Almas desvendadas
Pedro Vasquez
Ao constatar a febre do retrato fotográfico que acometeu seus contemporâneos logo no alvorecer da fotografia, o poeta Charles Baudelaire, paradigma do antiburguês, vituperou contra a "sociedade imunda (que) se precipitou, como um único Narciso, para contemplar sua imagem trivial sobre o metal" (1) (o processo dominante ainda era a daguerreotipia, daí a referência ao metal). O feitiço entretanto acabou se virando contra o feiticeiro e Baudelaire não só perdeu todo esse ardor condenatório como, no final da vida, andava com os bolsos cheios de retratos seus no formato "carte-de-visite" (2), distribuindo-os despudoradamente aos amigos como o mais narcisista dos burgueses.
Tal mudança radical foi decerto provocada pela percepção de que o retrato, longe de ser apenas um fútil instrumento de exaltação do amor-próprio ou de culto à personalidade, é, antes de mais nada, um elemento de ligação com o outro e um mecanismo de investigação da condição humana que refaz a indagação formulada por Gauguin numa de suas mais célebres pinturas do período taitiano: "Donde viemos? O que somos? Para onde vamos?".
O bom retrato fotográfico, aquele que não se detém no aspecto exterior do retratado, nasce sempre -ainda que isto possa ocorrer de forma inconsciente- da formulação desta indagação, sendo fruto do esforço combinado e ativo do modelo e do fotógrafo, cada qual se abrindo e se doando para o outro com a mesma irrestrita disponibilidade. Retratos desta natureza transcendem tanto o fotógrafo quanto seu modelo, que sobrevivem em muito às glórias eventuais ou duradouras de ambos, adquirindo uma dimensão própria que dispensa explicações e justificativas, adquirindo nexo mesmo para um observador distanciado no tempo e no espaço, que tudo ignora sobre o modelo e sobre o autor de sua fotografia.
Se retratos desta natureza são raros, mais ainda são os fotógrafos capazes de produzi-los, pois para tanto não é preciso ser um expoente na técnica fotográfica ou alguém com prestígio suficiente para ter acesso a personalidades famosas, e sim ser genuinamente interessado no outro. É preciso combinar generosidade e humildade, para evitar transformar seus retratados em meras cobaias de pesquisas estéticas e de supérfluas piruetas técnicas.
Antes de ir mais adiante, devo precisar que considero Madalena Schwartz como uma destas raras fotógrafas, enquanto encaro com reservas alguns dos mais festejados monstros sagrados do retrato fotográfico, como Yossuf Karsh -corretamente definido por alguém como um "taxidermista da fotografia"- e Richard Avedon, certamente mais talentoso e sensível do que Karsh, mas que, seguindo a mesma linha de raciocínio, poderia ser definido como um "entomologista da fotografia", pois transforma todos os seus retratados em insetos acuados diante do fundo assepticamente branco de seu estúdio, conferindo a todos o mesmo ar desolado de visceral tristeza que tem na série dedicada à degenerescência de seu pai, vítima de câncer, o implacável ponto culminante.
Em "Personae" estamos longe da rigidez do virtuosismo -essa espécie de sucedâneo da morte-, plenamente mergulhados no fluxo incoercível da vida, assistindo a um só tempo à evolução de seu fazer fotográfico e à multiplicidade das sensações e das possibilidades humanas. Excetuando seu filho Jorge, autor desta bela homenagem póstuma ao talento de Madalena, todos os retratados são figuras públicas, mas não encontramos em seus retratos a mesma empáfia niveladora dos vitoriosos, que tanto incomoda nos retratos de Karsh. Famosos ou não, trata-se aqui de pessoas, de verdadeiros seres humanos, alguns sem dúvida deslumbrados com a própria importância, uns alegres, outros tristes, outros até mesmo depressivos, mas todos humanos e nenhum deles indiferente.
São -com poucas exceções, como Pelé, dom Helder Câmara, Mãe Menininha do Gantois, Lula e Jânio- nomes importantes da área cultural, que ajudaram a forjar nossa identidade nacional, fotografados entre as décadas de 60 e 80. Em alguns dos retratos da fase inicial, quando ainda estava sob a influência das regras clássicas do gênero aprendidas nos cursos do Foto-Cine Clube Bandeirante, existe uma tendência para um enfoque dramático, com uma pose mais formal e uma iluminação mais enfática -como nos retratos de Raul Cortez, Paulo Vilaça e Paulo Autran. Algumas destas fotos são esplêndidas, como a de Walmor Chagas, que abre o livro, e a de Bibi Ferreira, que parecem personificar todo o desespero impotente que garroteava os artistas e os intelectuais durante o período da ditadura militar. Contudo, será ao abandonar o restritivo fundo negro do estúdio para focalizar os retratados em seus ambientes naturais de vida ou de trabalho que o talento de Madalena Schwartz se expande de forma mais efetiva, adquirindo uma leveza e um despojamento que sublinham sua argúcia psicológica, numa postura que evoca o estar ali sem estar ali de dois outros grandes mestres do retrato contemporâneo: o francês Henri Cartier-Bresson e o norte-americano Lee Friedlander, que também se destacaram como autores de retratos de membros da elite intelectual.
Num livro de qualidade tão homogênea, seria ocioso destacar esta ou aquela imagem. Contudo, se fosse preciso enfatizar a importância de apenas uma delas, valeria a pena evocar o retrato do físico e crítico de arte Mário Schenberg, de 1975, quando a autora, com parcos 10 anos de experiência, já demonstrava pleno domínio de seu "métier", conseguindo sublimar a técnica para se entregar totalmente à análise psicológica.
Para concluir, cumpre dizer que a impressão faz justiça às fotografias originais, enquanto textos curtos de Emanoel Araújo, Maria Bonomi, Gilda de Mello e Souza, Pietro Maria Bardi e Inácio de Loyola Brandão iluminam gradativa e agradavelmente a personalidade e a carreira desta húngara que foi dona de tinturaria na capital paulista, antes de conquistar seu lugar como a grande dama do retrato fotográfico em nosso país -posição que o presente livro justifica e ratifica.
Notas
1. Baudelaire, Charles, "Photography", in "Photography: Essays & Images", Beaumont Newhall (org.), The Museum of Modern Art, New York, 1980, pág. 112.
2. Formato de apresentação de fotografias inventado pelo fotógrafo francês Disdéri em 1854, mas difundido sobretudo a partir da década de 1860, no qual uma imagem de cerca de 9,5 cm x 6 cm era montada sobre um cartão suporte de cerca de 10 cm x 6,5 cm.
Pedro Karp Vasquez é fotógrafo e autor de "Álbum da Estrada União e Indústria" (Quadratim), sobre o fotógrafo oitocentista Revert Henrique Klumb.
Folha de São Paulo
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