terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A arquitetura como ação


A arquitetura como ação

Sophia Silva Telles
PAULO MENDES DA ROCHA /ARQUITETO/; JOSEP MARIA MONTANER /AUTOR/; MARIA ISABEL VILLAC /AUTOR/; MENDES DA ROCHA

este pequeno livro faz parte de uma coleção que publica regularmente arquitetos contemporâneos, distribuída também em inglês e francês. É obra de referência que traz, além de uma seleção econômica de projetos e memoriais, uma nota biográfica, a cronologia de obras e projetos, e ainda uma bibliografia. A introdução do volume ficou a cargo do arquiteto espanhol Josep Maria Montaner e da jovem arquiteta brasileira Maria Isabel Villac, organizadora do livro, com um ensaio genérico mais distante dos projetos.
Sem ainda nenhuma publicação brasileira sobre a sua obra, Paulo Mendes da Rocha vem merecendo uma particular atenção internacional. Embora o arquiteto já fosse, de longa data, uma referência das mais importantes para a produção no país, uma obra como o Museu Brasileiro de Escultura - Mube (1990) permitiu, sem dúvida, um reconhecimento quase imediato por parte da mídia e de arquitetos estrangeiros. Além disso, o arquiteto recebeu o grande prêmio da Bienal de Arquitetura do Chile em 1995 e vem sendo convidado com frequência para ir ao exterior.
Na apresentação, Montaner procura muito corretamente situar o arquiteto para um público estrangeiro, relembrando vários nomes da produção moderna no país e localizando as habituais influências corbuserianas e miesianas; faz ainda as não menos usuais referências a Niemeyer, Artigas e a algo do brutalismo inglês, além de algumas outras associações. Nessa sequência de influências e analogias, Montaner refere-se, muito de passagem, à "arquitetura minimal" e afirma uma sintonia do arquiteto com "os referentes mais minimalistas" do século 20, de Mies Van der Rohe a Tadao Ando. Como a palavra "minimal" nomeia precisamente uma produção das artes plásticas norte-americanas dos anos 60, com desdobramentos na Land-art até o conceitual, será interessante fazer notar, numa referência também de passagem, que Paulo Mendes da Rocha está muito próximo do contexto neoconcretista brasileiro em alguns surpreendentes procedimentos de projeto, seja no modo como se afasta da arquitetura como "objeto", seja na sua afinidade em pensar o projeto enquanto ação e não como produto.
De qualquer maneira, a "minimal" era mais do que simplesmente conhecida pelo neoconcretismo, para não falar da "arte povera" italiana, contemporânea e paralela à "minimal".
A divulgação desse pequeno livro no momento em que dois projetos foram recentemente inaugurados -a reforma da Pinacoteca do Estado e das galerias da Fiesp- certamente contribui para o entendimento do partido do arquiteto. Apesar disso, a paginação correta do livro talvez pudesse estar mais atenta ao trabalho. A disposição das fotos, pequenas plantas e detalhes ampliados, alguns desnecessários, são problemas recorrentes, aliás, em livros e revistas de arquitetura.
Sem o menor receio em enfrentar o valor histórico da Pinacoteca e o peso institucional da Federação das Indústrias, em ambos os casos o arquiteto se propõe a repensar os usos, não as funções. São coisas diferentes. Os novos projetos cumprem perfeitamente as funções a que se destinam. O que propõem são uma mudança nos modos de uso dos espaços. Na Pinacoteca, em vez de restaurar o antigo edifício, preocupando-se com acabamentos e soluções técnicas previsíveis, o projeto teve a coragem de bloquear a entrada principal, inverter o eixo de circulação e criar, por isso, espaços internos inusitados. As passarelas metálicas são decorrência dessa determinação espacial e tão pouco têm o caráter de "objetos", estão já tão incorporadas àquele espaço, que quase esquecemos de que nunca antes tinham estado ali. No moderno prédio da Fiesp, pesada construção em concreto armado, o arquiteto liberou todo o térreo, inclusive cortando lajes existentes, e utilizou vigas metálicas ancoradas nos pilares para construir, literalmente, um pequeno edifício dentro de outro edifício, uma caixa de vidro que vaza de ponta a ponta as galerias para o público da avenida Paulista. Não são reformas, exatamente, são uma transformação do lugar.
E quem ainda se lembraria do lote vazio na esquina de uma grande avenida e se terá dado conta, antes do Mube, de que o terreno tinha um desnível de cerca de quatro metros? É difícil aceitar a descrição de Montaner, ao dizer que "o objeto arquitetônico outorga um novo valor ao lugar". Aquilo era um terreno vazio, lugar nenhum. Construiu-se um lugar exatamente porque o projeto fez de todo o terreno o museu.
Montaner afirma que Paulo Mendes compartilha com Niemeyer a concepção do objeto autônomo enquanto escultura. Se em Niemeyer pode-se discutir tal imagem, em Paulo Mendes é muito difícil generalizar. Muito mais recorrente no arquiteto é o procedimento de tratar todo o espaço, e não o de implantar um objeto dentro do lote, como demonstraria em ponto menor a casa Milan, por exemplo, não publicada no livro. Mas os projetos selecionados, ainda assim, são exemplares dos usos não previstos do espaço, que é a marca de seu partido.
Um ginásio de esporte, em geral um volume fechado que deve ser circundado, no Clube Paulistano em São Paulo, transforma-se numa praça completamente aberta, com sua arquibancada abaixo do nível da rua e uma cobertura plana suspensa por seis pilares gigantes. Em 1957 era um espanto não apenas a audácia técnica da estrutura, como a liberdade em contrariar a tipologia habitual da construção, oferecendo-a à circulação da cidade. Um partido próximo do Pavilhão do Brasil em Osaka - 1970, uma cobertura autoportante e vazada de luz, apoiada agora em simples ondulações do terreno, com apenas um pilar de marcação. Um céu brasileiro sobre o chão japonês, metáfora de uma paisagem solidária entre países. As descrições dos projetos, feitas pelo próprio arquiteto no livro, em geral indicam o modo como repensa sempre as situações e as reformula, às vezes radicalmente, em vez de desenhar soluções para problemas dados.
No projeto da loja Forma, em São Paulo, numa avenida de trânsito rápido como a Cidade Jardim, a fachada é a diagramação de uma página de design em dimensão de outdoor. Solução gráfica somente permitida pela habilidade técnica em dissolver o volume e suspender a vitrine, acima dos carros, desocupando todo o lote para um estacionamento. Paginação perfeita para móveis e automóveis, homenagem moderna ao livro "Aprendendo com Las Vegas", do arquiteto Robert Venturi, em que não falta o humor sutil de uma escada retrátil como entrada da loja.
Há uma série de outros exemplos desses "modos de uso" inesperados de uma função. Na residência que pedia um anexo para a biblioteca, o arquiteto inverteu o programa e fez do anexo o corpo principal da casa, recuando as funções domésticas para o fundo do lote. A biblioteca é um volume desconstruído, se quiser, pela estranha inflexão da parede cega da fachada que, suspensa entre duas empenas ( paredes estruturais) e em leve rotação, desestabiliza o "objeto". As empenas são pintadas de amarelo claro e o plano cego, de um rosa luminoso. Muito neoconcreto, nada minimal.
Uma das mais comuns "desleituras" corbuserianas de Paulo Mendes é sua negação do volume, como se veria de modo mais evidente em outras casas, infelizmente não publicadas no livro. Nas residências gêmeas ( Butantã, São Paulo, 1962) em concreto armado e aparente, pensadas como modelo para a pré-fabricação, quatro pilotis sustentam dois planos -piso e cobertura, discretamente deslocados um do outro por frestas de luz. Superfícies sombrias com um perímetro iluminado. Lygia Clark teria entendido.
Os projetos de Paulo Mendes da Rocha escapam da figuração porque são proposições programáticas. São ações, não formas. Desenhos sem imagem que permitem, por isso, todas as imagens.
Sophia Silva Telles é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Folha de São Paulo

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