A era brasileira
Francisco Iglesias
Comemorou-se em 1997 o centenário da edição do primeiro volume do principal livro de Joaquim Nabuco, "Um Estadista do Império". Nele o autor vinha trabalhando desde 1893. De fato só vem a circular e repercutir em 1898, quando aparece o segundo volume, completado em 1899. Desde então o livro chama a atenção da crítica e será reeditado algumas vezes, apesar da amplitude do texto de bem mais de 1.000 páginas: a primeira edição tem 1.554 páginas, em três volumes; a segunda, em dois volumes, 1.086; a terceira, em quatro, 1.563; a quarta, em um volume, 1.441. A presente -é a quinta- tem 1.444, em dois volumes, textos de Machado de Assis, Batista Pereira, José Veríssimo e, em apêndice, prefácio de Raimundo Faoro e posfácio de Evaldo Cabral de Melo. Esta é a mais primorosa edição que o texto já teve. Papel excelente, diagramação exata, índices de nomes e temas minuciosos representam ajuda ao pesquisador ou simples leitor.
Quando o publicou, Joaquim Nabuco já era nome nacional, seja por sua participação na campanha abolicionista ou presença no Parlamento e na imprensa e notável obra de escritor. Jovem, quis fazer obra poética, mas logo percebeu que não estava aí o seu caminho. Seguindo o conselho que o seu admirador Renan lhe dera de dedicar-se aos estudos históricos, passa a escrever e editar livros que lhe garantiriam nobre lugar na literatura e na ciência social. Na verdade, não era o começo da valiosa colaboração, pois antes lançara um dos mais belos textos da ciência social no país, "O Abolicionismo", escrito e publicado em Londres, em 1883 (data de prefácio), ainda hoje lido e visto como verdadeiro marco na produção nativa, até aí ainda muito pobre. Nabuco o escreveu em seu refúgio na Inglaterra, que viu como "o meu exílio" -é que fora derrotado na eleição de 1881 para a Câmara dos Deputados, à qual pertencia desde 1878 e na qual pretendia continuar.
Com a queda da monarquia, sente-se deslocado da vida pública e parte para outro exílio. Se do primeiro resultou o notável "O Abolicionismo", do novo resultará a sua obra máxima, que é a biografia do pai, o senador José Tomás Nabuco de Araújo. O autor confessa que há muito pensava em escrevê-la. Agora, com mais tempo, dedica-se a realizar o antigo plano. Se o livro lhe deu enorme trabalho, o autor foi muito ajudado pelo fato de dispor do material reunido que encontra -Nabuco de Araújo guardava todos os papéis, artigos de jornal de seu interesse, cartas e discursos, cerca de 30.000 documentos. Tem aí as fontes indispensáveis e nelas trabalha desde 1893.
E o faz com intensidade e emoção. A República vive os primeiros momentos, que são turbulentos, difíceis, com suas lutas como a da Armada no Rio de Janeiro e a Revolução Federalista, aí e no Sul. A situação era penosa e podia lembrar a quem a descreve o propalado clima de harmonia de antes, que, como é sabido, não era bem assim, pois a trajetória brasileira é toda de contestações e de lutas. Nabuco exagerou chamando o período de "era brasileira" e, nos volumes que então publica -"Balmaceda" e "A Intervenção Estrangeira Durante a Revolta"-, por vezes deixa escapar uma palavra de saudosismo, como em referências severas a Floriano, então na presidência. É o princípio do novo regime, ao qual não aderira. Só o fará quando convocado pela situação para servir como advogado na questão de fronteira com a Guiana Inglesa, que vai consumir-lhe o tempo e do qual resultará o seu admirável esforço, quando à frente do Ministério das Relações Exteriores está o seu maior ocupante, o Barão do Rio Branco, que o convoca. Apesar de monarquista convicto, Nabuco não era um ressentido e não se nega ao chamado.
"Um Estadista" despertou atenções da crítica, como se vê em comentários francamente favoráveis desde seu aparecimento -destaquem-se aí as admiráveis crônicas de Machado de Assis ou o estudo de José Veríssimo. O que é mais digno de atenção nessa obra é o equilíbrio nas críticas e nos julgamentos. Tem-se a história do Brasil, por meio da ação do pai -senador, presidente de Província, ministro de Estado. Monarquista, Nabuco podia ser passional e tendencioso, mas soube conter-se nos limites da possível neutralidade. Não pretendeu reconstituir a história do período, mas os episódios em que o pai atuou, muitas vezes decisivos para ele e para a nação -como no seu esforço no caso da Revolução Praieira em 1848, em Pernambuco, onde eram vivos os interesses do velho senador ou do seu filho, já na carreira política, na qual também vai distinguir-se.
O texto tem significado transcendente na bibliografia nativa: o autor serviu-se do arquivo paterno, com fontes originais ou impressas. Além disso, conhecera a política por dentro. Viu em sua casa, ainda menino, reuniões nas quais se decidia o destino nacional, como conta em passagens do seu livro de memórias, "Minha Formação", de 1900. Traçou perfis de protagonistas que viu, ouviu, com os quais conversou, deixando-lhe profundas marcas, como é razoável em criança viva, inteligente, desde pequeno atraído pela vida pública. Recolheu muita tradição oral, às vezes como testemunha. Contou também com a colaboração de amigos, como o Barão do Rio Branco, historiador além de político, que reveria as provas pelo menos dos dois primeiros volumes em Paris, revendo-as não só do ângulo tipográfico, mas também como historiador de amplo conhecimento, filho, como Nabuco, de notável estadista do império, o Visconde do Rio Branco. O livro não é uma biografia convencional, exaltando a ação de um indivíduo, mas dá o panorama do Segundo Reinado, até aí pouco conhecido. Como Nabuco de Araújo ocupou muitas funções e viveu momentos importantes, o pano de fundo adquire relevo dificilmente igualado.
Vários capítulos constituem monografias que esgotam o assunto. Assim no livro primeiro, no capítulo dois, sobre a Praieira, em que o episódio é exposto em sentido global. José Tomás era juiz em Recife e, nessa condição, devia presidir o julgamento dos rebeldes. O autor escreve então capítulo até hoje não superado. Destaque-se aí a terceira parte -caráter da agitação Praieira-, notável como captação do sentido de movimento de cujas idéias o pai não participava, o que não impediu ao biógrafo entendê-lo agudamente. Ainda em muitos outros capítulos, discorre sobre a ação paterna como parlamentar, presidente de província ou ministro. Assim o livro sete, os capítulos sobre o jurisconsulto e o conselheiro de Estado.
José Tomás morreu em 1878, mas o biógrafo continua, em breves linhas, estudando a monarquia até a sua queda. Um dos pontos altos são os perfis de políticos, feitos com maestria e traços fortes. O autor não era um erudito seco, mas imaginoso, criativo.
José Tomás foi realmente um estadista que se distinguiu como jurista. Orador notável, conhecedor da problemática da época, discutiu-a de modo superior na Câmara e no Senado. Sua biografia, pela amplitude documental, pelos quadros de pessoas e situações, pela acuidade das análises psicológicas, profundidade das interpretações, estrutura rigorosa, linguagem, por tudo, enfim, um livro sem igual na historiografia brasileira. Embora receoso das afirmações enfáticas, diria mesmo que é o seu ponto mais alto. Lendo-o, tem-se a sensação de uma obra do nível das maiores das grandes bibliografias, da inglesa ou da alemã, por exemplo. Nabuco conseguiu o que até então não se havia conseguido.
Apesar de isento, o texto é apaixonado, de um monarquista que escreve na República nascente. O quadro, contudo, não chega a ser idílico, só de louvores aos protagonistas -parlamentares, ministros, imperador-, mas tem sentido crítico. Ainda assim, podia dar a impressão de haver sido feito para contrapor uma ordem -a do Segundo Reinado- à relativa desordem do novo regime, com suas lutas, como a da Armada e a Federalista, o começo do episódio de Canudos, desordem financeira e certa instabilidade política vista como comum entre as repúblicas latino-americanas.
Não obstante, a ordem imperial também tinha algo de desordem, com as injustiças, o patriarcalismo, o trabalho escravo, a totalidade da população excluída da vida pública. Nabuco não só conhecia essa realidade, mas se empenhou em sua superação, como se viu sobretudo na luta pelo fim do escravismo -na imprensa, nos comícios, na tribuna da Câmara, ou em textos como o admirável "O Abolicionismo". O leitor desavisado podia ser levado a uma visão simplificada da realidade. Mais ainda: por ser uma biografia, pode exacerbar o gosto do estudo de figuras excepcionais -os estadistas-, provocando imitadores e o excesso de biografismo na historiografia. Não embarca, pois, em simples apologias ou juízos superficiais, indo ao fundo dos problemas. Tem consciência das fragilidades do império, a principal das quais é o regime de trabalho. Fez críticas candentes à coroa quando estudante e no início dos anos 70, quando começa a ser moda maior entusiasmo pela República. Tentado por ele, nunca deixou de ser monarquista, o que não impediu a denúncia do pouco empenho imperial pela causa a seu ver a mais importante, ou as exorbitâncias do Poder Moderador, como escreve em opúsculos ou panfletos e proclama em comícios, conferências, no parlamento.
Em boa hora é relançado "Um Estadista do Império". O texto de cem anos pode ter público bem maior e tem ainda o mesmo encanto e capacidade de sedução.
Francisco Iglesias é professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor, entre outros, de "Trajetória Política do Brasil" (Cia. das Letras).
Folha de São Paulo
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