Uma arte cosmopolita
Guilherme Simões Gomes Jr.
EMANOEL ARAÚJO
quando essa história de nação e nacionalismo começou a fazer sentido, nos descaminhos do projeto de elites luso-brasileiras interessadas em reestruturar o império a partir do centro-sul do Brasil, o barroco já vinha em ruínas por todo canto. Daí o apelo por missões neoclássicas, bafejadas por ardores românticos, para instruir os da terra em artes, letras e ofícios, compatíveis com o projeto civilizador em curso.
Depois da Independência, que pode ser interpretada como o resultado de conflitos entre portugueses de aquém e além mar, aqueles que, em arte, mais pelejaram pela construção da nacionalidade eram quase invariavelmente antibarrocos. Araújo Porto Alegre, aluno dileto de Debret e orientador do Victor Meirelles de edificantes batalhas, condenava as formas amaneiradas e associava o barroco ao bizarro, prognosticando um destino ático para a cultura da jovem nação; entre Michelangelo e David muito raro via outra coisa além de decadência. Mário de Andrade, rotineiramente tomado como pioneiro do resgate do barroco, costumava dizer poucas e boas sobre quase tudo que dissesse respeito a tal palavra e preferia classificar o Antonio Lisboa de renascente ou expressionista para evitar o epíteto barroco, altamente inquietante.
Barroco e nacionalismo, portanto, demoraram muito para fazer par sem receio. Mas aos poucos foi virando moda. Primeiro, entre artistas e pensadores da cultura, agora, quase oficial, já que vemos a Fiesp reinaugurar alguns salões de seu palácio, de retilíneo modernismo paulista, com a mostra "O Universo Mágico do Barroco Brasileiro" -e apresentar o evento como um antídoto contra o perigo, em época de globalização, de ver desfiguradas as nacionalidades. Acolhendo em seus salões tal exposição, os líderes do empresariado paulista pensam estar garantindo "a afirmação dos referenciais básicos da alma brasileira".
E não são apenas os anfitriões que opinam nesse sentido. A mostra é toda pautada por esse mesmo tom, a começar pelo texto de abertura que se lê na porta de entrada, pérola do sempre oportuno discurso sobre o caráter nacional, que agora se quer barroco: "Que cada um evoque no silêncio de seu coração o extraordinário sentido de brasilidade que emana da grandeza de nosso Barroco, deixando-se seduzir pelo prazer estético frente a união das muitas expressões de sua arte".
Equívoco ou mistificação, para os que apreciam arte e história pouco importa; cabe aproveitar a oportunidade, já que o que lá está reunido é inegavelmente representativo.
Colocar o barroco que vicejou na América portuguesa em museus, coleções ou mostras não é tarefa das mais simples, já que quase nunca suas expressões têm caráter autônomo. Feitas para funcionar de forma efêmera ou permanente na vida da cidade ou nas rotinas religiosas, as obras articulam-se em espaços determinados e estão lá para servir. Seu valor de uso é muito explícito, e só quando saem do lugar de origem e são jogadas em museus, exposições ou galerias é que entram no circuito do juízo estético desinteressado. Coincidentemente, os primeiros museus aparecem na época dita barroca, mas ganham a importância que têm hoje apenas com o fim das sociedades de Antigo Regime e a emergência das nações modernas.
E o problema do barroco, expatriado de seus recintos originais e confinado nestes novos ambientes, é que passa a ser visto por meio de categorias que lhe são estranhas. O problema é de difícil solução, já que, por um lado, perde-se a noção da arte como parte indissociável de um conjunto articulado, com implicações políticas e religiosas; por outro, perde-se a noção de que o critério de avaliação de um objeto particular depende das relações de afinidade e proporção com o espaço arquitetônico envolvente, com os outros objetos, e com as distâncias que os separam dos observadores. O engana-olhos do barroco deixa de produzir seus efeitos quando retirado de seu recinto.
Os organizadores da exposição buscaram soluções que revelam consciência do problema. Dividiram o retângulo reservado para a mostra em longos corredores laterais onde foram dispostas principalmente obras bidimensionais: gravuras, mapas, pinturas; no fundo, situaram peças de madeira talhada, belas colunas salomônicas, fragmentos de altar; do lado oposto, na janela que dá para a avenida Paulista, dois bronzes do Mestre Valentim. O espaço central foi cortado em dois segmentos separados por uma câmara escura onde reluz a prata, lugar que funciona como uma espécie de sacristia que abre para a nave central de um simulacro de igreja barroca. Slides projetam no alto tetos pintados de vários templos, a iluminação exclusiva nas esculturas torna sombrio o recinto e a música completa a ambiência pretendida barroca. Nada parecido com "as claras naves do Aleijadinho" que encantaram modernistas como Mário e Bandeira.
Não é descabido dizer que há na concepção da mostra o espírito da "tramoya", vocábulo que começa a ser empregado na Espanha do século 17, que fazia referência aos aparatos de engenharia cênica para a obtenção de efeitos surpreendentes no teatro, festas e cerimônias, estudados por Maravall em "A Cultura do Barroco". Mas, se o barroco é arte persuasiva voltada para a produção de efeitos emotivos e intelectuais na tentativa de restauro de um cosmos dilacerado, os truques da exposição têm um quê de diletantismo e apenas criam clima.
Quanto ao problema das distâncias e proporções, os limites do espaço da mostra e a disposição de alguns objetos podem levar a algumas interrogações. Sobre esse tema, uma das melhores páginas da interpretação de Lourival Gomes Machado é aquela em que enfrenta a controvérsia acerca dos conhecimentos de anatomia do Aleijadinho, no artigo "Anatomia e Crítica", publicado em "Barroco Mineiro" (Perspectiva). Contra os detratores do mestre, Lourival demonstra simplesmente que a anatomia dos corpos não era um dado absoluto, mas um elemento subordinado ao ponto de vista do observador. Daí o paradoxo de Antonio Lisboa ora esculpir corpos perfeitos, ora esculpir corpos falhos do ponto de vista anatômico, mas adequados quando vistos de determinado lugar e distância.
Caberia, portanto, algum tipo de esclarecimento acerca do protocolo de visão implícito em algumas obras expostas; por exemplo, nas grandes caras dos anjos em madeira do Mestre Valentim: causam impacto na proximidade em que foram colocadas. Ou então no caso dos olhos dos personagens de "A Flagelação de Cristo" de Ataíde: vistos de perto parecem gaiatos, e tão semelhantes nos algozes e na vítima, mas quando o observador consegue se afastar, ganham aspecto sinistro nos soldados e melancólico no Cristo. O mesmo ocorre com os evangelistas de Frei Jesuíno do Monte Carmelo, que mudam completamente de figura se postos à distância, perdendo o aspecto tosco da visão aproximada.
Afora isso, que oportunidade magnífica ver reunidos Frei Jesuíno, Mestre Valentim, Manuel da Costa Ataíde, Francisco das Chagas -dito o Cabra-, Raimundo da Costa e Silva -e a pequena obra-prima que é sua Nossa Senhora do Carmo-, Manuel da Cunha, Antonio Francisco Lisboa, bem como os dois Cristos (no tronco e na pedra fria) e o Jesus ressuscitado junto com Maria Madalena, atribuídos a Manuel Inácio da Costa, que bastam para justificar a visita.
As versões de São Miguel Arcanjo postas em série têm a leveza de uma delicada dança; por estarem na fronteira entre o longo corredor das pinturas e o centro da pretendida nave recebem mais luz, o que realça a sua graça. Já a preciosa Pietá, posta dentro da nave, em atmosfera mais sombria, secundada por cinco santos, perde um pouco de seu brilho em razão da sobrecarga do entorno; e São Cosme, São Benedito e São Damião, em belas versões, atrás da Pietá, recebem iluminação insuficiente, principalmente o primeiro.
Essa mostra merece todos os elogios por ter reunido as principais escolas, os mais notáveis artistas e uma gama muito expressiva de objetos: domésticos, litúrgicos, suntuários, além de escultura e pintura. Postos juntos, esses objetos dão a dimensão da densidade e da variedade da arte do século 18, em Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas e, principalmente, Bahia, que contribui com o maior número de peças. São a expressão de uma arte altamente cosmopolita, mas que tinha por preceito dialogar intensamente com o universo local, tendo alcançado feitos notáveis não apenas no Brasil, mas também por toda parte onde andaram a fé e os impérios.
O sucesso dessa exposição demonstra com clareza que a controvérsia do barroco que atravessou o século 19 e boa parte do 20 já se configura de uma forma bastante modificada: barroco agora é coisa admitida e traz junto de si uma notável fortuna crítica que merece ser revista e depurada. Dispensa, portanto, apelos às moradas da alma ou à brasilidade profunda. De fato, barroco e nação não fazem um bom par, mesmo porque barroco tem a ver com uma estrutura histórica que precisou ser demolida para surgirem as nações e a mística de seu caráter.
Guilherme S. Gomes Jr. é professor de antropologia da Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "Palavra Peregrina: o Barroco e o Pensamento Sobre Artes e Letras no Brasil" (Edusp).
Folha de São Paulo
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