Cicatriz pagã
João Silvério Trevisan
Apesar da sua importância para estudos de gênero e abordagens sociológicas, os travestis prostitutos constituem um dos fenômenos menos analisados do Brasil moderno, tanto pelos preconceitos que despertam (inclusive na área universitária) quanto pelos paradoxos que envolvem. Mais do que explicado, esse fenômeno encontra-se agora revelado neste livro do psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart. Trata-se de uma pesquisa (em edição bilíngue português-inglês) contendo depoimentos e fotos coletadas durante três anos de trabalho entre os travestis do Rio de Janeiro.
Denizart mostra-nos os travestis tratados socialmente como dejetos e ao mesmo tempo como fascinantes objetos do desejo, que desafiam as regras em seu próprio corpo, tornado um campo de experimento e ambiguidades. Não por acaso, trata-se de jovens marginalizados das periferias mais miseráveis do país, tanto do interior quanto das grandes cidades, e o recurso à prostituição é a mais viável, senão única, alternativa de sobrevivência que lhes resta. Tidos como escória entre os próprios párias sociais, os travestis constituem provavelmente os confins das margens a que chegou a sociedade brasileira, até o ponto de tornarem-se invisíveis nas estatísticas oficiais. Por exemplo, nunca se pensou incluí-los nas estatísticas de desempregados que são, por sua condição de párias e semi-analfabetos. Pode-se ter uma medida extrema dessa sua invisibilidade oficial quando se pensa que até mesmo um drama brasileiro -as crianças abandonadas-, que rende manchetes indignadas na mídia nacional e internacional, esquece de mencionar as centenas de adolescentes travestis. Vários depoimentos do livro atestam que, quase sem exceção, eles sofrem violência dentro de casa, antes de serem expulsos para a rua, quando ainda muito jovens, entre 9 e 17 anos. Motivo: desviar-se logo cedo das normas sexuais e padrões de gênero socialmente consagrados.
Perfeita nas suas contundentes entrevistas, no magnífico ensaio fotográfico e no projeto gráfico, a obra de Denizart oferece a visão de um Brasil paradoxal em que se misturam inextricavelmente o arcaico e o moderno, o profano e o sagrado, a dor e a beleza, a sujeira e a transfiguração. Mas sua complexidade ultrapassa o mero libelo social. Enquanto as altas tecnologias de clonagem e engenharia genética propõem visões futuristas do mundo, Denizart flagra uma tecnologia do erótico no quotidiano atual, por meio dos travestis. Claro que sua existência dói e agride, sobretudo quando se pensa nos hormônios e quilos de silicone industrial que vão arredondar suas formas. Mas a metamorfose sofrida por esses homens-mulheres almeja certa redenção mediante uma beleza superlativa e artificial. Se a sociedade vende incessantemente a imagem da mulher "perfeita" nas fantasias do macho hegemônico, os travestis realizam um triunfante retorno do reprimido ao materializar tais fantasias, jogando-as ardilosamente de volta. Para entender como isso funciona, leiam-se os contundentes depoimentos sobre seus clientes (quase sempre homens casados) com seus estranhos desejos (às vezes, alugar apenas um sutiã do travesti, para desfilar por meia hora numa praça).
Entre as tantas cicatrizes pagãs deixadas no mundo cristão, pode-se considerar o travesti como uma das suas mais visíveis reminiscências. A abordagem de Denizart desvela-nos a atualização do arcaico sonho humano de destruir as barreiras entre os sexos, para chegar à alquimia sagrada do "unus mundus": nem só masculino, nem só feminino, mas a totalidade do andrógino. Já Mircea Eliade apontava a função sagrada da androginia em mitos greco-romanos e em práticas rituais das mais diversas culturas e períodos históricos, na África, América, Austrália, Ásia e Polinésia. Ela se encontra na raiz de ritos de iniciação tanto da Grécia antiga (quando os nubentes trocavam as roupas entre si) quanto dos xamãs siberianos, indonésios e australianos (por uma sub-incisão no jovem púbere, para lhe "acrescentar" o órgão sexual feminino).
Essa idéia foi recuperada por C.G. Jung no seu conceito de "individuação", processo pelo qual a psique humana encontra sua conformação identitária na convergência dos contrários (cf. "Falo: A Sagrada Imagem do Masculino", de Eugene Monick). Neste livro ao mesmo tempo contemporâneo e arcaico, a totalidade sagrada verte-se como "transmutação" epifânica dos travestis, clicada no seu momento cruento, quando a matéria é violentada (vertendo plasmas, líquidos e pruridos) para ultrapassar as fronteiras e adentrar o território do sagrado. Assim como as estrelas resultantes de rupturas nos distantes quasares do universo, as fotos de Denizart mostram a transformação destes humanos da periferia em deuses ou, quem sabe, deusas fulgurantes. Seu bisturi fotográfico flagra o exato momento em que as larvas se tornam borboletas.
Como num livro das mutações, revela-se aqui o milagre do renascimento dos deuses pagãos na atualidade, fato já analisado pelo alemão Hubert Fichte, outro poeta e antropólogo singular. "Há mais deuses em Miami do que no céu", reportava Fichte em "Etnopoesia", a propósito dos deuses afro-cubanos que, mesmo sufocados no exílio americano, voltavam a florescer por entre as rachaduras do asfalto. Assim, os travestis brasileiros, tal como documentados por Denizart, revelam o retorno não apenas do reprimido mas também do sagrado em nossa sociedade. Eles são a sobrevivência do arcaico mito do andrógino irrompendo ali onde menos se suporia, numa das periferias mais violentas, poluídas e marginalizadas do Ocidente.
Muitos depoimentos evidenciam que, mesmo construindo-se mulher, o travesti não abandona sua masculinidade. Essa consciência é um dos dados mais perturbadores do livro, deixando explícito como o travesti cultiva a ambiguidade para atrair a clientela masculina. Nesse sentido, são particularmente contundentes os testemunhos asseverando a importância dada tanto pelos travestis quanto por seus clientes ao bom desempenho do seu pênis -objeto de trabalho e "caixinha de surpresas", segundo eles. Quanto mais avantajado e mais usado o falo, tanto mais alto o preço do contrato sexual. Quanto mais bela a "mulher" e mais visível o membro viril, mais fascínio. Sua consciência da masculinidade é repetidamente afirmada por eles: "Para assumir ser travesti, tem que ser muito homem".
Essa abordagem de Denizart torna inevitável uma aproximação entre a exacerbada feminilidade do travestismo e outro fenômeno contemporâneo que aposta nos mesmos efeitos, mas do lado oposto: os "bodys builders" (conhecidos como "barbies", no jargão homossexual). Ambos funcionam na linha da engenharia erótica apontada por Denizart. Mas, enquanto uns criam curvas tomando hormônio feminino e se enchendo de silicone, outros se esculpem por meio de anabolizantes masculinos e malhação nas academias.
Por sua ambiguidade, o travesti é, de longe, o mais incômodo e, quem sabe, subversivo. Se a "barbie" musculosa busca uma inserção social dentro dos padrões do masculino afirmado até a exacerbação, o travesti homossexual que adentra o território do feminino representa a afronta, porque destrói as fronteiras entre os gêneros. Ao contrário, a "barbie" aponta para um travestismo conformista, porque seu modelo de super-macho pretende se inserir no mais convencional espaço do masculino. Muito mais instigante, o travesti feminino carrega um signo de contradição que desconstrói o padrão masculino, por oposição. Ao instalar a mulher no coração do macho, ele o desmonta. E denuncia, em plena avenida, como o masculino foi construído -conforme atestam vários travestis no livro. Daí a atrevida pergunta colocada por um deles: "Quem é mais viril: um verdadeiro homem ou um travesti?".
Segundo H. Fichte, o antropólogo só pode atuar enquanto poeta, pois "a linguagem poética, ao contrário da linguagem tática da propaganda e da política, renova-se no instante em que se configura como enunciado, juntamente com o objeto desse mesmo enunciado". Ao trabalhar com a poesia dos extremos, Hugo Denizart "desvendou poeticamente" o objeto analisado, no sentido que Fichte gostava de dar à antropologia. Daí o choque encantatório que despertam tanto as fotos quanto os depoimentos reproduzidos nesta sua preciosa "Engenharia Erótica". Para quem quiser conferir, aí se encontra não só o retrato de um outro Brasil, mas também uma evidência eloquente do dramático processo identitário da pós-modernidade neste final de século.
João Silvério Trevisan é escritor, autor de "Seis Balas num Buraco Só - A Crise do Masculino" (Record), entre outros.
Folha de São Paulo
João Silvério Trevisan
Apesar da sua importância para estudos de gênero e abordagens sociológicas, os travestis prostitutos constituem um dos fenômenos menos analisados do Brasil moderno, tanto pelos preconceitos que despertam (inclusive na área universitária) quanto pelos paradoxos que envolvem. Mais do que explicado, esse fenômeno encontra-se agora revelado neste livro do psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart. Trata-se de uma pesquisa (em edição bilíngue português-inglês) contendo depoimentos e fotos coletadas durante três anos de trabalho entre os travestis do Rio de Janeiro.
Denizart mostra-nos os travestis tratados socialmente como dejetos e ao mesmo tempo como fascinantes objetos do desejo, que desafiam as regras em seu próprio corpo, tornado um campo de experimento e ambiguidades. Não por acaso, trata-se de jovens marginalizados das periferias mais miseráveis do país, tanto do interior quanto das grandes cidades, e o recurso à prostituição é a mais viável, senão única, alternativa de sobrevivência que lhes resta. Tidos como escória entre os próprios párias sociais, os travestis constituem provavelmente os confins das margens a que chegou a sociedade brasileira, até o ponto de tornarem-se invisíveis nas estatísticas oficiais. Por exemplo, nunca se pensou incluí-los nas estatísticas de desempregados que são, por sua condição de párias e semi-analfabetos. Pode-se ter uma medida extrema dessa sua invisibilidade oficial quando se pensa que até mesmo um drama brasileiro -as crianças abandonadas-, que rende manchetes indignadas na mídia nacional e internacional, esquece de mencionar as centenas de adolescentes travestis. Vários depoimentos do livro atestam que, quase sem exceção, eles sofrem violência dentro de casa, antes de serem expulsos para a rua, quando ainda muito jovens, entre 9 e 17 anos. Motivo: desviar-se logo cedo das normas sexuais e padrões de gênero socialmente consagrados.
Perfeita nas suas contundentes entrevistas, no magnífico ensaio fotográfico e no projeto gráfico, a obra de Denizart oferece a visão de um Brasil paradoxal em que se misturam inextricavelmente o arcaico e o moderno, o profano e o sagrado, a dor e a beleza, a sujeira e a transfiguração. Mas sua complexidade ultrapassa o mero libelo social. Enquanto as altas tecnologias de clonagem e engenharia genética propõem visões futuristas do mundo, Denizart flagra uma tecnologia do erótico no quotidiano atual, por meio dos travestis. Claro que sua existência dói e agride, sobretudo quando se pensa nos hormônios e quilos de silicone industrial que vão arredondar suas formas. Mas a metamorfose sofrida por esses homens-mulheres almeja certa redenção mediante uma beleza superlativa e artificial. Se a sociedade vende incessantemente a imagem da mulher "perfeita" nas fantasias do macho hegemônico, os travestis realizam um triunfante retorno do reprimido ao materializar tais fantasias, jogando-as ardilosamente de volta. Para entender como isso funciona, leiam-se os contundentes depoimentos sobre seus clientes (quase sempre homens casados) com seus estranhos desejos (às vezes, alugar apenas um sutiã do travesti, para desfilar por meia hora numa praça).
Entre as tantas cicatrizes pagãs deixadas no mundo cristão, pode-se considerar o travesti como uma das suas mais visíveis reminiscências. A abordagem de Denizart desvela-nos a atualização do arcaico sonho humano de destruir as barreiras entre os sexos, para chegar à alquimia sagrada do "unus mundus": nem só masculino, nem só feminino, mas a totalidade do andrógino. Já Mircea Eliade apontava a função sagrada da androginia em mitos greco-romanos e em práticas rituais das mais diversas culturas e períodos históricos, na África, América, Austrália, Ásia e Polinésia. Ela se encontra na raiz de ritos de iniciação tanto da Grécia antiga (quando os nubentes trocavam as roupas entre si) quanto dos xamãs siberianos, indonésios e australianos (por uma sub-incisão no jovem púbere, para lhe "acrescentar" o órgão sexual feminino).
Essa idéia foi recuperada por C.G. Jung no seu conceito de "individuação", processo pelo qual a psique humana encontra sua conformação identitária na convergência dos contrários (cf. "Falo: A Sagrada Imagem do Masculino", de Eugene Monick). Neste livro ao mesmo tempo contemporâneo e arcaico, a totalidade sagrada verte-se como "transmutação" epifânica dos travestis, clicada no seu momento cruento, quando a matéria é violentada (vertendo plasmas, líquidos e pruridos) para ultrapassar as fronteiras e adentrar o território do sagrado. Assim como as estrelas resultantes de rupturas nos distantes quasares do universo, as fotos de Denizart mostram a transformação destes humanos da periferia em deuses ou, quem sabe, deusas fulgurantes. Seu bisturi fotográfico flagra o exato momento em que as larvas se tornam borboletas.
Como num livro das mutações, revela-se aqui o milagre do renascimento dos deuses pagãos na atualidade, fato já analisado pelo alemão Hubert Fichte, outro poeta e antropólogo singular. "Há mais deuses em Miami do que no céu", reportava Fichte em "Etnopoesia", a propósito dos deuses afro-cubanos que, mesmo sufocados no exílio americano, voltavam a florescer por entre as rachaduras do asfalto. Assim, os travestis brasileiros, tal como documentados por Denizart, revelam o retorno não apenas do reprimido mas também do sagrado em nossa sociedade. Eles são a sobrevivência do arcaico mito do andrógino irrompendo ali onde menos se suporia, numa das periferias mais violentas, poluídas e marginalizadas do Ocidente.
Muitos depoimentos evidenciam que, mesmo construindo-se mulher, o travesti não abandona sua masculinidade. Essa consciência é um dos dados mais perturbadores do livro, deixando explícito como o travesti cultiva a ambiguidade para atrair a clientela masculina. Nesse sentido, são particularmente contundentes os testemunhos asseverando a importância dada tanto pelos travestis quanto por seus clientes ao bom desempenho do seu pênis -objeto de trabalho e "caixinha de surpresas", segundo eles. Quanto mais avantajado e mais usado o falo, tanto mais alto o preço do contrato sexual. Quanto mais bela a "mulher" e mais visível o membro viril, mais fascínio. Sua consciência da masculinidade é repetidamente afirmada por eles: "Para assumir ser travesti, tem que ser muito homem".
Essa abordagem de Denizart torna inevitável uma aproximação entre a exacerbada feminilidade do travestismo e outro fenômeno contemporâneo que aposta nos mesmos efeitos, mas do lado oposto: os "bodys builders" (conhecidos como "barbies", no jargão homossexual). Ambos funcionam na linha da engenharia erótica apontada por Denizart. Mas, enquanto uns criam curvas tomando hormônio feminino e se enchendo de silicone, outros se esculpem por meio de anabolizantes masculinos e malhação nas academias.
Por sua ambiguidade, o travesti é, de longe, o mais incômodo e, quem sabe, subversivo. Se a "barbie" musculosa busca uma inserção social dentro dos padrões do masculino afirmado até a exacerbação, o travesti homossexual que adentra o território do feminino representa a afronta, porque destrói as fronteiras entre os gêneros. Ao contrário, a "barbie" aponta para um travestismo conformista, porque seu modelo de super-macho pretende se inserir no mais convencional espaço do masculino. Muito mais instigante, o travesti feminino carrega um signo de contradição que desconstrói o padrão masculino, por oposição. Ao instalar a mulher no coração do macho, ele o desmonta. E denuncia, em plena avenida, como o masculino foi construído -conforme atestam vários travestis no livro. Daí a atrevida pergunta colocada por um deles: "Quem é mais viril: um verdadeiro homem ou um travesti?".
Segundo H. Fichte, o antropólogo só pode atuar enquanto poeta, pois "a linguagem poética, ao contrário da linguagem tática da propaganda e da política, renova-se no instante em que se configura como enunciado, juntamente com o objeto desse mesmo enunciado". Ao trabalhar com a poesia dos extremos, Hugo Denizart "desvendou poeticamente" o objeto analisado, no sentido que Fichte gostava de dar à antropologia. Daí o choque encantatório que despertam tanto as fotos quanto os depoimentos reproduzidos nesta sua preciosa "Engenharia Erótica". Para quem quiser conferir, aí se encontra não só o retrato de um outro Brasil, mas também uma evidência eloquente do dramático processo identitário da pós-modernidade neste final de século.
João Silvério Trevisan é escritor, autor de "Seis Balas num Buraco Só - A Crise do Masculino" (Record), entre outros.
Folha de São Paulo
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