As raízes do Gulag
Paulo Sérgio Pinheiro
POLÍTICA; COMUNISMO; LE LIVRE NOIR DU COMMUNISME - CRIMES, TERREUR, RÉPRESSION /LIVRO
depois da queda do Muro de Berlim e do desmoronamento do regime soviético nos anos 90, muitos estudos tentaram confrontar a realidade soviética e uma "ilusão comunista". Essa perspectiva reduz 70 anos da história de uma grande experiência humana a uma sombria conspiração de espiões e policiais, a história extraída de seu contexto real . Os autores do "Livro Negro" foram buscar sua fonte nos arquivos russos hoje abertos e indispensáveis a todos os historiadores que queiram lidar com a "ilusão" da história soviética. Mas o acesso às fontes primárias nem sempre pode ser garantia de precisão e complexidade.
O "Livro Negro", mesmo antes de ser publicado, já era motivo de querela entre seus autores, e entre estes e seu editor. De saída, o título já constituía um esforço demais chamativo para um conjunto de trabalhos que se pretendia consistente, valendo-se de fontes primárias. Hoje, na Europa e nos EUA, toda a historiografia da União Soviética e da Internacional Comunista (Comintern), a grande central coordenadora e organizadora dos partidos comunistas em todo o mundo, está sendo revista pelo acesso aos arquivos soviéticos. Entre os temas mais pesquisados estão a repressão, a violência, o terror, dissimulados pelo Estado soviético.
Os autores do "Livro Negro" pretendiam acertar contas com aquele tema tabu da violência, numa perspectiva nova, independente da antiga historiografia anti-soviética, que teve o mérito de chamar a atenção para fatos que uma historiografia mais à esquerda sempre tentou dissimular ou ocultar. A abordagem em si mesma já é razoavelmente problemática ao tentar isolar um tema -a violência e a repressão-, muitas vezes fora do contexto histórico. Pretensão maior era não limitar a comparação aos períodos históricos no interior da evolução da União Soviética e ampliá-la para a China comunista, aos países asiáticos, chegando aos antípodas na África e na América Latina.
O resultado, para dizer o mínimo, é desequilibrado. Felizmente, os dois mais longos ensaios do livro, o de Nicolas Werth, sobre a União Soviética, e o de Jean Louis Margolin, sobre a China, o Vietnã, o Laos e o Camboja, destoam pela qualidade e rigor em relação ao conjunto. Werth é bem-sucedido porque, desde o começo, enfrenta os paradoxos e mal-entendidos com a Revolução de Outubro. A revolução foi ao mesmo tempo uma tomada do poder político e uma revolução social. Num determinado momento, golpe de estado político e revolução social -escoadouro da decomposição das Forças Armadas e da mobilização autônoma, desorganizada, dos camponeses e dos operários, antes de divergirem em direção a decênios de ditadura, até a sua decomposição final. Em nenhum momento prevaleceu no poder a revolução popular espontânea, que começou na rua, e que foi acabar nos palácios com a deposição do czar e os primeiros governos socialistas. No curso das diversas revoluções de 19l7, o papel dos soldados-camponeses, uma massa de dez milhões de homens mobilizados, vai ser decisivo.
Pouco adianta repetir que se tratou de um golpe de Estado com pouquíssima participação de operários e camponeses, como o fez desde o começo Curzio Malaparte, entre muitos. Como desejava mesmo Lênin, o número de participantes diretos na grande revolução socialista de outubro foi quase limitado aos "técnicos" de que falava Trotsky, artífice da tomada do poder: alguns poucos milhares de soldados aquartelados, os marinheiros do Kronstadt, os guardas vermelhos do comitê militar revolucionário de Petrogrado (CMRP) e algumas centenas de militantes bolcheviques dos comitês de usina. Poucas vítimas, pouco sangue derramado, o que mostrava como a preparação do golpe tinha sido cuidadosa.
O que vai ocorrer logo é um esgarçamento, como bem mostra Werth, entre revoluções sociais e nacionais multiformes e uma prática política específica que excluía toda divisão do poder, que deveria rapidamente levar a um afrontamento, gerador de violência e terror, entre o novo poder e largas frações da sociedade. As vagas de violência e terror serão sucessivos acertos de contas com operários, camponeses, quadros do aparelho do Estado, intelectuais, até a liquidação dos próprios líderes revolucionários. No final dos anos 20, a coletivização forçada no campo foi na realidade "uma verdadeira guerra declarada contra toda uma nação de pequenos exploradores". Transformados em "colonos do trabalho", eles estarão reintegrados numa sociedade marcada por uma "penalização geral das relações sociais", na qual ninguém sabia quais seriam os próximos excluídos.
Na Rússia de 1917, como lembra Werth, a violência estava presente em toda parte. Os acontecimentos apenas serviram para fazer convergir as diversas formas de violência, presentes de modo latente: uma violência urbana "reativa" à brutalidade das relações capitalistas no meio industrial; uma violência camponesa "tradicional" e a violência "moderna" da Primeira Guerra Mundial, portadora de uma extraordinária regressão e uma formidável brutalização das relações humanas. A mistura das três formas de violência vai ter um efeito devastador na conjuntura da Rússia em revolução.
O terror vermelho posto em prática depois de 1918 foi diretamente coordenado pelos dirigentes e por Lênin: os arquivos disponíveis são absolutamente implacáveis para confirmar essas responsabilidades. Era a expressão do ódio contra os "inimigos de classe" -categoria que acabava de ser criada-, que poderiam ser os camponeses que se recusavam a colaborar ou logo depois os operários que se insurgiam.
Por ocasião do julgamento dos socialistas-revolucionários em 1922 , Lênin, ao comentar o novo projeto de Código Penal, afirma numa carta: "O tribunal não deve suprimir o terror, dizer isso seria enganar-se ou mentir; mas fundamentá-lo, legalizar seus princípios, claramente, sem enganar ou disfarçar a verdade". A "legalização da violência política" está portanto posta desde 1922. Quando o novo Código Penal é afinal publicado em 1924, a definição do crime contra-revolucionário está sensivelmente alargada, regulamentando a noção de "pessoa socialmente perigosa". Depois de 1929, graças à repressão autorizada por esses tipos de crime, o laboratório experimental do trabalho forçado, iniciado improvisadamente durante a guerra civil, servirá de matriz para um imensa constelação de campos em escala continental : o arquipélago do Gulag.
Se o artigo de Werth, com grande sobriedade, revê à luz dos novos documentos a evolução das formas de repressão no comunismo soviético, o artigo sobre a Internacional Comunista, escrito pelos organizadores do livro, S. Courtois e J.-L. Panné, reduz a ação do Comintern às vagas de repressão contra os partidos comunistas. Não há como negar que a progressiva "penalização geral das relações sociais" na sociedade soviética vai contribuir para uma criminalização das oposições, reais ou imaginárias, no interior de vários partidos comunistas. Courtois cita um texto de Trotsky, pouco depois do atentado que sofrera em 24 de maio de 1940, indicando que a polícia política e o Comintern estavam indissoluvelmente ligados, a primeira dominando o segundo. Havia inegavelmente uma pressão extremamente forte dos serviços policiais soviéticos sobre os militantes do Comintern, estando sempre presentes a desconfiança e o medo. Os grandes expurgos stalinistas de 1937-38 dizimaram lideranças inteiras de partidos comunistas, como os poloneses.
Entre as melhores contribuições está o trabalho de J.-L. Margolin, que tenta explicar o conjunto das mortes violentas atribuídas ao regime maoísta evocando os seis a dez milhões de vítimas diretas, além das dezenas de milhões de contra-revolucionários que passaram um longo período de suas vidas no sistema penitenciário e onde talvez 20 milhões ali morreram. Da mesma forma que Werth, essa revisão, apesar da falta de acesso aos arquivos, é bem-sucedida porque recupera uma tradição de violência na sociedade chinesa.
O modelo do comunismo chinês no triunfo da revolução de 1949 já está claramente delineado: concentração da dinâmica revolucionária sobre a construção do Estado e concentração desse Estado, guerreiro por natureza, sobre a construção de um exército capaz de enfrentar o Estado e o Exército presidido pelos "fantoches" inimigos, no caso Chiang Kai-shek. Como aponta Margolin, estamos bem longe do comunismo soviético ou do marxismo: é por intermédio do bolchevismo, reduzido a uma tomada de poder e de reforço de um Estado nacional-revolucionário, que os revolucionários chegaram ao comunismo. É desde cedo o "socialismo de caserna" (tribunais de exceção, pelotões de execução) que é instalado. O Grande Terror stalinista dos anos 1936-38 foi precedido por aqueles dos sovietes chineses entre 1927 e 1931. Mas qualquer comparação ou aproximação entre as duas experiências deve levar em conta que a revolução chinesa de 1949 se propagou dos campos para as cidades: os expurgos urbanos foram precedidos pelo movimento da reforma agrária.
Mao Tsé-tung, em novembro de 1950, sanciona os massacres em curso, quando as tropas chinesas entram no conflito coreano: "Em nenhuma dúvida nós devemos matar todos os elementos reacionários que merecem ser mortos". A análise da revolução cultural como um "totalitarismo anárquico", entre 1966 e 1976, mostra que, no quadro de uma rebelião repressiva, a dimensão terrorista era inseparável do comunismo chinês.
As análises dedicadas aos outros continentes, como a África e a América Latina, fazem emergir a violência dos socialismos e comunismos ou das revoluções a partir de um contexto de pacificação, de não-violência, que nunca existiu em nenhuma sociedade. A patética avaliação dos socialismos latino-americanos é, sem dúvida, a pior parte do livro.
A América Latina, durante toda a existência da Internacional Comunista, desde 1919 até a Segunda Guerra, teve um papel acessório, sendo o continente associado às sociedades "semicoloniais". A informação era precária e limitada. Essa sina se reflete em "A América Latina à Prova dos Comunismos", que parece mais um enredo de escola de samba carioca, colocando a repressão latino-americana de inspiração socialista e comunista num mesmo bloco, saltando contextos e periodizações. As vítimas são estimadas em 150 mil, um amálgama de contagens delirantes. O resultado é que cada sociedade referida perde a sua especificidade, sem falar da falta de referência ao contexto internacional.
Enfim, o que resta depois de todo esse périplo? Apesar de vários autores como Nicolas Werth terem criticado no jornal "Le Monde" a apropriação politizada do "Livro Negro", traduzida num intenso cruzar na mídia, a responsabilidade maior está no prefácio sensacionalista, feito por Stephane Courtois. Talvez uma excelente operação mediática, mas operação simplificadora das grandes contribuições do livro. Não há mais nenhuma dúvida sobre a legitimidade de estabelecer algumas relações entre os campos de concentração nazista e os horrores dos gulags de diversa procedência comunistas. Mas, como lembrava Moshe Lewin, num artigo em meio à tormenta suscitada pelo livro, quaisquer que tenham sido os traços similares num determinado período entre o fascismo e o regime soviético (especialmente sob o stalinismo), jamais se deve mascarar o fato que suas trajetórias diferentes puderam oferecer futuros diferentes, o fim do comunismo soviético está aí para provar. Uma lição pode ser retirada de "O Livro Negro": a reconstituição da história da violência jamais pode ser retirada das configurações complexas onde a repressão ocorre.
Paulo Sérgio Pinheiro é professor de ciência política na USP e autor de 'Estratégias da Ilusão - A Revolução Mundial e o Brasil (1922-1935) (Companhia das Letras).
Folha de São Paulo
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