O inv (f) erno sindical
Cicero Araujo
LITERATURA; NEOLIBERALISMO, TRABALHO E SINDICATOS - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO BRASIL E NA INGLATERRA /LIVRO
RICARDO ANTUNES
A maior resistência talvez que o leitor oferecerá para percorrer essa coletânea diz respeito à sua edição um tanto desleixada. É o que indicam os problemas de revisão encontrados na maioria dos ensaios ou os sérios obstáculos à fluência da leitura num dos textos traduzidos do inglês. Além disso, quase nada se fala sobre a origem dos autores, seus trabalhos passados ou pesquisas mais recentes.
Superada a resistência, o leitor pode então desfrutar do conteúdo do livro. Mas aqui também o desempenho é bastante irregular. Há certamente muita informação preciosa no livro (pelo menos para quem, como eu, é leigo no assunto), cuja finalidade é analisar os efeitos das recentes transformações da economia mundial no "mundo do trabalho", em particular no movimento sindical do Brasil e da Grã-Bretanha. Porém, faltou um norte às informações e ao conjunto das análises. Esse norte bem poderia ter sido uma perspectiva de comparação. Não digo uma comparação de números em geral -do desemprego, do crescimento do setor de serviços e assim por diante-, porque isso também faz parte das informações contempladas no livro. Refiro-me a uma comparação em torno dos temas específicos abordados e das pesquisas empíricas realizadas. Um esforço nesse sentido talvez deixasse as análises menos "surdas" umas para as outras, e o leitor menos perplexo.
Entre os dois primeiros textos que abordam as transformações industriais e os sindicatos britânicos (de Huw Beynon e John Mcilroy, ambos de Manchester), e os dois últimos, que tratam da mesma questão no Brasil (de José Ricardo Ramalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Iram Jácome Rodrigues, da USP), há um texto do organizador, com intenções aparentemente mediadoras. Contudo, exatamente por situar-se num registro diferente dos outros -trata-se mais de um texto militante do que uma análise fria das pesquisas empíricas-, acaba pouco dialogando com eles.
Restará ao leitor encontrar pontos fortes nos ensaios considerados em si mesmos. O primeiro, de Huw Beynon, é uma tentativa de retratar as mudanças tal como elas aparecem na consciência dos trabalhadores britânicos. É abrangente no que diz respeito aos diversos subtemas do debate, crítico, mas sem deixar de explorar os aspectos contraditórios das transformações em foco, recuperando tanto percepções negativas quanto positivas.
O ensaio de John Mcilroy procura historiar as peripécias do sindicalismo britânico desde a ascensão de Thatcher, em 1979. O "inverno" dos sindicatos, no entender do autor, é também um esforço quase desesperado de recuperar suas glórias passadas, mediante um novo relacionamento com as bases e com o Estado, via Partido Trabalhista. A julgar pelo texto, os resultados foram pífios até agora, não só porque as bases já não são as mesmas -as lideranças simplesmente desconhecem maneiras adequadas de coletivizar trabalhadores que tendem a não mais se encontrar em grandes plantas industriais, que foram "terceirizados", que trabalham em suas próprias casas ou que são majoritariamente mulheres-, mas porque o Partido Trabalhista, também num esforço desesperado para manter-se em pé, vem tentando renovar seu laços com os eleitores por meio de um maior distanciamento com os sindicatos.
É curioso que esse distanciamento tenha requerido uma espécie de autocrítica de seu antigo "trade-unionismo". O chamado Novo Trabalhismo, que depois chegará ao governo pelas mãos de Tony Blair, foi levado a fazer um diagnóstico do seguinte tipo: a fim de falar para o conjunto da sociedade (leia-se: os eleitores que deixaram de votar "Labour"), o partido precisava tornar-se uma organização com predominância de políticos profissionais, depurando-se da excessiva influência sindical. Para reencontrar seu poderio eleitoral, os neotrabalhistas descobriram uma estranha maneira de misturar leninismo e americanismo. Quem não ficou bem nessa história foi o antigo parceiro: atacado impiedosamente pelo Partido Conservador, um tanto rejeitado pelo Trabalhista e perdendo vasto terreno em seu próprio campo, o sindicalismo na Grã-Bretanha é obrigado a jogar na retranca.
Um quadro não muito diferente nos oferecem os autores brasileiros da coletânea. Embora os sindicatos daqui tenham vivido sua "primavera", exatamente quando os britânicos começavam seu "inverno", já se sentia no final dos anos 80 que os ventos sopravam numa direção desfavorável. São observadas dificuldades semelhantes aos dos colegas do Norte para atingir os trabalhadores "precários", os terceirizados e os dispersos em inúmeras pequenas plantas, além de similar crise de identidade dos "blue-collars" e sua perda de combatividade diante de uma indústria que desemprega na proporção em que se reestrutura.
Lamentando ou simplesmente constatando o fato, os autores são unânimes em registrar que hoje há um forte impulso das lideranças sindicais na direção de uma atuação mais pragmática em suas relações com empresários, Estado e as próprias bases, como forma de responder aos novos problemas. Trata-se, por ora, de pura e simples estratégia de sobrevivência: os sindicatos sentem que estão mais fracos e tratam de recuar para a linha de defesa. Se e como serão capazes de transformar essa fraqueza em força, reconhecem os dos autores, é uma questão que só o tempo pode responder.
Cicero Araujo é professor do departamento de ciência política da USP
Folha de são Paulo
Cicero Araujo
LITERATURA; NEOLIBERALISMO, TRABALHO E SINDICATOS - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO BRASIL E NA INGLATERRA /LIVRO
RICARDO ANTUNES
A maior resistência talvez que o leitor oferecerá para percorrer essa coletânea diz respeito à sua edição um tanto desleixada. É o que indicam os problemas de revisão encontrados na maioria dos ensaios ou os sérios obstáculos à fluência da leitura num dos textos traduzidos do inglês. Além disso, quase nada se fala sobre a origem dos autores, seus trabalhos passados ou pesquisas mais recentes.
Superada a resistência, o leitor pode então desfrutar do conteúdo do livro. Mas aqui também o desempenho é bastante irregular. Há certamente muita informação preciosa no livro (pelo menos para quem, como eu, é leigo no assunto), cuja finalidade é analisar os efeitos das recentes transformações da economia mundial no "mundo do trabalho", em particular no movimento sindical do Brasil e da Grã-Bretanha. Porém, faltou um norte às informações e ao conjunto das análises. Esse norte bem poderia ter sido uma perspectiva de comparação. Não digo uma comparação de números em geral -do desemprego, do crescimento do setor de serviços e assim por diante-, porque isso também faz parte das informações contempladas no livro. Refiro-me a uma comparação em torno dos temas específicos abordados e das pesquisas empíricas realizadas. Um esforço nesse sentido talvez deixasse as análises menos "surdas" umas para as outras, e o leitor menos perplexo.
Entre os dois primeiros textos que abordam as transformações industriais e os sindicatos britânicos (de Huw Beynon e John Mcilroy, ambos de Manchester), e os dois últimos, que tratam da mesma questão no Brasil (de José Ricardo Ramalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Iram Jácome Rodrigues, da USP), há um texto do organizador, com intenções aparentemente mediadoras. Contudo, exatamente por situar-se num registro diferente dos outros -trata-se mais de um texto militante do que uma análise fria das pesquisas empíricas-, acaba pouco dialogando com eles.
Restará ao leitor encontrar pontos fortes nos ensaios considerados em si mesmos. O primeiro, de Huw Beynon, é uma tentativa de retratar as mudanças tal como elas aparecem na consciência dos trabalhadores britânicos. É abrangente no que diz respeito aos diversos subtemas do debate, crítico, mas sem deixar de explorar os aspectos contraditórios das transformações em foco, recuperando tanto percepções negativas quanto positivas.
O ensaio de John Mcilroy procura historiar as peripécias do sindicalismo britânico desde a ascensão de Thatcher, em 1979. O "inverno" dos sindicatos, no entender do autor, é também um esforço quase desesperado de recuperar suas glórias passadas, mediante um novo relacionamento com as bases e com o Estado, via Partido Trabalhista. A julgar pelo texto, os resultados foram pífios até agora, não só porque as bases já não são as mesmas -as lideranças simplesmente desconhecem maneiras adequadas de coletivizar trabalhadores que tendem a não mais se encontrar em grandes plantas industriais, que foram "terceirizados", que trabalham em suas próprias casas ou que são majoritariamente mulheres-, mas porque o Partido Trabalhista, também num esforço desesperado para manter-se em pé, vem tentando renovar seu laços com os eleitores por meio de um maior distanciamento com os sindicatos.
É curioso que esse distanciamento tenha requerido uma espécie de autocrítica de seu antigo "trade-unionismo". O chamado Novo Trabalhismo, que depois chegará ao governo pelas mãos de Tony Blair, foi levado a fazer um diagnóstico do seguinte tipo: a fim de falar para o conjunto da sociedade (leia-se: os eleitores que deixaram de votar "Labour"), o partido precisava tornar-se uma organização com predominância de políticos profissionais, depurando-se da excessiva influência sindical. Para reencontrar seu poderio eleitoral, os neotrabalhistas descobriram uma estranha maneira de misturar leninismo e americanismo. Quem não ficou bem nessa história foi o antigo parceiro: atacado impiedosamente pelo Partido Conservador, um tanto rejeitado pelo Trabalhista e perdendo vasto terreno em seu próprio campo, o sindicalismo na Grã-Bretanha é obrigado a jogar na retranca.
Um quadro não muito diferente nos oferecem os autores brasileiros da coletânea. Embora os sindicatos daqui tenham vivido sua "primavera", exatamente quando os britânicos começavam seu "inverno", já se sentia no final dos anos 80 que os ventos sopravam numa direção desfavorável. São observadas dificuldades semelhantes aos dos colegas do Norte para atingir os trabalhadores "precários", os terceirizados e os dispersos em inúmeras pequenas plantas, além de similar crise de identidade dos "blue-collars" e sua perda de combatividade diante de uma indústria que desemprega na proporção em que se reestrutura.
Lamentando ou simplesmente constatando o fato, os autores são unânimes em registrar que hoje há um forte impulso das lideranças sindicais na direção de uma atuação mais pragmática em suas relações com empresários, Estado e as próprias bases, como forma de responder aos novos problemas. Trata-se, por ora, de pura e simples estratégia de sobrevivência: os sindicatos sentem que estão mais fracos e tratam de recuar para a linha de defesa. Se e como serão capazes de transformar essa fraqueza em força, reconhecem os dos autores, é uma questão que só o tempo pode responder.
Cicero Araujo é professor do departamento de ciência política da USP
Folha de são Paulo
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