segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A REVOLUÇÃO PASSIVA - IBERISMO E AMERICANISMO NO BRASIL


Um elogio da negociação

Ricardo Benzaquem
LUIZ WERNECK VIANNA

Os artigos reunidos neste livro, publicados nos últimos sete anos, lidam com autores aparentemente muito diversos, tais como Gramsci, Tocqueville, Oliveira Vianna e Tavares Bastos, trazendo ainda ensaios acerca da direção seguida pela revolução passiva no Brasil e sobre os caminhos tomados pela institucionalização das ciências sociais no país.
Esta maneira deliberadamente vaga e descritiva de apresentar a coletânea talvez dê ao leitor a impressão de que ela aproxima textos, eventualmente até muito importantes, mas que não possuem um vínculo sistemático e orgânico entre si. Ao contrário, uma das características mais impressionantes deste trabalho, ganhador do Prêmio Sérgio Buarque de Holanda - Ensaio Social, da Biblioteca Nacional, em 1997, reside precisamente na extraordinária consistência teórica que anima a sua reflexão, o que lhe permite enfrentar aqueles variados temas e autores com criatividade, sutileza e erudição, isto é, de modo intelectualmente complexo.
Tal complexidade exige o controle de um certo número de conceitos, entre os quais se destaca, antes de mais nada, o de revolução passiva. Desenvolvida na obra de maturidade de Gramsci, os "Quaderni del Carcere", essa categoria procura em primeiro lugar dar conta dos processos que levaram à consolidação da ordem burguesa em sociedades que não conheceram uma ruptura comparável à da França em 1789 e que, por conseguinte, chegaram ao capitalismo por uma rota que implicou a articulação de sofisticados compromissos políticos entre os grupos tradicionais e os mais modernos.
Fala-se aqui, é evidente, da Itália e da Alemanha, mas também, é sempre bom lembrar, dessa exemplar combinação de conservação e mudança em que se constitui a Inglaterra. Além disso, Gramsci teria ainda indicado outras situações em que o emprego da noção de revolução passiva poderia se mostrar extremamente esclarecedor, como, por exemplo, no estudo da passagem pacífica para o socialismo -complementando o momento ativo de 1917- e, sobretudo, no exame do caso norte-americano. Neste caso, o "transformismo" parece ganhar matizes diferentes, deslocando-se da negociação política, mais apropriada ao cenário europeu, para a própria esfera da produção industrial, onde, por um efeito imprevisto da anulação da subjetividade individual do operário promovida pela racionalização fordista, seria possível o surgimento de uma nova consciência coletiva do trabalhador, apontando molecularmente, desta vez, na direção da igualdade.
É justamente por este atalho, aliás, que Werneck irá associar a argumentação de Gramsci com a de Tocqueville, salientando que a expansão da democracia na América passa pela afirmação dos interesses materiais, particularmente se estes forem "bem compreendidos", ou seja, se ficar claro que esta afirmação também depende da defesa da cidadania e da liberdade política, quer dizer, em uma frase lapidar, do entendimento do fato de que "o útil é honesto".
A discussão já pode, agora, incorporar o pensamento social brasileiro, representado especificamente pelo iberista Oliveira Vianna e pelo americanista Tavares Bastos. O contraste, como se vê, tem como ponto de partida a clássica divisão entre uma tradição mais hierárquica, preocupada com a ordem, a autoridade e as diferenças sociais, e uma posição que busca levantar as bandeiras liberais, valorizando ao mesmo tempo a autonomia individual e a dimensão da vida material. Ocorre, porém, que esta distinção termina sendo sobredeterminada, na reflexão de Werneck, pela própria utilização da idéia de revolução passiva, a qual, em função mesmo do elogio da negociação e do compromisso nela embutido, praticamente impede que o iberismo e o americanismo aqui se concretizem de forma radicalmente antagônica, impondo-lhes uma convivência relativamente pacífica, tensa e instável, mas sociologicamente muito rica.
Vale a pena ressaltar, por sinal, a comparação feita pelo nosso autor entre o iberismo latino-americano e o brasileiro, em que o primeiro se manifesta de maneira bem mais pura, dura e fechada, enquanto o segundo chega inclusive a aceitar algumas contribuições americanas, admitindo certas alterações para poder se renovar e manter nos tempos modernos, tal como fica demonstrado pela bela, belíssima interpretação que nos é oferecida da obra de Oliveira Vianna.
Cabe observar, ainda neste contexto, que a própria argumentação de Werneck dá a impressão de sugerir os rumos em que ela poderia ser desenvolvida, pois torna evidente que a qualificação deste iberismo brasileiro poderia provavelmente se beneficiar de um maior diálogo com a herança portuguesa: basta lembrar, para tanto, a importância que as noções de plasticidade, adaptação e ambiguidade adquirem na definição do legado cultural lusitano, em clara oposição ao espanhol, nos trabalhos de autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.
Os textos em pauta, como se percebe, estão naturalmente abertos a desdobramentos e ampliações, por causa mesmo da sua própria força e riqueza intrínsecas. Mas há mais a ser dito: um último rendimento que Werneck parece retirar da idéia de revolução passiva à americana, tanto em Gramsci quanto em Tocqueville, seria a possibilidade de entendê-la, pelo seu caráter universal e pela sua ênfase na esfera dos interesses, como uma primeira referência para o processo de globalização que estaria hoje em curso -embora, a bem da verdade, deva registrar que ele jamais empregue explicitamente tal categoria.
A globalização, como a democracia, transmitiria portanto a sensação de ser um processo virtualmente irresistível, mas, do mesmo modo que a igualdade de condições produzida pelas sociedades democráticas pode conviver com o despotismo ou com a liberdade pública, ela talvez possa conhecer um destino que envolva mais do que a uniformização dos costumes, a neutralização da política e a elevação dos valores de mercado a um plano sagrado.
Ora, a análise que Werneck arrisca acerca dos caminhos seguidos pela revolução passiva no Brasil, sublinha o seu caráter eminentemente político, capaz, como já foi discutido, de admitir uma grande dose de ideais e instituições cosmopolitas sem que isso importe necessariamente no completo sacrifício da nossa identidade cultural e da soberania nacional. Conheceríamos, então, um transformismo mais ibérico que americano, mais português que americano, distinto portanto daquele que ameaça atualmente se converter em regra geral, mas de forma alguma menos digno. Ao insistir, discretamente, sobre a dignidade específica desta tradição, dignidade que parece aproximá-la das experiências européias anteriormente mencionadas, nosso autor fez com que me voltassem à memória as considerações feitas por Max Weber, no início deste século, sobre as relações entre a ciência e a política, quando ele assinala que o conhecimento, embora nunca tenha condições de superar o conflito de valores que informa a vida pública, não deixa de esclarecê-lo e de sugerir uma melhor avaliação das suas consequências, permitindo que ele possa ser movido tanto pela convicção quanto pela responsabilidade. Conhecido militante de esquerda e professor universitário no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Werneck simplesmente confirma, com o brilho, o rigor e a paixão deste seu último livro, a importância do papel desempenhado pelas ciências sociais no Brasil.
Ricardo Benzaquem de Araújo, autor de "Guerra e Paz" (Editora 34), é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Folha de São Paulo

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