Uma flor venenosa
Jean Phillippe Chimot
EUGÈNE DELACROIX
Quando o artigo foi publicado, Delacroix tinha atrás de si três brilhantes "Salões": a "Barca de Dante", os "Massacres de Scio" e a "Morte de Sardanapala" já o haviam colocado num gênero trágico sombrio e expressivo. Escandalizando a uns, entusiasmando a outros, ele está plenamente presente na batalha das imagens. Sua exigência intelectual, sua ambição, levam-no também a escrever. Na França, desde Le Brun, o artista tem interesse em se afirmar como intelectual inteiramente senhor de sua arte. Se o discurso governa tudo, é preciso apropriar-se dele.
Além do mais, Delacroix sente uma exigência interior que o leva a escrever para pensar a arte e sua arte. Publicou a maioria de seus artigos entre 1824 e 1847, durante a interrupção de seu "Diário", que não era destinado à publicação, mas que não tinha entretanto nada de íntimo. O projeto de Delacroix foi o de dominar constantemente a arte e a crítica de arte. Os artigos não correspondiam a uma atividade regular de cronista. Embora já reconhecido, Delacroix sempre precisou lutar para se impor. Escrever era também um meio. Mas ele mirou bem suas escolhas editoriais: Prud'hon, Gros, Puget, Charlet são para ele artistas subestimados.
Cada artigo pertence a um dispositivo de contra-ofensiva: Puget como barroco e francês, Prud'hon e Gros como contrapartida do neoclassicismo sob sua forma acadêmica, Charlet como tipo de artista não acadêmico, de veia popular. Todos os românticos consequentes tocaram esta mesma música. O artigo sobre Poussin aparece menos como uma aproximação estética do que como um elogio da independência de espírito e da exigência intelectual. Pode-se considerar que Delacroix integrou cada um destes retratos históricos no seu. Fazendo justiça a seus pares, constituiu seu próprio monumento. Ao mesmo tempo quis fazer ouvir o discurso de um artista, de um homem do ofício, com a idéia de uma fraternidade entre artistas, de liga histórica dos inventivos infelizes.
O texto consagrado a Michelangelo, aqui publicado, apareceu logo depois de um "Rafael", muito mais curto, e que tem o sabor de homenagem de rigor. Não que Delacroix tenha a fraqueza de negligenciar um artista tão evidentemente capaz. Rafael, para Delacroix, é a "harmonia encantadora". Isto quer dizer o tédio, ou uma evidência para ser contornada? Ao contrário, a carreira, as dificuldades enfrentadas por Michelangelo, sua maneira de reagir a elas, fazem dele o arquétipo dos gênios incompreendidos, revoltados contra a tolice e a baixeza, espreitados pela melancolia, seduzidos pela autodestruição. O artigo de Delacroix é bem mais discreto em relação à biografia do artista do que quanto à análise das obras. Quase tudo nele significa que o paradoxo governa a relação de Michelangelo com o seu tempo e mesmo com a sua obra.
Delacroix não inventa nada; retoma e retrata o material acumulado desde Vasari, e fornecido em parte voluntariamente pelo próprio Michelangelo. Bem entendido, a figura atípica engendrou um tipo que teria podido proliferar até ao clichê: artista em crise, artista de crise, crise da arte.
Se Delacroix fala pouco da obra arquitetônica e de modo muito desigual da escultura, ele se estende muito sobre a realização da Sistina e particularmente sobre o "Juízo Final". O que evita habilmente em 1830 (uma descrição), ele percebe em 1837, e se o faz, é porque Sigalon acaba de terminar uma cópia daquela obra, em tamanho natural, para a Escola de Belas Artes. Certas reservas que tinham surgido desaparecem: Delacroix teria enxergado melhor esta obra, que ele nunca se tinha dado ao trabalho de ir ver? Pode-se pensar isto e imaginar o imenso trabalho de abertura para o conhecimento, antes da fotografia, que, pela cópia, serviu as grandes obras do passado e alimentou até ao excesso os artistas contemporâneos.
Ter-se-á compreendido que esses textos, de um lado, não são senão um testemunho sobre a historiografia de Michelangelo, e de outro lado, uma versão da reescrita da história renascente, feita por um artista ávido de todas as confrontações com o passado que constituem em grande parte o século 19. Delacroix escreve um pouco do romance da história, repensando pateticamente o que se passou para se encorajar a viver o presente e a enfrentar o futuro. Esta mistura de um gênero considerado científico com um outro, suposto como artístico, serve de base a uma autobiografia dissimulada. Delacroix penetra, porque se escondeu, nesse desespero misantrópico complacente, nesse desprezo o mais frequentemente calculado, policiado em relação àqueles dos quais, como artista, ele depende. Esposa a quimera do artista completo, que, no fundo, só teria necessidade do mundo porque em seu ser e em sua obra encontraríamos o mundo inteiro, embora melhor, como sublime.
Esta publicação se intercala de um modo feliz entre a exposição Michelangelo do Masp e 1998, ano do bicentenário do nascimento de Delacroix -ano de celebrações e reexames. Os que conhecem as "Quatro Estações" do Masp podem considerar o peso da relação de Delacroix com a tradição. Podem também visar a importância sensível do gesto do pintor, com seus "élans", seus erros, sua aparente falta de preocupação com uma perfeição tornada problemática. A obra como imagem cifrada do artista foi uma obsessão no século 19 e mais ainda do 20. Delacroix nos engaja no respeito pela revolta, atitude constitutiva do que ainda se chama "cultura". É uma atitude da qual nos livramos dificilmente, tanto ela parece reunir os contrários, e portanto colocar um termo na história-aventura. O século 20 logo estará terminado! Ao mesmo tempo, o 19 já não será o vizinho que mais nos incomoda. Isto poderia nos dar mais força crítica e força no prazer para relançar o olhar sobre uma das flores mais venenosas que foram geradas pela velha Europa, no pior momento de sua dominação mundial: Eugène Delacroix.
Jean-Philippe Chimot é historiador da arte e professor da Universidade de Paris 1 (Sorbonne-Panthéon).
Folha de São Paulo
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