarão também os leitores informações preciosas a respeito da diversidade de posições ocupadas por aqueles que ingressam na “vida do crime” e das relações de dominação e dependência que vinculam os “criminosos” entre si. A autora mostra -e este é um dos pontos altos do livro- as diferenças existentes entre os “criminosos” individuais e os que integram uma “quadrilha”, as diferenças entre estes e os “pivetes” (menores que agem por conta própria) e a hierarquia de mando encabeçada pelo “bandido”, ao qual se submetem os “olheiros”, os “aviões” ou “vapores”. Caberia ainda destacar a contribuição do livro no sentido de apresentar as relações de interdependência que vinculam trabalhadores, “bandidos” e polícia.
A leitura do “Condomínio do Diabo” suscita no entanto algumas questões para as quais o livro não fornece elementos de resposta. Uma primeira delas refere-se à adesão dos jovens à “vida do crime”. Embora os quadros para o exercício das atividades tidas como “criminosas” sejam recrutados entre os jovens de 16 a 25 anos, nem todos aqueles que se encontram nesta faixa etária participam destas atividades: há os que se inserem no mercado de trabalho, seja ele formal ou informal. Como dar conta desta diferença?
As justificativas nativas (o “vício” de uns e a “moral” de outros) apresentadas no livro expressam o ponto de vista dos nativos: elas necessitaram ser compreendidas e não constituem por virtude própria uma explicação dos fatos. A análise do espaço social em Cidade de Deus (morfologia, posições sociais ocupadas pelos habitantes, rede de relações sociais e conflitos nos quais estão implicados) e o estudo comparado das trajetórias dos que seguem um ou outro caminho (a partir de estudos de caso) poderiam fornecer elementos para se compreender as condições sociais que explicam a escolha entre as vias tidas como legais e ilegais de assegurar a reprodução social.
Uma segunda questão diz respeito ao destino dos “bandidos”. A opção pela “vida do crime” é, segundo Alba Zaluar, um caminho sem volta. Ao longo do livro aparecem no entanto personagens que são ex-"aviões” e “bandidos regenerados”. Ainda que se ignore a dimensão numérica dos que abandonam a ‘delinquência’ -e este é certamente um dado difícil de se apurar-, o fato é revelador: ele sugere a existência de condições de possibilidade de reinserção dos cultuadores do “dinheiro fácil” (os “criminosos”) no mundo dos “otários” (os trabalhadores). Que condições são essas e quais suas implicações? Tudo leva a crer que o estudo do modo como se produz esta passagem poderia conduzir a uma melhor compreensão da dinâmica das relações entre “bandidos” e trabalhadores. Para isto no entanto é necessário reintroduzir o tempo na análise e verificar o que ocorre com os sobreviventes da “vida do crime”.
A terceira indagação concerne o recurso à violência. O uso da violência como meio para constituir e preservar patrimônio é uma prática recente nas áreas pobres da cidade. Quem foram os agentes desta transformação e que condições sociais favoreceram o seu trabalho? Por outro lado, os dados apresentados em “Condomínio do Diabo” são ricos em indicações relativas ao emprego da violência- não necessariamente armada- para a regulação de relações sociais: obtenção de mulheres, reparação de injustiças e desonras etc. Qual a relação entre os dois tipos de violência? Uma seria anterior à outra? Haveria outras formas de regulação dos conflitos sociais? Quais?
A formulação deste conjunto de questões seria impensável sem a leitura do trabalho aqui em exame de Alba Zaluar. É a riqueza do material e da análise por ela apresentados que me estimulam a dialogar com a autora: não para cobrar o que deixou de ser feito, mas tão-somente para sugerir novos problemas cujas respostas certamente demandarão novos investimentos de pesquisa.
LYGIA SIGAUD é antropóloga

Folha de São Paulo

Borges ou do conto filosófico


Davi Arrigucci Jr.

Não é nada fácil dizer em que consiste a novidade de um grande livro como "Ficciones" (1935-1944), que deu fama internacional a seu autor e marcou para sempre a memória de várias gerações de leitores no mundo todo. No entanto, é a tarefa ingrata destas poucas páginas.
Diante de um livro tão complexo e de tantos lados -por vezes nele se alude à vasta imagem do universo-, é preciso escolher logo um ponto de vista, uma chave de leitura. Preferi não percorrer o custoso labirinto da construção desses contos de execução admirável, nem buscar-lhes saídas interpretativas, que se multiplicam em cada caso. Quis saber antes como lidam com as convenções de gênero e, por essa via, sua relação com a História. O leitor, como sempre, tem a última palavra e dirá se fui feliz.
Borges começou escrevendo poemas e ensaios e tardou a escrever contos. Quando estes vieram, no final da década de 30, por um lado se pareciam muito a seus primeiros escritos (1). Causavam idêntica estranheza ou o mesmo redobrado encanto, mostrando uma liga de inteligência com imaginação sempre rara em toda parte, em qualquer época.
A agudeza podia despontar com o corte lapidar de cada frase, revelando poder de síntese e rigor de construção similares aos do verso. A atitude inquisitiva, de busca intelectual, do narrador lembrava o ensaísta e podia cristalizar em sentenças de tom aforismático, às vezes casadas com muita graça e uma perspectiva de humor desconcertante. E naquela prosa de clareza, concisão e elegância clássicas, cada termo reverberava com uma inesperada ironia. Assim, tudo no conjunto confluía de algum modo para um resultado único, de efeito artístico avassalador.
Por outro lado, porém, os contos eram de uma novidade espantosa e não se deixavam explicar apenas pela filiação à literatura fantástica, a que pertenciam em sua maioria. O fantástico tinha já uma longa tradição no Rio da Prata, formando uma corrente importante, vinda do século passado, quando surge Borges. Este deu-lhe a devida atenção, destacando a obra de vários escritores que o precederam no gênero principal a que se dedicou. Foi o caso, por exemplo, do contista uruguaio Horacio Quiroga, ou do argentino Leopoldo Lugones, a quem se refere muitas vezes, sem falar num caso ímpar, mas muito presente, como o do amigo Macedonio Fernández, ou em outros que praticamente tirou do esquecimento, como Santiago Dabove. Fora, havia decerto os grandes representantes do gênero, dos quais cita vários, como Poe, Hawthorne, Wells, Chesterton ou Henry James, e, claro, Kafka à frente, com quem suas histórias sustentam um elo permanente de afinidade profunda.
Mas a filiação borgiana a esta linhagem de narradores fantásticos, seja interna ou externa, não basta para se compreender o que havia de novo em suas ficções. Ajuda a situá-las no contexto de origem e talvez possa esclarecer traços de sua composição. É provável, contudo, que aqui a novidade ou o espanto não dependam tanto do fantástico, mas antes de uma conjunção insólita de arte com pensamento.
Ainda na década de 40, quando só haviam sido publicados uns poucos relatos, Adolfo Bioy Casares, seu amigo e colaborador constante, assinalou que Borges havia criado "um novo gênero literário que participa do ensaio e da ficção", destinando-o "a leitores intelectuais, estudiosos de filosofia, quase especialistas em literatura" (2). Talvez não seja bem assim, mas a observação é sagaz pelos traços decisivos que detecta, quanto à mistura de gêneros e ao teor intelectual e filosófico das narrativas. Pode ainda orientar no reconhecimento crítico da singular fisionomia dessas histórias.
A questão é que Borges impôs desde logo o desconcerto -talvez a mesma perplexidade que dizia sentir diante do universo. A tarefa agora é compreendê-lo em seu modo de ser particular, até o limite do irredutível -aquilo que atua desde o instante de impacto inicial de seus memoráveis contos. Convém buscar, sem pressa.
Arte e pensamento
Benedetto Croce, cujas idéias estéticas são tão influentes na época em que surgem esses contos, opõe arte a pensamento, oferecendo um parâmetro à tentativa de compreensão de Borges.
Considera a poesia uma forma de conhecimento, mas conhecimento intuitivo do particular, capaz de ir além do mero sentimento, que ela transfigura, encontrando a universalidade na própria particularidade, como uma expressão imediata e ritmada do universo. Ao contrário, o pensamento, fora da esfera intuitiva, seria antes a sistematização do universo, reduzido aos signos prosaicos do conhecimento conceitual. O ritmo, alma da expressão poética, é para ele inerente a toda intuição artística e, por isso, característico também das outras artes, manifestando-se em todas elas com esse ou outro nome. Forma ritmada do universo, a arte pertenceria assim a uma esfera diferente, oposta ao conhecimento sistemático próprio do pensamento. A presença de qualquer mediação reflexiva destrói, segundo ele, a imediatez necessária à expressão poética genuína, a qual só na plenitude da imagem alcança a universalidade e a totalidade que lhe dão o caráter de poesia (3).
Não obstante essa distinção, e contrariamente à opinião do filósofo italiano, nosso tempo escolheu reconhecer o pensamento como inerente ao modo de ser da arte. A reflexão artística, voltando-se muitas vezes sobre si mesma, acabou por se fazer uma característica interna das obras de arte, frequentes portadoras de poéticas inclusas, apaixonada e especularmente debruçadas sobre o próprio processo de sua constituição. E assim, também os artistas pensadores se tornaram centrais à nossa tradição, caracterizada por alto grau de autoconsciência do fazer artístico.
Essa é, como se sabe, uma das marcas da modernidade nas artes. Sob esse aspecto, elas se enraizam fundamente no século passado e mesmo antes, nas diversas manifestações em que a simbiose de criador e crítico, a concepção do estilo sem ingenuidade ou a presença de uma consciência artística auto-reflexiva já anunciavam o reino da crítica dos tempos modernos.
Jorge Luis Borges é decerto um desses artistas centrais de nosso século, herdeiro da tradição de lucidez moderna, saído de uma literatura até então mal conhecida internacionalmente, que ele logo marcou com o raro exemplo do rigor intelectual e o alto padrão de sua escrita. É impossível tratar de sua obra, sem considerar seu perfil de poeta douto, reflexivo e crítico, pois ele está imiscuído nela como projeção dessa consciência autoral que a torna arte pensamenteada (4) todo o tempo.
Ele, que abomina o romance psicológico, é uma espécie de anti-Proust, um escritor absolutamente não confessional. A todo momento, entretanto, por ilimitados meios de espelhamento, por citações inumeráveis, constrói mil e uma imagens de si mesmo, de uma persona literária interna aos textos, autor multiplicado, demiurgo ou deus do labirinto especular -o "hacedor" recorrente e inapreensível. Um inventor de ficções invadidas por uma autoconsciência tão pronunciada, que levou Octavio Paz a considerá-lo, a certa altura, como o criador de uma "obra única, edificada sobre o tema vertiginoso da ausência de obra" (5).
Na verdade, Borges soube ritmar o próprio pensamento, dando expressão artística a uma constante reflexão sobre a literatura e a certas generalizações abstratas sobre o universo, por vezes mais contundentes que as imagens concretas que deste se pudesse ter. Seu poder de impacto e novidade se deve, em larga medida, a essa junção original de arte com pensamento que soube operar desde o começo de sua produção literária na década de 20. Chegado da Europa, depois da Primeira Guerra, se entregou à paixão ultraísta que de lá trouxera: metaforizava com fervor, cumprindo o papel de jovem introdutor da vanguarda na Argentina, o que logo renegaria.
Desde cedo, talvez por impulso das idéias vanguardistas, tendeu a dissolver as fronteiras dos gêneros literários (ou talvez porque aceitasse, nesse sentido, a famosa postulação de Croce, a quem gostava de citar). O fato é que mescla as formas do poema, do ensaio e da narrativa, mas sempre com a marca do escritor que pensa por abstrações e não apenas por imagens. Isto contribuiu realmente para dar uma forma singular aos textos que escreveu desde então. Mostram-se muito marcados pela mola inquisitiva do pensamento ensaístico, que arma reiteradas hipóteses e conjeturas sobre os mais variados assuntos, em geral com alto teor intelectual ou dimensão teórica, mesmo dentro dos poemas e, pouco depois, dos contos, que demoraram mais a surgir autonomamente, mas desde o princípio se misturavam dissolutamente às poesias e aos ensaios.
Penso que essa posição reflexiva do escritor, ao ser levada ao espaço da ficção na figura do Narrador, onipresente, como se disse, em seus relatos, transforma profundamente a matriz do conto literário que ele trabalha. Por esse ângulo, provoca mudanças substanciais no modo de ser da narrativa curta, a que imprime uma fisionomia de fato singular, em grande parte responsável pelo impacto de novidade de suas "Ficções".
(continua)

Folha de São Paulo

Borges ou do conto filosófico


Davi Arrigucci Jr.

(continuação)
A matriz do conto
Pode-se imaginar o "frisson" que deve ter causado nas páginas do nº 68 de "Sur", em maio de 1940, a leitura de um conto como "Tlõn, Uqbar y Orbis Tertius". Seguindo, na mesma revista, a "Pierre Menard, autor del Quijote", de maio de 1939, instalava a narrativa fantástica na linha de frente da literatura argentina (6).
O primeiro impacto vinha da civilização fantástica que, de repente, pela conjunção famosa de um espelho e de uma enciclopédia, se intrometia em nosso universo. Depois, era o mundo do autor que também se intrometia no da ficção: Borges e seus amigos apareciam como personagens do conto. E assim se multiplicavam os mundos em osmose, para horror dos heresiarcas de Tlõn (7) e assombro do leitor.
Mas, o verdadeiramente novo em tudo isso era o modo como se construía o conto por obra de outro leitor mais terrível e tenebroso: o narrador. O leitor da história se deparava com um duplo no fundo do espelho da ficção: uma espécie de comentador, inquiridor e intelectualizado, dado a minúcias, abstrações e ironias, que quase só narrava argumentos conjeturais, tirados de outros livros incontáveis que sempre tinha lido ou cuja existência inventava. Lembrava por vezes um bibliotecário ilusório que recolhesse zelosamente a uma biblioteca ilimitada e lacunar os volumes imaginários sempre em falta.
Entre os motivos do espanto, figuravam, pois, o livro e a biblioteca como imagens labirínticas do universo. O Narrador bibliotecário era quem multiplicava os espelhos e o assombro: muito da novidade residia no jogo intelectual com os elementos ambíguos da ficção e da realidade, ou seja, com o fantástico. Borges, o ficcionista, era um manipulador intelectual do espanto. O fantástico, espécie de quintessência da ficção -nele os jogos do "como se" que instauram o universo ficcional se radicalizam- se faz uma forma de expressão da perplexidade quanto à natureza da realidade. A metafísica se converte efetivamente num ramo da literatura fantástica.
Fascinado também pelo rigor de construção das narrativas de aventura e das intrigas policiais, cujo artifício preciso e desnorteante gosta de percorrer, Borges retorna por vezes a esses gêneros, modificando-os substancialmente no mesmo sentido com que joga com o fantástico. Quer dizer: para adulterá-los pelo teor de perquirição filosófica e explicitação irônica do jogo intelectual que neles introduz. Assimila, portanto, fórmulas desses gêneros a esquemas que na verdade pertencem a outra modalidade de narrativa, para a qual aquelas são propriamente deslocadas.
Na esteira das histórias policiais ou de aventura, se refere muito a Poe, Stevenson, Chesterton, De Quincey e a muitos outros mais, como se os tomasse por modelos. Todos eles podem ter eventualmente pesado em seu ideal de prosa, de construção do relato ou mesmo lhe terem valido enquanto solução pontual de aspectos técnicos ou temáticos, mas não lhe forneceram os esquemas básicos, mais fundos e característicos do conto em que inova.
Creio que, em suas mãos mais do que hábeis, o conto, da perspectiva da inovação que o torna único e surpreendente, reata raízes não da herança romântica do século 19, nem sequer precisamente da tradição do fantástico (embora também o faça), mas recua até a tradição do conto filosófico do século 18, de corte voltairiano.
Com efeito, é ali que se encontra uma abertura da fantasia aos espaços exóticos, imaginários e utópicos de outros mundos estranhos onde é permitido desconfiar do nosso. Ali se acham os canais livres para a perplexidade metafísica, para os jogos com a filosofia idealista e as dúvidas irônicas sobre nossa própria condição, assim como um padrão similar de leveza e mobilidade intelectual, associadas a certas tomadas de distância e modulações relativizadoras da expressão muito ao gosto borgiano. Ali, por fim, se acha ainda uma abertura para o fantástico, que se casa perfeitamente vem à vertente fantasiosa ou extravagante desse tipo de conto.
Não é apenas pela qualidade do estilo que se pensa em Borges, ao reler Voltaire, a quem o primeiro cita inúmeras vezes e talvez nenhuma sem um elogio. Há realmente uma afinidade grande na situação e nos movimentos do Narrador dos contos borgianos com relação aos "Contes Philosophiques". Mas não ficam aí os traços constitutivos que podem depender dessa herança fundamental, enlaçada na base ao sentimento da alteridade, profundamente arraigado no espírito do escritor argentino (8).
Borges, evidentemente, terá trabalhado a fundo no rumo da invenção pessoal, com o domínio e a força de grande escritor que tudo transforma, mesmo quando retoma a matriz histórica de um gênero ou um feixe de convenções artísticas bem conhecidas. Vale, no entanto, a pena repensar a fórmula básica do conto voltairiano para melhor reconhecimento do modo de ser específico do conto borgiano.
Como observou Jean Starobinski a propósito das dualidades do estilo e da filosofia de Voltaire, esse tipo de conto é dominado pela lei da dualidade, que o obriga a desdobrar-se: de um lado, o plano da história (em que prestamos atenção no destino das personagens); de outro, o plano do discurso (em que nos fixamos nas idéias do narrador e em sua destreza em exprimi-las) (9).
Na verdade, essa dicotomia latente em toda narrativa e reconhecível pela análise, aflora no conto filosófico pelo papel sobressalente que nele se atribuiu ao narrador. Este tende a impor sua visão do mundo intelectualizada, dando livre curso à fantasia intelectual e à observação humorística. Além disso, costuma estender-se em digressões, fazendo uso irônico de vasta erudição e, por vezes, tende à simplificação das personagens, descarnando-as em atitudes mentais ou reduzindo-as a caricaturas. A mistura de fantasia com reflexão moral, como se dá em Voltaire, parece essencial à forma dessa modalidade de narrativa. Logo se vê que ela depende em profundidade de uma disposição espiritual específica que tem suas raízes prováveis na tradição da sátira.
Northrop Frye fornece elementos para que se trate o "conte philosophique" voltairiano como uma forma breve de anatomia. Esse é o termo com que ele designa a forma moderna da antiga sátira menipéia, também conhecida como sátira de Varrão, apoiando-se no modelo inglês da "Anatomia da Melancolia" (1621), de Robert Burton (10). Em sua forma longa, a anatomia em geral guarda certa independência com relação à tradição do romance, ao qual muitas vezes se combina (como no "Tristram Shandy", de Sterne), distinguindo-se por traços diversos de estruturação, pois se trata de uma modalidade de prosa de ficção extrovertida e voltada para o mundo exterior como o romance, mas muito mais intelectualizada, estilizada e digressiva, centrada na dissecação analítica de temas e atitudes intelectuais, dando asas à erudição enciclopédica e, por vezes, a certa dose de pedantismo (11). (Em Borges, em cuja obra se reconhecem vários desses traços, o humor sempre leva vantagem sobre o pedantismo).
Petrônio, Apuleio, Rabelais, Swift e Voltaire, entre tantos outros, seriam exemplos ilustres de avatares dessa tradição. Num ensaio sobre "Bouvard et Pécuchet", cuja afinidade com essa tradição também foi assinalada por Frye, Borges demonstra aguda consciência dessa linhagem de escritores a que vincula a obra do último Flaubert. Ao assinalar que ela rompe o padrão do romance realista criado com "Madame Bovary", mostra também que ela "mira, hacia atrás, a las parábolas de Voltaire y Swift y de los orientales y, hacia adelante, a las de Kafka" (12). Parece estar delineando assim sua própria filiação.
(continua)

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Borges ou do conto filosófico


Davi Arrigucci Jr.

(continuação)
E o que é ainda mais importante, do ângulo que aqui interessa: destaca o que se poderia chamar de técnica de deslocamento empregada tanto por Swift quanto por Flaubert. Para falar dos desejos da humanidade e da história universal, o primeiro os atribui a pigmeus ou a símios; o segundo, a dois sujeitos grotescos. O procedimento equivale, em certa medida, à técnica do "dépaysement"- a utilização de um personagem transplantado no estrangeiro, num meio estranho ou exótico-, largamente empregada por Voltaire, de que o autor de "Ficciones" tiraria igualmente enorme proveito.
Na época do conto voltairiano, já se está, é claro, muito distante dos modelos primitivos da sátira, e a fórmula moderna do conto, apoiada decerto no chão histórico da necessidade de esclarecimento, se converte, não num instrumento de difusão de verdades filosóficas assentadas, mas num meio novo de busca pela fantasia combinada à reflexão. Como se sabe, Voltaire tardou a chegar ao conto filosófico -o termo só aparece no tomo 13 de suas obras, em 1768-, sucedendo a um longo período de desconfiança com relação à prosa de ficção, a que seu espírito filosófico parecia rebelde, persa que era do gosto clássico (13). De início, tratava o gênero como fábula, conto de velhas, romances das Mil e uma noites, devaneios, extravagâncias, parecendo-lhe algo inverossímil, uma absurda mitologia cujos erros e crendices deveriam ser corrigidos pela razão: "Au commencenment était la fable, à la fin viendra la raison" (14).
Ao espírito extrovertido do filósofo, avesso às confissões à maneira de Rousseau, o caminho do conto filosófico, que se tornará o espaço de eleição de suas interrogações, dúvidas e angústias mais profundas, é também o itinerário de uma longa aprendizagem. Van Den Heuvel, que lhe estudou o percurso, assinala o espaço ficcional dos contos como o lugar de uma projeção simbólica. Nele, a experiência vivida do escritor ganha a dimensão universal através dos jogos da fantasia e do humor que encontram exatamente sua fórmula de expressão no conto filosófico.
O ponto essencial dessa fórmula, que, segundo aquele estudioso, nasceria com o exílio de Voltaire na Inglaterra, é exatamente a transplantação dos personagens para uma realidade outra. Nisto fará eco às famosas "Cartas Persas" de Montesquieu, tornando o deslocamento espacial uma condição da liberdade intelectual: uma libertação do espírito para a crítica, situado num quadro novo em que pode se mover com facilidade, completamente aberto às "luzes".
A experiência histórica, conforme a lição de Heuvel, estava na base das invenções ficcionais de Voltaire, mas sua imaginação pode ter-se acendido com o modelo literário próximo de Montesquieu, a quem parecia, no entanto, desprezar. E também a fórmula de Montesquieu tinha antecedentes bem conhecidos, sendo produto provável de uma tradição histórica já consolidada, de que se podem citar os exemplos de Marana, Dufresny, etc (15). Como em Borges, os espelhamentos são múltiplos, e a face original, inapreensível, perdida no labirinto infindável dos reflexos sucessivos.
O contista e a história
Essa vertente de Borges aqui exposta talvez tenha ajudado a formar, ao longo dos anos, a figura um tanto equívoca de um escritor intelectualista e cosmopolita, à margem da História. Imagem desgarrada, que só cresceu com o renome internacional do autor, a partir de "Ficciones". Assim cresceram também os equívocos a respeito de sua obra.
Tornou-se um lugar-comum da crítica vê-lo como o autor de uma visão alucinada do universo, artista da linguagem centrado sobre si mesmo e sempre isolado do real, posto além das circunstâncias imediatas, pairando num universalismo abstrato, meio fantasmal. Buscando o fundamento interpretativo na autoridade do próprio autor, comentarista de si próprio, a maioria dos críticos tendeu a fazer dos ditos de Borges sobre a literatura os ditos da crítica sobre Borges. Por uma espécie de petição de princípio, transformou o que deveria interpretar em fundamento da interpretação.
Desse modo, Borges desrealiza-se cada vez mais, à medida que passa o tempo, tendo colaborado bravamente para isto. "Será preciso explicar que sou o menos histórico dos homens?", pergunta ele pouco antes da morte, em 1986, no prefácio às obras completas da edição da Pléiade (16). No entanto, linhas abaixo, acrescenta: "Para fruir convenientemente de qualquer obra é preciso situá-la no contexto de seu momento histórico". A colocação contraditória e irônica repercute, porém, menos do que era de se esperar, e a caracterização ilusória é o que predomina na consideração crítica do escritor. Que a natureza de seu conto, fundindo arte e pensamento, tenha contribuído para isso não é das menores ironias do escritor.
Num ensaio sobre Hawthorne, de "Otras Inquisiciones", em que traça a história de uma metáfora -a de literatura como sonho- Borges distingue, sem fazer juízo de valor, entre escritores que pensam por imagens, como Donne ou Shakespeare, e outros, como Benda ou Bertrand Russel, que pensam por abstrações (e os que, como o próprio Hawthorne, insinuam conceitos mediante imagens alegóricas). O paralelismo me faz sempre pensar naquilo que o separa, a ele, Borges, enquanto autor de famosas abstrações que soube fundir em não menos notáveis imagens, de outro grande escritor de seu tempo que pensava fundamentalmente por imagens, por intuições, Guimarães Rosa. Em ambos a questão da História parece ter sido descartada -a literatura sempre lembrando um sonho desgarrado-, sendo, no entanto, decisiva, para sua compreensão.
Comparado com o nosso Guimarães Rosa logo se nota de fato que, por assim dizer, fingem ao contrário um do outro. O primeiro trabalha com figuras do pensamento, saídas sobretudo dos livros; o outro, com imagens concretas, aparentemente extraídas da experiência direta da realidade. Na verdade, porém, quando se observa melhor e mais a fundo, é notável o peso da realidade imediata em Borges, e muitas as mediações culturais em Rosa. A funda e complexa oposição entre ambos, sugere, entretanto, que se pense na dificuldade específica com que cada um desafia a crítica.
A dificuldade crítica no caso de Rosa é compreender como nele se universaliza a visão de um mundo particular -o sertão; como sua penetração nessa região específica é capaz de dar a ver, travestida nas imagens das estórias de capiaus mineiros, uma verdade humana geral e um mundo tão vasto e complexo quanto o nosso. Dante, Shakespeare, Goethe, Plotino ou Platão, se presentes (como tantas vezes, também em Borges), vêm reencarnados mediante traços físicos ou anímicos, atos, modos de vida, pormenores materiais ou espirituais de seres viventes que existem com toda a verossimilhança realista, em sua total complexidade humana. São caracteres do Sertão Mundo, criações artísticas de um regionalismo cósmico com as quais pode se identificar o homem de qualquer latitude, posto diante de personagens consistentemente problemáticos e concretos pela força da arte. Embora as marcas do tempo histórico sejam tênues no interior do sertão rosiano, elas existem, e este vem sempre referido ao mundo urbano, submetendo-se ao processo histórico, m mudanças constantes, supondo níveis distintos de realidade histórica em mistura sui generis, que não tem cara muito diferente daquela do país a que remete.
Em Borges, ao contrário, a dificuldade é compreender criticamente o lastro particular do universalismo ostensivo. Ele se acha já na própria matéria tratada, feita da generalidade do pensamento ou da universalidade do conceito, do saber erudito e livresco, alimentado pela leitura incessante, pelas citações inumeráveis da literatura universal. Um universo ficcional cujas amarras concretas existem, mas vêm ocultas ou descarnadas em situações imaginárias e posições específicas na obra, diagramáticas e abstratas (17). É essa a forma que toma o pensamento feito arte. Em Borges, é como se tudo se tivesse desgarrado de todo contexto histórico, para existir em absoluta autonomia com relação à realidade, sempre avessa, na sua opinião, a toda espécie de transcrição artística.
A oposição funda que separa dois dos maiores narradores que conheceram nossas letras exige, portanto, para sua exata compreensão, o reconhecimento histórico de seu verdadeiro modo de ser, onde talvez se encontrem para além das diferenças. Esta vasta e difícil empresa é, no entanto, matéria para outra história. Como no conto de Voltaire, a verdade histórica também faz parte do sonho da ficção.
Neste livro singular e extraordinário, o leitor encontrará reunidos os contos que deram fama internacional a Jorge Luis Borges. Os adjetivos que o acompanham mal exprimem a complexidade de suas múltiplas faces. Primeiro, a estranha marca de originalidade desses escritos inovadores, que renovaram o conto moderno. Depois, o caráter fora do comum de seus temas, abertos para o fantástico e a inesperada dimensão filosófica do tratamento. Por fim, a qualidade ímpar de sua prosa: na tradição hispânica, nenhuma brilhou tanto, desde o Século de Ouro de Cervantes e Quevedo.
Na carreira literária de Borges, o conto veio por tateios tímidos, depois de poemas e ensaios, aos quais por vezes já se mesclava. Quando por fim despontou, no final da década de 30, revelou, para assombro do leitor, um outro leitor mais tenebroso e singular que os bons autores que pudesse conhecer. Com efeito, grande parte da novidade da narrativa dependia de um narrador que era sobretudo um leitor inquieto e filosofante, sempre pronto a tirar da leitura, real ou fantasiada, o móvel da escrita. Esse comentador de todos e de si mesmo, era o deus de múltiplos labirintos que os enredos desses contos imitam num jogo infindável de espelhos, especulações e conjeturas, às vezes com a perícia das intrigas policiais e o rigoroso gosto da aventura, para quase sempre desembocar na perplexidade metafísica.
Pode-se imaginar a felicidade daquele que pela primeira vez se deparará com o universo fantástico de Tlõn, a memória de Funes ou com o duelo de arrabalde em que de novo joga a vida Martín Fierro. Aos demais, aos iniciados no inefável segredo, as recorrentes, inesgotáveis, inesquecíveis linhas e entrelinhas de Borges -o autor que, à semelhança de Shakespeare, quis ser todos e nenhum.
(continua)

Folha de São Paulo