segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O CACTO E AS RUÍNAS


Recorte e minúcia

Flora Süssekind

Se o livro mais recente de Davi Arrigucci Jr., "O Cacto e as Ruínas", se apresenta como uma espécie de díptico em torno das relações entre história e natureza, resistência e destruição, modernismo brasileiro e vanguardas européias, poesia e outras artes, talvez seja possível considerar, ao lado dos ensaios sobre Manuel Bandeira e Murilo Mendes nele incluídos, um outro, sobre Cruz e Souza, publicado também em 1997, na revista "Poesia Sempre", e converter esse tríptico virtual em material privilegiado para se examinar o modo peculiar a Arrigucci de apreender as relações entre literatura e história e dar forma à experiência histórica no seu método ensaístico.
À primeira vista, a ênfase no histórico, no seu caso, pode parecer descabida. Sobretudo em se tratando de três análises cerradas de textos singulares -"O Cacto", de Manuel Bandeira; "As Ruínas de Selinunte", de Murilo Mendes; "Olhos do Sonho", de Cruz e Sousa-, sem maiores pretensões generalizadoras ou panorâmicas. No que parecem evidenciar, aliás, uma escolha de Arrigucci. Pois, ao longo de sua produção crítica, há bem poucos panoramas, tematizações de vastas extensões temporais ou exercícios de periodização. Mesmo "Jornal, Realismo, Alegoria: O Romance Brasileiro Recente", "Tradição e Inovação na Literatura Hispano-Americana", incluídos em "Achados e Perdidos" (1979), e "Fragmentos Sobre a Crônica", de "Enigma e Comentário" (1987), são na verdade panoramas involuntários. Os dois primeiros se apresentando sob a forma de diálogo com outros críticos; o texto sobre a crônica tendo resultado de uma entrevista de jornal, depois reescrita pelo crítico.
E, se não faltam visões gerais do trabalho de determinados autores, como os artigos sobre Pablo Neruda e Juan Rulfo, os dois ensaios sobre Murilo Rubião, os dois sobre Rubem Braga ou o texto sobre Bandeira incluído em "Os Pobres na Literatura Brasileira", é preferencialmente no sentido do exame de um texto em particular que Arrigucci orienta sua perspectiva crítica. O que já se evidencia no seu primeiro artigo sobre Cortázar, de 1966, a rigor um comentário sobre "Bestiário", que se transforma, porém, na breve análise de um único texto, "Casa Tomada". Num movimento semelhante ao que emprestaria, anos depois, ao estudo de "O Perseguidor", função capital na estruturação de todo "O Escorpião Encalacrado". Ou ao que o levaria a optar por uma forma de estruturação descontínua em "Humildade, Paixão e Morte", estudo da poesia de Bandeira pautado, à exceção do capítulo sobre "Itinerário de Pasárgada", na análise particular de apenas oito poemas.
Exercício de aproximação
Há, no que se refere a esse descarte do panorâmico, caso verdadeiramente exemplar -o do seu abandono de um estudo geral sobre a literatura brasileira moderna-, relatado por Arrigucci na revista "Magma", nº 4, em entrevista a Neide Luzia de Rezende e Airton Paschoa. "Houve um artigo famoso, que eu não consegui fazer, um panorama da literatura brasileira deste século para aquela "História da Civilização Brasileira', a parte que Boris Fausto dirigiu depois de Sérgio Buarque de Holanda", conta Arrigucci. "Ele me pediu que fizesse toda a literatura moderna brasileira até os dias de hoje. Ele pediu e eu prometi. Mas quem fez foi Guilhermino César, a meu pedido desesperado, depois de mil adiamentos. Boris Fausto até hoje ri de mim por causa disso, porque não consegui fazer". E se, no contexto da entrevista, o caso serve a Arrigucci como demonstração da existência de um tipo de "inspiração", de "um componente do desejo, um componente do imaginário", na escrita crítica, parece, de fato, exemplar de sua compreensão do histórico não como sinônimo de contínuo diacrônico, de chave interpretativa, de molde para uma perspectiva totalizadora, mas de dimensão que "se sedimenta na forma". No caso do seu método crítico propriamente dito, numa tensão entre recorte, particularização, de um lado, e minúcia, explicação detalhada, precisa, completa, sem deixar lacunas, de outro.
A opção por um parcelamento da análise, voltada para determinada secção ou detalhe particular de uma obra, mais do que descarte de uma visão de conjunto, parece apontar, no caso de Arrigucci, para a crítica como exercício de aproximação, para a consideração sobretudo dos elementos concretos do texto, do "fazer concreto" do escritor. Daí o aspecto descritivo que assumem com frequência os seus ensaios, aproximando-se por vezes de uma forma peculiar de "ekphrasis", de representação verbal bastante acurada, não exatamente de algum tipo de representação visual, mas de poemas dotados de configuração ou efeito plástico, que o crítico procura remontar "a partir do detalhe concreto" selecionado.
As ruínas
Não é de estranhar, portanto, a intensificação do diálogo de Arrigucci, nesse seu movimento de particularização analítica, com a crítica de arte, nítido desde as contribuições dos estudos de Meyer Schapiro e Charles Sterling sobre a natureza-morta para a sua reflexão sobre "Maçã", de Bandeira, ou desde a aproximação entre Nava e Calder que orientaria "Mobile da Memória", de 1987. E que, em "O Cacto e as Ruínas", se manifesta tanto nas referências explícitas a Lessing, Winckelmann, Herbert Read, Worringer ou Giulio Carlo Argan; quanto na atenção à figuração do cacto pela arte moderna brasileira e latino-americana, contrastada à de Bandeira no seu poema; quanto ainda no simples fato de ter sido extraído de uma consideração de Murilo Mendes sobre a pintora Vieira da Silva o dado central para a explicação de sua poética como baseada "numa arquitetura da memória".
E ainda no simples fato de ter sido extraído de uma consideração de Murilo Mendes sobre a pintora Vieira da Silva o dado central para a explicação de sua poética como baseada "numa arquitetura da memória"A operação de recorte não se limita, porém, na crítica de Arrigucci, ao seu método de abordagem do literário, mas estende-se desde a tematização reiterada das ruínas (de "Borges e Quevedo: Construção do Nada", ao estudo sobre Murilo Mendes em "O Cacto e as Ruínas") ao sujeito dividido, fragmentado, como no ensaio sobre "Boi Morto", de Bandeira; desde a interpretação das enumerações empregadas por Pedro Nava, da estrutura em mosaico de "Reflexos do Baile", de Antonio Callado, ou do emprego da montagem e da parataxe por Bandeira em "Alumbramento", à redução do corpo humano a um único segmento -os olhos- no poema de Cruz e Sousa analisado em 1997. E se, como observa Daniel Arasse no seu estudo, de 1992, sobre o detalhe na pintura, tanto seria possível privilegiar o seu aspecto icônico -enquanto parte de uma figura ou conjunto-, quanto o pictural -como marca daquele que o traçou-, talvez, observando a própria escrita crítica de Arrigucci, se possa compreender também esse "princípio de recorte" como meio tanto de inscrição oblíqua do histórico, de visualização das "articulações entre o geral e o particular", quanto de autoconscientização expressiva, tensão entre saber e arte, por parte do ensaísta.Detalhe pictualA própria opção, como forma de expressão, pelo ensaio, e não pelo panorama histórico, por exemplo, já funciona, nesse sentido, como "detalhe pictural", traço característico do crítico. Também uma espécie de detalhamento em abismo, de explicação do texto em todas as suas minúcias, característica das análises de Arrigucci, se parece funcionar em sentido inverso, como esforço de totalização, ao seu método metonímico, ao seu recorte do literário em "fragmentos significativos", aponta, na verdade, para um exercício de figuração da própria experiência de leitura, para uma espécie de multiplicação do detalhe, de deslocamento sucessivo da atenção a cada novo elemento analítico, de ênfase, via leitura, na materialidade da escrita. Minúcia que, enquanto rastro de uma experiência literária particular, já aponta, no método ensaístico de Davi Arrigucci, para uma das formas, nele reiteradas, de condensação do histórico no detalhe. A que se poderia acrescentar a bela apropriação da estrutura figural, trabalhada por Auerbach, no modo como Arrigucci relaciona, quase imperceptivelmente, os ensaios sobre Bandeira e Murilo Mendes ao comentário sobre "Olhos do Sonho" de Cruz e Sousa.Pois, se, a rigor, próximos apenas pela abordagem em detalhe, característica a Arrigucci, os três ensaios parecem ligados por uma tensão entre prefiguração ("Cruz e Souza prepara e antecipa os temas e a linguagem de vasto setor de nossa lírica moderna" e realização (a "poética do assombro" de Murilo Mendes; a apropriação e "superação" da "mescla parnasiano-simbolista" por parte de Bandeira à época de "O Cacto"), semelhante à que define a estrutura figural para Auerbach. Parecem sugerir, igualmente, em Arrigucci, em sintonia com o seu método metonímico de análise, uma figuração historiográfica fragmentária, pautada na contiguidade contrastante de dois momentos, dois recortes literários, que, nessa montagem ensaística, se redimensionam mutuamente e historicizam o gesto crítico que os relacionou.
Flora Süssekind é crítica literária e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa; escreveu, entre outros, "Papéis Colados" (Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Folha de São Paulo

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