FLAMARION MAUÉS
Radicalidades
Dainis Karepovs
Estão reunidos nesta coletânea entrevistas e perfis publicados nos últimos dez anos na seção "Memória" da revista "Teoria & Debate", editada pelo Partido dos Trabalhadores. Sua organização em livro propicia aos leitores um painel da história da esquerda brasileira, sugerindo um rico caudal de questões sobre o passado, o presente e o futuro de nosso país. Com uma vantagem: o formato de entrevista torna a leitura agradável, mesmo quando os temas são complexos.
Trata-se de depoimentos de personalidades de primeira grandeza da história brasileira deste século que têm um ponto em comum: a convicção socialista. Não importa se o entrevistado é católico, maoísta, social-democrata, stalinista, trotskista etc., ou mesmo se não pertence a estes mundos, como é o caso do jurista Goffredo Telles Júnior e do fazendeiro e agrônomo José Gomes da Silva. Todos tiveram e ainda têm, usando uma definição dada por D. Pedro Casaldáliga em sua entrevista, "uma inclinação para a radicalidade, para as causas maiores da vida", que os impulsionou a lutar por uma sociedade democrática, humana e justa.
Junto com o relato de trajetórias, pessoais ou de organizações políticas, o livro fornece ricos retratos dos meios sociais em que os entrevistados se formaram: alguns em berços esplêndidos, como Vladimir Palmeira e Goffredo Telles Júnior; outros, muito pobres, como Florestan Fernandes e a camponesa Elizabeth Teixeira; alguns marcados por culturas particulares, como a judaica, de Clara Charf e Jacob Gorender, ou por setores específicos, como o da intelectualidade universitária, representada por Antonio Candido e Florestan Fernandes.
Todos os depoimentos são, sem dúvida, relevantes. Alguns, como os de Fulvio Abramo, Armando Mazzo, Madre Cristina, Florestan Fernandes, Betinho, Paulo Freire, Isaac Akcelrud e José Gomes da Silva, que já não estão conosco, tornam-se mais preciosos ainda. Outros, embora posteriormente tenham publicado memórias, como Apolônio de Carvalho, Armando Mazzo, Elizabeth Teixeira e Lélia Abramo (1), não se tornaram redundantes, pois em "Rememória" abordam outras questões. Isso vale especialmente para Apolônio, cuja entrevista sobre sua trajetória do período pós-1945 acaba sendo mais substanciosa do que a versão oferecida em sua autobiografia.
Narram-se ali tanto ações coletivas, personificadas nos entrevistados, quanto epopéias pessoais. No primeiro caso, entre as várias, cito a de Fulvio Abramo, personagem-chave no enfrentamento armado entre a esquerda, reunida em frente única, e a direita integralista na Praça da Sé, em 7 de outubro de 1934. Sem a perseverança e o empenho pessoal de Abramo, na liderança da Frente Única Antifascista, não haveria a união das esquerdas e nem tampouco seria abortada a tática fascista, internacionalmente disseminada, de "conquista das ruas", o que acabou obrigando os integralistas a buscar o caminho das conspirações com o ditador Vargas. Já no campo pessoal, seguramente se destaca a luta de Clara Charf, pouco depois vitoriosa, pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado no assassinato de seu companheiro Carlos Marighella.
Sua disposição em prosseguir, desta vez na luta pelo "resgate, nos livros escolares, da verdadeira história dos homens e mulheres que lutaram contra a ditadura militar", coloca uma questão que perpassa de certa maneira todos os depoimentos. Trata-se da ausência -ou, então, das "versões" que se oferecem- de muitos dos episódios narrados em "Rememória", em várias edições das chamadas "histórias" do Brasil oferecidas aos jovens na sala de aula ou na mídia (em forma de fascículos encartados). Não é compreensível, por exemplo, que versões comprovadamente desmentidas sobre o suposto assassinato de oficiais legalistas adormecidos por membros da Aliança Nacional Libertadora, no levante comunista de 1935, ainda sobrevivam nesses "artefatos culturais".
Trata-se, enfim, apenas de considerar a esquerda como um dos componentes vivos e atuantes da história brasileira, dando-lhe o seu devido lugar, com suas boas e más contribuições, sem hiperdimensioná-las, nem subdimensioná-las. Nesse sentido, "Rememória" fornece um painel vivo da história brasileira do século 20 que permite ao leitor, pelo menos, indagar-se: como é mesmo esta história?
Nota
1. Lélia Abramo, "Vida e Arte", São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo/Editora Unicamp, 1997; Apolônio de Carvalho, "Vale a Pena Sonhar", Rio de Janeiro, Rocco, 1997; Armando Mazzo, "Memórias de um Militante Político e Sindical no ABC", São Bernardo do Campo, Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes, 1991; Lourdes Bandeira et alii (orgs.), "Eu Marcharei na Tua Luta - A Vida de Elizabeth Teixeira", João Pessoa, Editora Universitária/Manufactura, 1997.
Dainis Karepovs é doutorando em história na USP.
Folha de São Paulo
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