Um brasileiro na Escola de Paris
Carlos E. Uchôa Fagundes Jr.
A arte moderna no Brasil sofreu das mesmas mazelas que outras manifestações culturais e foi gestada pela iniciativa corajosa e solitária de uns poucos, que depois tiveram de pagar sua ousadia inovadora pelo caráter tacanho do meio: não concretizaram seu projeto moderno como experiência cultural ampla. Até hoje a historiografia padece com chavões, já que poucas pesquisas abrangentes têm sido feitas para contextualizar melhor essas iniciativas.
Walter Zanini, o experiente historiador da arte, vem exumando a trajetória de Vicente do Rego Monteiro, um dos mais consistentes artistas do primeiro modernismo no Brasil. Esse trabalho de anos resulta agora no importante "Vicente do Rego Monteiro, Artista e Poeta, 1899-1970". O livro traz uma enorme quantidade de documentação inédita, que possibilita redimensionar a figura do artista no esforço de constituição da arte moderna no Brasil, bem como de todo o panorama a ele relacionado.
Mais conhecido em Paris, sua carreira, aqui, foi minada pelo temperamento dispersivo e irrequieto, mas também pelas dificuldades do meio. Não lhe perdoaram, talvez, a multiplicidade de talentos, tendo dedicado, nos anos 30 e 40, suas forças mais à poesia, ou, talvez, porque, nos redemoinhos dos anos 30, tenha aderido a idéias integralistas, quando a intelectualidade dominante cerrou fileiras no Partidão (PCB).
Estudando em Paris, nas prestigiosas Académie Julian e Grande Chaumière, aos 14 e 15 anos (1913 e 1914) já expunha no Salon des Indépendents. Depois de exposições pioneiras no Brasil, fez parte, pelas mãos de Ronald de Carvalho, da Semana de Arte Moderna de 1922.
Novamente em Paris, nesse ano, inicia uma sólida carreira, tendo, pelo meio da década, afirmado sua linguagem pessoal, que unia um olhar das vanguardas européias -então já no refluxo do "chamado à ordem"- a uma pesquisa formal baseada na arte amazônica. Estudou minuciosamente esta arte indígena, não só em seus mitos e temas, mas incidiu sobre seu nervo formal, sua organização de espaço, linhas e planos.
Um sinal de seu prestígio é o apoio dos conceituados críticos da época, como Maurice Raynal, Raymond Cogniat ou Jean Cassou, e as galerias onde expôs, como Bernheim Jeune e L'Effort Moderne. As duas representavam a nata dos artistas, e a última, do marchand Léonce Rosenberg, agrupou, na mesma época, Picasso, Braque, Léger, entre outros.
O livro de Walter Zanini é uma dessas raras obras que, pela obstinação e empenho pessoais do pesquisador, conseguem repensar, em passos solidamente garantidos pela pesquisa documental, os chavões cristalizados sobre a arte brasileira e o modernismo em particular. A figura pouco nítida ou extremamente simplificada de Rego Monteiro sai agora iluminada, mostrando toda a implicação e informação internacionais da arte moderna brasileira que permaneceram submersas. Embora Anita Malfatti tenha sido a primeira a assumir um projeto plástico dinamizado pelo olhar sobre a vanguarda européia, traduzido a partir de sua formação na Alemanha e Estados Unidos, Rego Monteiro esteve, desde adolescente, no olho do furacão, Paris, onde dialogou com os inventores da época e acabou criando um universo próprio de referência, que juntava o nacional e a vanguarda, ou pós-vanguarda, dos anos 20.
Nenhum outro brasileiro dessa época foi tão longe, como também nenhum outro conseguiu uma reputação tão sólida em Paris. Monteiro é o único brasileiro sobre o qual se pode dizer, com alguma precisão, que foi um dos atores da Escola de Paris: pertenceu a ela não só como receptor, mas como agente. O dado nacional de início entrara de modo conservador -e por isso teve logo a defesa de Monteiro Lobato, ao contrário de Anita, que merecera suas pedradas-, como inspiração de temática indígena. Mas, depois de 1921, toma o sentido de uma pesquisa plástica moderna, similar àquela empreendida por Picasso quanto à arte polinésia em 1906.
Se o ambiente moderno na Europa, no início dos anos 20, endereçava a um refluxo mais "realista", a linguagem que Rego Monteiro ia construindo passava, na mesma época, por experiências abstratas (1922), para se estabelecer, primeiro, numa figuração hieratizada, que unia o grafismo marajoara aos planos cubistas, depois chegando a um abrandamento mais clássico, que poderia, nos piores casos, passar por uma estilização "art déco", de uma elegância excessiva. É difícil, todavia, culpá-lo de "facilidade", considerando sua busca. Também Picasso nesses anos alternava as últimas obras do cubismo sintético com outras "neoclássicas". Era uma necessidade, em toda parte, buscar, depois das incursões mais ousadas, um fio que as religasse com a arte clássica, uma espécie de necessidade de síntese que envolvia a própria definição de arte.
Seu caminho não foi uma mera capitulação conservadora em relação ao meio brasileiro que, contra o internacionalismo das vanguardas, cobrava um nacionalismo de matiz sempre conservador. Monteiro propôs integrar uma contribuição nacional -embora esse nacional indianista seja questionável hoje- de modo não conservador, a fim de chegar a uma visualidade moderna. Mas, plasticamente, este projeto não foi completado, sofrendo sua obra uma cisão na década de 30; daí por diante, teve acertos esporádicos, já desmontada a força de um projeto plástico coeso, mas passou a exprimir-se como projeto poético e editorial, com o apoio a novos poetas de vanguarda. Todo esse trabalho não chegou a ter uma visibilidade que lhe desse a significação cultural devida.
Em contraste com o europeu, o meio cultural brasileiro, no qual se gestou a frágil onda heróica do modernismo, fica exposto com maior nitidez em suas dimensões extremamente acanhadas. Isso se vê quando Zanini transcreve e comenta toda a discussão crítica de cada exposição de Monteiro. Depreende-se, daí, por que Anita desistiu da vanguarda; por que Tarsila enveredou por caminhos tão trôpegos; por que Di Cavalcanti resolveu ser um cultor dos prazeres da vida em vez de um pintor aplicado; e por que Rego Monteiro embrenhou-se no interior de Pernambuco, em 1933, para produzir cachaça.
"Vicente do Rego Monteiro, Artista e Poeta", de Walter Zanini, tem ainda o mérito de franquear todo o longo caminho de pesquisa a outros estudiosos, trazendo rico acervo documental que abre portas a muitas novas investigações sobre outros artistas e diversos assuntos correlatos. Esperemos.
Carlos E. Uchôa Fagundes Jr. é artista plástico, doutor em história pela USP e autor de "O Beijo da História: Picasso como Emblema da Contemporaneidade" (Editora 34).
Folha de São Paulo
Carlos E. Uchôa Fagundes Jr.
A arte moderna no Brasil sofreu das mesmas mazelas que outras manifestações culturais e foi gestada pela iniciativa corajosa e solitária de uns poucos, que depois tiveram de pagar sua ousadia inovadora pelo caráter tacanho do meio: não concretizaram seu projeto moderno como experiência cultural ampla. Até hoje a historiografia padece com chavões, já que poucas pesquisas abrangentes têm sido feitas para contextualizar melhor essas iniciativas.
Walter Zanini, o experiente historiador da arte, vem exumando a trajetória de Vicente do Rego Monteiro, um dos mais consistentes artistas do primeiro modernismo no Brasil. Esse trabalho de anos resulta agora no importante "Vicente do Rego Monteiro, Artista e Poeta, 1899-1970". O livro traz uma enorme quantidade de documentação inédita, que possibilita redimensionar a figura do artista no esforço de constituição da arte moderna no Brasil, bem como de todo o panorama a ele relacionado.
Mais conhecido em Paris, sua carreira, aqui, foi minada pelo temperamento dispersivo e irrequieto, mas também pelas dificuldades do meio. Não lhe perdoaram, talvez, a multiplicidade de talentos, tendo dedicado, nos anos 30 e 40, suas forças mais à poesia, ou, talvez, porque, nos redemoinhos dos anos 30, tenha aderido a idéias integralistas, quando a intelectualidade dominante cerrou fileiras no Partidão (PCB).
Estudando em Paris, nas prestigiosas Académie Julian e Grande Chaumière, aos 14 e 15 anos (1913 e 1914) já expunha no Salon des Indépendents. Depois de exposições pioneiras no Brasil, fez parte, pelas mãos de Ronald de Carvalho, da Semana de Arte Moderna de 1922.
Novamente em Paris, nesse ano, inicia uma sólida carreira, tendo, pelo meio da década, afirmado sua linguagem pessoal, que unia um olhar das vanguardas européias -então já no refluxo do "chamado à ordem"- a uma pesquisa formal baseada na arte amazônica. Estudou minuciosamente esta arte indígena, não só em seus mitos e temas, mas incidiu sobre seu nervo formal, sua organização de espaço, linhas e planos.
Um sinal de seu prestígio é o apoio dos conceituados críticos da época, como Maurice Raynal, Raymond Cogniat ou Jean Cassou, e as galerias onde expôs, como Bernheim Jeune e L'Effort Moderne. As duas representavam a nata dos artistas, e a última, do marchand Léonce Rosenberg, agrupou, na mesma época, Picasso, Braque, Léger, entre outros.
O livro de Walter Zanini é uma dessas raras obras que, pela obstinação e empenho pessoais do pesquisador, conseguem repensar, em passos solidamente garantidos pela pesquisa documental, os chavões cristalizados sobre a arte brasileira e o modernismo em particular. A figura pouco nítida ou extremamente simplificada de Rego Monteiro sai agora iluminada, mostrando toda a implicação e informação internacionais da arte moderna brasileira que permaneceram submersas. Embora Anita Malfatti tenha sido a primeira a assumir um projeto plástico dinamizado pelo olhar sobre a vanguarda européia, traduzido a partir de sua formação na Alemanha e Estados Unidos, Rego Monteiro esteve, desde adolescente, no olho do furacão, Paris, onde dialogou com os inventores da época e acabou criando um universo próprio de referência, que juntava o nacional e a vanguarda, ou pós-vanguarda, dos anos 20.
Nenhum outro brasileiro dessa época foi tão longe, como também nenhum outro conseguiu uma reputação tão sólida em Paris. Monteiro é o único brasileiro sobre o qual se pode dizer, com alguma precisão, que foi um dos atores da Escola de Paris: pertenceu a ela não só como receptor, mas como agente. O dado nacional de início entrara de modo conservador -e por isso teve logo a defesa de Monteiro Lobato, ao contrário de Anita, que merecera suas pedradas-, como inspiração de temática indígena. Mas, depois de 1921, toma o sentido de uma pesquisa plástica moderna, similar àquela empreendida por Picasso quanto à arte polinésia em 1906.
Se o ambiente moderno na Europa, no início dos anos 20, endereçava a um refluxo mais "realista", a linguagem que Rego Monteiro ia construindo passava, na mesma época, por experiências abstratas (1922), para se estabelecer, primeiro, numa figuração hieratizada, que unia o grafismo marajoara aos planos cubistas, depois chegando a um abrandamento mais clássico, que poderia, nos piores casos, passar por uma estilização "art déco", de uma elegância excessiva. É difícil, todavia, culpá-lo de "facilidade", considerando sua busca. Também Picasso nesses anos alternava as últimas obras do cubismo sintético com outras "neoclássicas". Era uma necessidade, em toda parte, buscar, depois das incursões mais ousadas, um fio que as religasse com a arte clássica, uma espécie de necessidade de síntese que envolvia a própria definição de arte.
Seu caminho não foi uma mera capitulação conservadora em relação ao meio brasileiro que, contra o internacionalismo das vanguardas, cobrava um nacionalismo de matiz sempre conservador. Monteiro propôs integrar uma contribuição nacional -embora esse nacional indianista seja questionável hoje- de modo não conservador, a fim de chegar a uma visualidade moderna. Mas, plasticamente, este projeto não foi completado, sofrendo sua obra uma cisão na década de 30; daí por diante, teve acertos esporádicos, já desmontada a força de um projeto plástico coeso, mas passou a exprimir-se como projeto poético e editorial, com o apoio a novos poetas de vanguarda. Todo esse trabalho não chegou a ter uma visibilidade que lhe desse a significação cultural devida.
Em contraste com o europeu, o meio cultural brasileiro, no qual se gestou a frágil onda heróica do modernismo, fica exposto com maior nitidez em suas dimensões extremamente acanhadas. Isso se vê quando Zanini transcreve e comenta toda a discussão crítica de cada exposição de Monteiro. Depreende-se, daí, por que Anita desistiu da vanguarda; por que Tarsila enveredou por caminhos tão trôpegos; por que Di Cavalcanti resolveu ser um cultor dos prazeres da vida em vez de um pintor aplicado; e por que Rego Monteiro embrenhou-se no interior de Pernambuco, em 1933, para produzir cachaça.
"Vicente do Rego Monteiro, Artista e Poeta", de Walter Zanini, tem ainda o mérito de franquear todo o longo caminho de pesquisa a outros estudiosos, trazendo rico acervo documental que abre portas a muitas novas investigações sobre outros artistas e diversos assuntos correlatos. Esperemos.
Carlos E. Uchôa Fagundes Jr. é artista plástico, doutor em história pela USP e autor de "O Beijo da História: Picasso como Emblema da Contemporaneidade" (Editora 34).
Folha de São Paulo
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