Minas são muitas
Carla Anastasia
HISTÓRIA
Dizia Guimarães Rosa que "Minas são muitas". E continuam múltiplas, principalmente se examinamos as dissertações de mestrado defendidas recentemente na Universidade de São Paulo sobre o século 18 mineiro e publicadas numa coleção dirigida por Fernando Novais e István Jancsó. Os trabalhos pretendem lançar luzes sobre a intrincada historiografia da Capitania de Minas Gerais. Mitos como os da mineiridade, da tradicional família mineira, da exclusividade da economia mineradora, da contextualização inconfidente das "Cartas Chilenas" têm sido colocados em xeque por esses, e outros, novos estudos.
Luciano Figueiredo aborda o cotidiano de sentimentos, de paixões e afetos, violências e solidariedade no domínio da família mineira no século 18. Com uma investigação cuidadosa das devassas episcopais na capitania, fontes relativamente pouco trabalhadas à época em que desenvolveu sua dissertação, consegue captar e transmitir ao leitor este cotidiano familiar nos arraiais e vilas das Minas setecentistas. Partindo de um suposto ainda polêmico entre os historiadores, de que o projeto de colonização metropolitano nem sempre foi eficaz, especialmente no que se refere à área mineradora, Figueiredo analisa a dinâmica própria da vida familiar das Minas setecentistas, que a metrópole não conseguiu enquadrar apesar das suas rígidas normas político-religiosas.
Mas, enfatiza o autor, essa dinâmica não pode ser vista como indisciplina, o que pode transparecer a partir da ótica metropolitana, senão deve ser percebida como um "espaço por excelência da solidariedade". Ou seja, observam-se nas Minas padrões próprios de uma moral comunitária e coletiva, padrões que explicitam o exagero dos afetos, a convivência da prostituição junto à estrutura familiar, a autonomia feminina que o autor já mostrara em outro livro seu, "O Avesso da Memória". O cotidiano familiar das Minas é o cotidiano tenso das uniões ilegítimas, nas quais o excesso de amor está sempre junto do excesso de violência, das relações estáveis entre senhores e escravos, dos incestos, dos raptos, dos adultérios, da vida escandalosa de mulheres, que, devido ao afastamento prolongado dos maridos, o que era normal nas Minas, "passavam a tratar com vizinhos". Este cotidiano desautoriza o mito da "tradicional família mineira", conservadora e patriarcal.
Pelo mesmo caminho envereda a análise de "O Universo do Indistinto", bem mais complexa e densa do que a desenvolvida em "Barrocas Famílias". Não obstante Figueiredo já antecipasse em seu trabalho a indistinção da sociedade mineira, ao apontar reiteradamente os seus paradoxos, não foi capaz, ou não teve a intenção, de dar conta do significado das polaridades expressas nos documentos arrolados.
Marco A. Silveira inicia seu trabalho apontando as dificuldades que funcionários reais e memorialistas tiveram em compreender a dinâmica social das Minas, a qual reputaram por desvios da senda da civilização. Segundo ele, jamais conseguiram perceber que o "vulgo ignorante" das Minas setecentistas reconstruía, de maneira fragmentária, formas diversas de classificação e entendimento. A complexa sociedade mineira do século 18 teria vivenciado a indistinção como elemento de uma visão de mundo.
Esta indistinção caracterizou uma sociedade dividida entre a ética da palavra e a ética da circulação. Em uma região onde o crédito era condição essencial para as trocas, as ações de alma examinadas pelo autor, ou seja, o juramento oral pela alma do pagamento da dívida ao credor, revelam, por exemplo, a importância da palavra. A violência, muito bem documentada por Silveira, foi a linguagem fundamental das Minas, por meio da qual se debatiam as identidades pessoais e sociais. Nesta linguagem, a honra detinha o papel principal. E é, por exemplo, na relação estabelecida pelo autor entre a honra e a vida feminina nas Minas setecentistas que transparece a densidade do trabalho de Silveira. Se Figueiredo reitera a autonomia das mulheres da Capitania das Minas, Silveira mostra a necessidade de se relativizar esta autonomia pela presença marcante dos valores patrimonialistas e escravistas, pela obsessão com a honra e a dignidade.
Muito interessante é a afirmação de Silveira que o discurso do movimento de 1789 nas Minas explicitava o desejo dos inconfidentes de que as coisas na capitania fossem colocadas em seus devidos lugares, transformando-a em uma sociedade em que tudo pudesse ser claramente definido. Os versos de Tomás Antônio Gonzaga, nas "Cartas Chilenas", que criticavam a decadência dos costumes civilizados, substituídos pela arrogância de pardos e comerciantes, seriam exemplares.
E é exatamente sobre a apropriação das "Cartas Chilenas" como fonte histórica que trata Joaci Furtado. Embora não fale especificamente do cotidiano das Minas setecentistas, sua análise contribui decisivamente para o esclarecimento de aspectos da dinâmica política da capitania no último quartel do século 18. Trabalhando na fronteira da crítica literária e da historiografia, critica o que qualifica de "leitores extemporâneos" de Critilo, para os quais o poema é "um dado natural, algo pronto e acabado que basta apenas ser decodificado em seus mínimos detalhes para que, com tal grau de minúcia, aquele passado ressurja em sua plena objetividade". Nessa medida, sem mediações de ordem poética ou contextual, o discurso de Critilo aparece como a fala de toda a sociedade mineira sobre a conjuntura política do governo de Cunha Menezes. A sátira foi muitas vezes utilizada como "espelho do real" e, assim, apropriada pela historiografia.
Enquanto o trabalho de Furtado, como afirma Ronald Polito, faz uma leitura menos anacrônica e menos ingênua do passado, o argumento central de Figueiredo e Silveira, não obstante a qualidade acadêmica dos seus trabalhos, pode ser colocado em xeque. Se a violência interpessoal, as sedições, a vida familiar pouco ortodoxa, a legislação alternativa são, como querem os autores, um "espaço por excelência da solidariedade" ou elementos de uma visão de mundo, que significado teria a (des)ordem nas Minas setecentistas? Esta é, sem dúvida, uma questão para se refletir. Contudo, esta questão não compromete a qualidade dos trabalhos. Afinal, se as Minas são muitas, as possibilidades da história também o são. O que não deixa de ser um conforto para os historiadores.
Carla Anastasia é professora de história na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Folha de São Paulo
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