Um painel atualizado
Fernando Peixoto
Publicado pela primeira vez em 1962, escrito a pedido de Lauro Escorel de Moraes, que era chefe do Departamento Cultural do Ministério de Relações Exteriores, com o objetivo de ser divulgado em outros países, "Panorama do Teatro Brasileiro" permanece um valioso e imprescindível documento para o conhecimento e a compreensão do significado histórico de nosso teatro. Resultado de aprofundado estudo dos mais expressivos e contraditórios momentos de nossa dramaturgia, trata-se de uma referencia essencial para uma reflexão crítica sobre autores, textos e movimentos culturais. E volta agora, em terceira edição, mantendo o texto original mas com o acréscimo de dois apêndices, "O Texto no Moderno Teatro", de 1987, e "Tendências Contemporâneas", de 1996, estudos que procuram atualizar indicações críticas e tendências.
Sábato é um dos nomes mais expressivos do setor teórico de nosso teatro. Enquanto crítico, professor e autor de valiosos ensaios publicados em livros, entre os quais cabe mencionar, por exemplo, de "O Cenário no Avesso" (1977), "Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações" (1987) e "O Texto no Teatro" (1989). Não foi nunca um crítico distante da produção: sempre conviveu com destacadas figuras de nosso movimento cênico, mantendo a valiosa postura de amigo e crítico inteligente e responsável. E para a prática teatral consequente e produtiva sem dúvida é essencial contar com a presença de uma visão teórica rigorosa que sirva como possibilidade de provocar reflexão e dúvidas, o que faz o trabalho ganhar mais rigor e criatividade.
"Panorama do Teatro Brasileiro" preenche um espaço pouco ocupado em nosso país: multiplica-se, nos últimos anos, a publicação de teses universitárias sobre instantes de nossa dramaturgia ou da nossa linguagem cênica, mas são quase inexistentes as análises que enfocam o processo teatral através da história. Poderíamos citar poucos exemplos, entre os quais a "Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno" (1956), de Décio de Almeida Prado, e "O Teatro no Brasil" (1960), de J. Galante de Sousa. Ou outros dois livros especialmente valiosos, mas até hoje editados fora do Brasil: "Teatro in Brasile" (1961), de Ruggero Jacobbi, publicado na Itália, e "Teatro Brasileño" (1980), de Walter Rela, no Uruguai.
Sábato começa analisando o significado ideológico e narrativo do teatro de catequese religiosa realizado por Anchieta. A partir daí, detém-se no estudo dos nomes mais expressivos dos mais diferentes instantes do teatro brasileiro, examinando alguns dos textos mais reveladores desta imensa pluralidade de estilos e propósitos, estudando cada personalidade literária em relação a seu contexto histórico. A partir de uma análise reveladora sobre a obra de O. de Andrade, Sábato detém-se em momentos básicos da história do espetáculo, acentuando o significado de Ziembinski enquanto encenador, assim como ressaltando a importância do Teatro Brasileiro de Comédia e, em seguida, do Teatro de Arena de São Paulo.
O capítulo "O Desbravador" é um estudo sobre a obra de Nelson Rodrigues, "Incorporação das Fontes Rurais" analisa o aparecimento de Jorge Andrade, em "Em Busca do Populário Religioso" realiza uma análise minuciosa dos primeiros textos de Ariano Suassuna e "Introdução dos Conflitos Urbanos" detém-se no estudo do dramaturgo que surgia como exemplo de renovação e aprofundamento de uma temática social responsával e transformadora, Gianfrancesco Guarnieri, então com apenas três peças encenadas. E os dois capítulos finais da edição original referem-se aos mais diferentes e contraditórios caminhos da nova dramaturgia nacional: detém-se em brevemente em nomes como Dias Gomes e Boal e inclui apenas um parágrafo sobre Oduvaldo Vianna Filho (que havia estreado "Chapetuba Futebol Clube"). E encerra o livro com referências a diferentes aspectos de nosso teatro, como o avanço da televisão, o ensino, a crítica, o movimento de teatros de estudantes, as relações do movimento cênico com o governo, a presença de encenadores estrangeiros.
Ter sido escrito há 36 anos atrás não prejudica o livro em nada: ao contrário, situa a análise crítica num instante especial de nosso processo criativo e desperta, hoje, uma reflexão crítica necessária. Sábato fez bem em não alterar o original. E acrescentou dois apêndices que nos trazem aos dias de hoje, ainda que sem mergulhar num estudo crítico mais detalhado ou aprofundado, muitas vezes limitando-se a citações que definem o quadro geral do panorama atualizado, mas inclusive destacando o significado, às vezes polêmico, da linguagem da encenação enquanto elemento mais decisivo do espetáculo moderno.
O primeiro parte do significado da Semana de Arte Moderna, retoma a atualidade de Nelson Rodrigues, o papel transformador do Teatro de Arena e o vigor dos textos mais recentes de Guarnieri. Atualiza referências expressivas às novas peças de Vianinha e cita com destaque nomes expressivos da dramaturgia mais recente, entre os quais Carlos Queiroz Telles, Antonio Callado, Ferreira Gullar, Chico Buarque, César Vieira, Consuelo de Castro, Leilah Assunção, Renata Pallottini, Soffredini, João das Neves etc. E tem um novo referencial essencial para a análise da atividade teatral em nosso país: o golpe militar de 1964 e os anos de ditadura.
O segundo apêndice menciona dramaturgos mais recentes, como Mauro Rasi e Miguel Falabella, ataca com razão o "besteirol", menciona novas referências estrangeiras, agora não apenas Brecht ou Artaud ou Grotowski, mas também Bob Wilson e Peter Brook, Kazuo Ohno e Pina Bausch, entre outros. E não deixa de referir-se também, no final, a aspectos da "crise" de nossos dias, como a difícil divulgação dos espetáculos na imprensa, o peso esmagador da televisão, os riscos que corre a pesquisa de novas linguagens e também o teatro popular, a ausência de uma política cultural oficial correta e consequente.
Mas estes capítulos finais são apenas um panorama resumido, sem que textos ou linguagens teatrais sejam examinadas com um sentido crítico aprofundado. Muitos nomes são citados, mas alguns de significativa importância estão ausentes. Não há também uma análise do teatro de rua ou dos grupos de criação coletiva E o panorama refere-se apenas a São Paulo e Rio, quando a realidade nacional é bem mais ampla e diversificada. Mas, mesmo assim, ler hoje "Panorama do Teatro Brasileiro" é não apenas um necessário exercício de conhecimento do passado, como também o urgente estímulo para uma reflexão consequente sobre o hoje. Fazendo pensar no amanhã.
Fernando Peixoto é diretor de teatro e autor, entre outros livros, de "Teatro em Pedaços" (Hucitec).
Folha de São Paulo
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