A América e o pesadelo
Claudio Vouga
MARCELO JASMIN
Por que Tocqueville foi capaz de prever tão bem o sufrágio universal, o fim da escravidão e o inevitável conflito entre as raças nos EUA, a igualdade progressiva dos cidadãos e a pavorosa antevisão de uma sociedade totalitária de massas, que algumas almas ingênuas acreditaram referir-se à extinta União Soviética? O fato de ter antevisto um mundo, futuro para seu tempo, onde Rússia e América apareciam se defrontando, a primeira representando a tirania e a segunda a liberdade, serviu para induzir a esse erro, porém a tirania da Rússia, já soviética, era ainda a tirania do passado. Ora, o que atormentava nosso autor era algo diverso, não o despotismo oriental em mais uma de suas variantes, mas a tirania que ameaça o extremo Ocidente. Não o passado, mas o futuro, não só o seu futuro, porém também o nosso.
O frio que percorre nossa espinha quando, navegando pela Internet, repentinamente nos deparamos com um trecho célebre da 2ª parte da "Democracia na América", com o título "Le Cauchemar de Tocqueville" (O Pesadelo de Tocqueville), não se refere ao passado, mesmo recente, aos tempos do muro, quando o centro da Europa era o Leste, e o Leste o Gulag. É de outra coisa, é da América que Tocqueville fala, da América de seu tempo, da América de nosso tempo. Essa sociedade inteiramente compartimentada, onde nem família nem pátria subsistem.
"A hipótese básica do presente livro supõe que a história constitui um dos centros sensíveis de reflexão política de Tocqueville e que as dimensões éticas e epistemológicas do problema historiográfico tal como elaborados pelo autor são solidários à sua reflexão sobre o futuro da democracia." Esta hipótese é perfeitamente demonstrada pelo autor num texto conciso e elegante, que se lê com prazer e interesse.
Para o autor de "O Antigo Regime e a Revolução", a ação dos indivíduos sobre o destino da nação é sempre possível. Sendo a democracia inevitável, como prevenir o despotismo democrático, ou seja, como preservar a liberdade, frágil e sempre ameaçada, num mundo de igualdade crescente? Não se trata, de uma oposição entre liberdade e igualdade, mas, e a demonstração de Marcelo Jasmin é exemplar, de dois níveis distintos de reflexão, um que opõe democracia (isto é, igualdade) a aristocracia, outro que opõe liberdade a servidão. Para Tocqueville, a democracia aparece como o resultado inevitável de um processo de longa duração, a liberdade, porém, depende da ação dos homens. Conjugando história e política, pode-se escapar ao mesmo tempo do jacobinismo racionalista e da nostalgia reacionária e, assim fazendo, agir sobre o presente, o de 1848 ou o de 1998.
A ação política é a meta de Tocqueville, e esta deve ser orientada pelo conhecimento da política que só é possível pela compreensão possibilitada pela historiografia. E no centro de seu pensamento, como mostra Marcelo Jasmin, está o seu pesadelo, a questão do despotismo democrático, esse fenômeno novo, já antevisto antes da viagem à América, mas que o contato com essa realidade nova vai possibilitar sua plena compreensão. Não se trata apenas do fenômeno da "tirania da maioria" apontado por outros autores, como Jefferson por exemplo, mas de algo diferente, que além de constranger os corpos tolhe os espíritos.
Reparos devem se feitos à tentativa de explicação do dilema do despotismo democrático em termos da oposição entre Rousseau e Hobbes. Mesmo porque, como já mostrou Dahrendorf, quem sai procurando Rousseau acaba encontrando Hobbes. Apesar da onipotência do "Leviatã", nele a liberdade individual é muito mais preservada do que no contrato do genebrino. Por isso, qualquer aproximação, como a sugerida por Jasmin, entre a participação do cidadão em "Democracia na América" e a participação dissolvente do indivíduo e da liberdade do esquema rousseauísta é totalmente deslocada e não traz nenhum elemento novo para a tese central do livro.
A participação tocquevilliana dá-se por meio de corpos intermediários que podem desempenhar nas sociedades democráticas a mesma função da aristocracia, preservar a liberdade. Nada mais longe do pai da democracia totalitária, grande teórico da solidão e insignificância do indivíduo diante do todo-poder da entidade coletiva. Tocqueville demonstrou racionalmente que a liberdade é por essência aristocrática e que uma das maneiras de transformá-la no grande legado da classe social a que pertencia a humanidade poderia ser por intermédio de associações voluntárias entre os cidadãos tais como as que vira na América e que poderiam funcionar como um sucedâneo da nobreza capaz de servir de anteparo à centralização estatal concentradora de poderes em mãos da burocracia.
Também a referência a Benjamin Constant é no mínimo ligeira. Certamente, o autor dos "Princípios de Política", a quem Tocqueville deve muito, era mais crítico em relação a sua época e ao mundo burguês do que é dito por Jasmin, que parece ter restringido suas pesquisas a seu texto mais conhecido, apenas uma conferência de circunstância.
Mas esses são apenas reparos marginais a esse excelente livro que, além de ser obra para especialistas, é também uma introdução à obra tocquevilliana, cada vez mais atual, com a especial vantagem de ser uma introdução feita de uma perspectiva brasileira. Concordo com o prefaciador, L. W. Vianna, que chama a atenção para a relação entre maturidade intelectual de um país e sua aptidão em se apropriar da tradição clássica de um ramo do saber, embora não fique claro por que especialmente no caso dos países de capitalismo retardatário, a menos que a intenção seja justamente marcar a diferença com a América do Norte e sua particular tendência à pasteurização do mundo e do pensamento. M. Jasmin demonstra saber muito bem que o magnífico gado da região de Valognes, distrito por onde Tocqueville se elegeu tantas vezes deputado e onde tinha seu castelo, é bom para fazer escalopes normandos e não insossos hambúrgueres com milk shake.
Cláudio Vouga é professor do departamento de ciência política da USP.
Folha de São Paulo
Claudio Vouga
MARCELO JASMIN
Por que Tocqueville foi capaz de prever tão bem o sufrágio universal, o fim da escravidão e o inevitável conflito entre as raças nos EUA, a igualdade progressiva dos cidadãos e a pavorosa antevisão de uma sociedade totalitária de massas, que algumas almas ingênuas acreditaram referir-se à extinta União Soviética? O fato de ter antevisto um mundo, futuro para seu tempo, onde Rússia e América apareciam se defrontando, a primeira representando a tirania e a segunda a liberdade, serviu para induzir a esse erro, porém a tirania da Rússia, já soviética, era ainda a tirania do passado. Ora, o que atormentava nosso autor era algo diverso, não o despotismo oriental em mais uma de suas variantes, mas a tirania que ameaça o extremo Ocidente. Não o passado, mas o futuro, não só o seu futuro, porém também o nosso.
O frio que percorre nossa espinha quando, navegando pela Internet, repentinamente nos deparamos com um trecho célebre da 2ª parte da "Democracia na América", com o título "Le Cauchemar de Tocqueville" (O Pesadelo de Tocqueville), não se refere ao passado, mesmo recente, aos tempos do muro, quando o centro da Europa era o Leste, e o Leste o Gulag. É de outra coisa, é da América que Tocqueville fala, da América de seu tempo, da América de nosso tempo. Essa sociedade inteiramente compartimentada, onde nem família nem pátria subsistem.
"A hipótese básica do presente livro supõe que a história constitui um dos centros sensíveis de reflexão política de Tocqueville e que as dimensões éticas e epistemológicas do problema historiográfico tal como elaborados pelo autor são solidários à sua reflexão sobre o futuro da democracia." Esta hipótese é perfeitamente demonstrada pelo autor num texto conciso e elegante, que se lê com prazer e interesse.
Para o autor de "O Antigo Regime e a Revolução", a ação dos indivíduos sobre o destino da nação é sempre possível. Sendo a democracia inevitável, como prevenir o despotismo democrático, ou seja, como preservar a liberdade, frágil e sempre ameaçada, num mundo de igualdade crescente? Não se trata, de uma oposição entre liberdade e igualdade, mas, e a demonstração de Marcelo Jasmin é exemplar, de dois níveis distintos de reflexão, um que opõe democracia (isto é, igualdade) a aristocracia, outro que opõe liberdade a servidão. Para Tocqueville, a democracia aparece como o resultado inevitável de um processo de longa duração, a liberdade, porém, depende da ação dos homens. Conjugando história e política, pode-se escapar ao mesmo tempo do jacobinismo racionalista e da nostalgia reacionária e, assim fazendo, agir sobre o presente, o de 1848 ou o de 1998.
A ação política é a meta de Tocqueville, e esta deve ser orientada pelo conhecimento da política que só é possível pela compreensão possibilitada pela historiografia. E no centro de seu pensamento, como mostra Marcelo Jasmin, está o seu pesadelo, a questão do despotismo democrático, esse fenômeno novo, já antevisto antes da viagem à América, mas que o contato com essa realidade nova vai possibilitar sua plena compreensão. Não se trata apenas do fenômeno da "tirania da maioria" apontado por outros autores, como Jefferson por exemplo, mas de algo diferente, que além de constranger os corpos tolhe os espíritos.
Reparos devem se feitos à tentativa de explicação do dilema do despotismo democrático em termos da oposição entre Rousseau e Hobbes. Mesmo porque, como já mostrou Dahrendorf, quem sai procurando Rousseau acaba encontrando Hobbes. Apesar da onipotência do "Leviatã", nele a liberdade individual é muito mais preservada do que no contrato do genebrino. Por isso, qualquer aproximação, como a sugerida por Jasmin, entre a participação do cidadão em "Democracia na América" e a participação dissolvente do indivíduo e da liberdade do esquema rousseauísta é totalmente deslocada e não traz nenhum elemento novo para a tese central do livro.
A participação tocquevilliana dá-se por meio de corpos intermediários que podem desempenhar nas sociedades democráticas a mesma função da aristocracia, preservar a liberdade. Nada mais longe do pai da democracia totalitária, grande teórico da solidão e insignificância do indivíduo diante do todo-poder da entidade coletiva. Tocqueville demonstrou racionalmente que a liberdade é por essência aristocrática e que uma das maneiras de transformá-la no grande legado da classe social a que pertencia a humanidade poderia ser por intermédio de associações voluntárias entre os cidadãos tais como as que vira na América e que poderiam funcionar como um sucedâneo da nobreza capaz de servir de anteparo à centralização estatal concentradora de poderes em mãos da burocracia.
Também a referência a Benjamin Constant é no mínimo ligeira. Certamente, o autor dos "Princípios de Política", a quem Tocqueville deve muito, era mais crítico em relação a sua época e ao mundo burguês do que é dito por Jasmin, que parece ter restringido suas pesquisas a seu texto mais conhecido, apenas uma conferência de circunstância.
Mas esses são apenas reparos marginais a esse excelente livro que, além de ser obra para especialistas, é também uma introdução à obra tocquevilliana, cada vez mais atual, com a especial vantagem de ser uma introdução feita de uma perspectiva brasileira. Concordo com o prefaciador, L. W. Vianna, que chama a atenção para a relação entre maturidade intelectual de um país e sua aptidão em se apropriar da tradição clássica de um ramo do saber, embora não fique claro por que especialmente no caso dos países de capitalismo retardatário, a menos que a intenção seja justamente marcar a diferença com a América do Norte e sua particular tendência à pasteurização do mundo e do pensamento. M. Jasmin demonstra saber muito bem que o magnífico gado da região de Valognes, distrito por onde Tocqueville se elegeu tantas vezes deputado e onde tinha seu castelo, é bom para fazer escalopes normandos e não insossos hambúrgueres com milk shake.
Cláudio Vouga é professor do departamento de ciência política da USP.
Folha de São Paulo
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