Disciplina de amor
Sergio Miceli
No primeiro semestre de 1964, como calouro em ciências sociais da Escola de Sociologia e Política da PUC (Pontifícia Universidade Católica) carioca, fui me iniciando em antropologia guiado pelos ensinamentos de um professor competente, de trato suave, o folclorista e antropólogo Manuel Diégues Jr. Estranhei um pouco o jeitão enciclopédico do programa, abarcando um colosso de monografias sobre as sociedades mais díspares e, aos olhos de um neófito, muito dessemelhantes umas das outras. À medida que a matéria avançava, o aluno começava a desentranhar daqueles relatos etnográficos, bastante esquisitos, um projeto de conhecimento. Diégues valia-se daquele catatau de evidências para nos transmitir um saber de compaixão, atento quer às diferenças nos modos de expressão dos nativos, quer às instâncias que iam conformando uma inteligibilidade peculiar dos universais da experiência humana. Naquele curso, a antropologia cultural norte-americana, mistura de teorias difusionistas e análises do caráter nacional, dava surra na sociologia durkheimiana e na antropologia social inglesa.
O livro de Luís Rodolfo Vilhena examina com argúcia a ascensão e o declínio do movimento que abrigava essa nova categoria de "intelectuais de província", os folcloristas. Após um capítulo de abertura onde o autor dialoga com estudos recentes nos campos do pensamento social brasileiro e da história das ciências sociais, os capítulos 2 e 4 efetuam uma reconstrução caprichada dos caminhos de institucionalização do movimento folclórico, e os 3 e 5 exploram as polêmicas envolvendo folcloristas e sociólogos da escola paulista. Os tópicos desse sumário revelam o projeto de resgatar o lugar do folclore no conjunto das ciências sociais, salientando, por exemplo, sua proximidade com a antropologia culturalista então em voga. Todavia, seria preciso antes balizar o movimento folclórico que emergiu impulsionado pelo processo de redemocratização no pós-guerra, alcançando seu apogeu em pleno regime populista, e o seu canto de cisne às vésperas do golpe de 64.
Buscando dar continuidade a iniciativas vinculadas às lideranças dessa área de estudos (Mário de Andrade, Artur Ramos, Câmara Cascudo) ao longo dos anos 30 e 40, Renato Almeida -então chefe do Serviço de Informações do Ministério das Relações Exteriores-, aproveitou-se de compromissos assumidos pelo governo brasileiro na montagem da Unesco para criar sob sua direção, em 1946, o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (Ibecc). O mais ativo colegiado nesse âmbito foi justamente a Comissão Nacional de Folclore, reunindo a nata dos especialistas e entusiastas (Diégues Jr., Joaquim Ribeiro, Édison Carneiro, Cecília Meireles). Por intermédio das subcomissões estaduais, das semanas de folclore e, em especial, dos congressos, foi tomando vulto uma extensa rede de folcloristas que passaram a operar em escala nacional.
As metas de expansão do movimento acabaram desaguando na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, instituída pelo presidente Kubitschek, em 1958, reaproveitando em seu conselho técnico o "estado-maior" da Comissão Nacional de Folclore. A gestão marcante de Édison Carneiro, nomeado para a direção da entidade pelo governo Jânio e mantido por Goulart, foi interrompida pela Revolução de 64. A perda do apoio político e financeiro junto às autoridades determinou o declínio irreversível do movimento.
Embora Vilhena carregue nas tintas das causas responsáveis por seu desmoronamento institucional, despolitizando seu objeto de análise, a perda de terreno e o consequente esvaziamento do movimento têm muito mais a ver com a natureza das suas bandeiras em prol de uma cultura popular "incontaminada" num momento de expansão acelerada da indústria cultural. O exame das concepções teóricas em que se inspiravam os estudos de folclore poderá deslindar o significado dessa postura regressiva e conservadora. Para tanto, basta averiguar os focos de tensão entre os folcloristas do movimento e os cientistas sociais universitários. O segredo do debilitamento intelectual e do progressivo isolamento político do movimento folcórico está contido no âmago dessa discussão.
O conteúdo desses debates é esclarecido pelas definições contrastantes do objeto de estudos reivindicado por folcloristas e cientistas sociais e pelo teor substantivo do que uns e outros entendem pelo que seja cultura. Revidando àqueles cientistas sociais -Florestan Fernandes, Roger Bastide etc.-, que mediam a "cientificidade" de uma disciplina pela sua capacidade de definir um objeto específico e autônomo, a "Carta do Folclore Brasileiro", documento militante do primeiro congresso (1951), reformatou o "fato folclórico" numa paráfrase prolixa à fórmula de Durkheim, visando justamente integrá-lo às "ciências antropológicas e culturais".
Primeiro, o fato folclórico seria coletivo, anônimo e essencialmente popular, incluindo ocorrências "espirituais" (trovas, ditados, canções etc.) e cristalizações na cultura material; contrariando o nervo da concepção durkheimiana, um segundo registro o definia como "maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição oral e pela imitação e menos influenciado pelos círculos e instituições". Esse empenho em tornar o folclore palatável às cobranças dos cientistas sociais não conseguiu oferecer uma resposta satisfatória às restrições quanto ao modo de produção dos fatos culturais, quanto à jurisdição de autoria social ("essencialmente popular", embora não exclusivamente), quanto à fonte da legitimidade cultural. O povo, sujeito onisciente da cultura autêntica, fora entronizado e tornado imune às ingerências de escolas, igrejas, academias e, vejam só, à ação deletéria perpetrada pela indústria cultural nascente. Nem assim tais malabarismos de auto-enquadramento disciplinar lograram sustar reações indignadas, seja no interior do movimento por parte daqueles mais aferrados à ortodoxia do folclore como efervescência originária, seja entre alguns cientistas sociais que vislumbraram nessa dilatação do objeto uma ameaça de invasão de domínios.
Num momento de afirmação de modelos sociológicos nucleados nas conexões entre as formas de organização da sociedade e suas expressões nos domínios da atividade política e simbólica, o embaço analítico dos folcloristas prendia-se ao enfoque exacerbadamente culturalista dos seus objetos e não às instâncias por eles privilegiadas. Vilhena mostra muito bem a transição desde os trabalhos de Silvio Romero, voltados para a poesia popular, passando pela ênfase concedida por Mário de Andrade e Renato Almeida à música popular, até se chegar aos folguedos como eventos de síntese entre a poesia, a dança, a representação, a vestimenta, a culinária. Mas não residia nisso o núcleo da dissensão entre folcloristas e cientistas sociais.
Bastide, por exemplo, louvava os avanços conceituais já referidos e criticava a antropologia norte-americana, apreciada pelos folcloristas, por situar a sociedade "como uma parte da cultura", ao invés de "tomá-la com seu pólo (...) num conjunto dialético", instando-os a se valerem do método sociológico, "uma vez que o folclore não flutua no ar, só existe encarnado numa sociedade". Esse desacerto entre tradições teóricas e disciplinares estava lastreado em concepções distintas quanto à fecundidade explicativa da estrutura social. Em vez de se limitar a enxergar os folguedos como manifestações "mestiçadas", Bastide preferia interpretar o cateretê e a dança de Santa Cruz como formas de catequese dos jesuítas em relação aos indígenas de suas missões ou então definia os folguedos de influência africana como estratégias de dominação de senhores de escravos e do clero, empenhados em incentivar as manifestações musicais dos negros para "manter a rivalidade entre nações" ou propiciar momentos de lazer que os recuperassem do estafante regime de trabalho. Bastide demonstrava que as clivagens econômicas e raciais produzidas pela escravidão eram determinantes se comparadas às diferenças das manifestações folclóricas dos mesmo grupos. Em lugar de realçar os aspectos de congraçamento comunitário como tendiam a fazer esses últimos, Bastide procurou mostrar que o folclore não misturava nem as cores nem as classes numa sociedade fortemente estratificada como a nossa.
Argumentando à maneira de um tumultuado durkheimiano de estrita observância, se é que existe tal confissão, Bastide advertia para as bases sociais das manifestações folclóricas em vez de analisar apenas a forma desses eventos. O golpe de misericórdia na concepção de uma sociedade brasileira resultante da integração cultural sincrética de três troncos étnicos foi desferido justamente pela famosa pesquisa coordenada por Bastide e Florestan sobre relações raciais em São Paulo. Eis alguns dos fatores responsáveis pelas incompatibilidades entre o movimento folclórico e a sociologia paulista, impasse por meio do qual o folclore foi se tornando uma interpretação relegada do país, encontrando resistências no interior da universidade. As polêmicas contribuíram para consumar sua desqualificação por figuras destacadas da sociologia paulista, que vinham modelando os padrões de legitimidade acadêmica e científica.
Resta examinar as estratégias de que se valeram as lideranças do movimento com a finalidade de convertê-lo numa política cultural preservacionista das manifestações de "cultura popular". Nessa perspectiva, as escolas de samba, por exemplo, não mereceriam esse qualificativo. Tendo sua estrutura legalmente oficializada, registradas em cartório, dotadas de uma liderança burocrática, envolvidas em disputas por prêmios e prestígio e, pior, dispondo de compositores com nome próprio, essas escolas teriam perdido a atmosfera "comunitária" original dos batuques e rodas de samba da gente do povo, comprometendo o caráter prevalentemente oral e inacabado da criação popular. Como bem demonstra Vilhena, essa incapacidade de incorporar as transformações desencadeadas pela expansão da indústria cultural, resistindo a qualquer indício de reprodutibilidade técnica, tornou os folcloristas defensores de uma arte popular tradicional, cultuando a "aura" de um passado arcaico a que estariam associados o "espontaneísmo" e a "pureza" da criação coletiva e anônima de cultura. É por razões desse teor que os folcloristas brasileiros adotaram o mote cunhado pelo confrade francês Saintyves: "O folclore é uma disciplina de amor".
Esse universo doutrinário acabou orientando os folcloristas para uma política ferozmente preservacionista, podendo-se assinalar entre seus projetos um inquérito nacional sobre os folguedos, o levantamento de um "mapa folclórico", a criação de museus de artesanato, a realização de festivais, a estimulação do espírito associativo dos grupos de brincantes responsáveis pelos folguedos. Naquelas situações em que a atitude protecionista não remediava o comprometimento do espírito comunitário e associativo de que dependiam os folguedos, os folcloristas formularam propostas restauradoras.
Quem eram esses folcloristas? Por quais características se distinguiam dos cientistas sociais seus contemporâneos? Vilhena esboça uma resposta a essas indagações mediante uma análise do "ethos" interiorizado pelos participantes do movimento, cruzando elementos reiterados em suas falas aos sentidos detectados em suas práticas, apresentando-nos uma imagem dos folcloristas a partir daqueles traços em que eles mesmos se reconheciam. O elemento central de coesão derivava de um sentimento de missão, permeando o engajamento nesse campo de estudos e militância. A adesão ao movimento parecia repercutir as qualidades que seus integrantes atribuiam ao povo brasileiro. O clima de camaradagem, de hospitalidade, por ocasião de seus encontros, se nutria de sentimentos idênticos àqueles partilhados pelos "homens simples". Assim como a confraternização se apoiava numa liga de solidariedades semelhantes às dos folguedos, o modelo vivo do movimento folclórico consistia nas práticas caipiras de auxílio-mútuo dos lavradores e indígenas brasileiros. Os folcloristas viam a si mesmos numa chave idêntica à sua concepção da "cultura tradicional": lugar de encontro de raças, classes e culturas diferentes.
A parcela majoritária dos secretários das comissões estaduais de folclore eram advogados ou médicos de profissão, com incursões pela imprensa, docência e política, quase todos polígrafos com uma produção intelectual intermitente, dedicando-se à pesquisa folclórica de maneira bastante irregular. Na maioria dos estados, o serviço público era o principal mercado de trabalho para um contingente expressivo de folcloristas. As ligações estreitas de muitos deles com os institutos históricos e as academias de letras estaduais completavam as referências institucionais desses "intelectuais de província", a meio caminho entre o exercício de seus pendores literários e as exigências de rigor científico cobradas em seu trabalho etnográfico. Prensados entre modelos concorrentes e contrastantes do trabalho intelectual, num período de declínio do prestígio de que desfrutava o letrado em sintonia com as elites, não é de se estranhar que esses intelectuais amadores tenham buscado construir uma imagem da nação dando destaque à presença do regional.
Luís Rodolfo Vilhena, uma das melhores promessas da geração emergente de cientistas sociais, morreu num acidente de ônibus no ano passado. Redigi esta resenha no intuito de manter vivo o diálogo que mantínhamos nos encontros anuais dos cientistas sociais em Caxambu, registrando a tristeza de sua falta e a homenagem à sua presença como intelectual talentoso e inovador.
Sergio Miceli é professor de sociologia na USP e autor de "Imagens Negociadas - Retratos da Elite Brasileira (1920-40)" (Ed. Companhia das Letras).
Folha de São Paulo
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