terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O MANIFESTO COMUNISTA 150 ANOS DEPOIS


Interpretações do "Manifesto"
09/Mai/98
Celso Frederico
POLÍTICA; MANIFESTO COMUNISTA /LIVRO/; O MANIFESTO COMUNISTA 150 ANOS DEPOIS /LIVRO/; ENSAIOS SOBRE O MANIFESTO - A ATUALIDADE DE UM TEXTO DE 150 ANOS /LIVRO

os 150 anos do "Manifesto do Partido Comunista" estão merecendo uma surpreendente comemoração. Publicações, seminários acadêmicos, conferências, números especiais em revistas e suplementos culturais na imprensa diária etc. As três antologias inserem-se nesse movimento comemorativo, nostálgico e litúrgico.
O livro organizado por Coggiola reproduz o texto do "Manifesto", os diversos prefácios de Marx e Engels e uma seleção de textos clássicos dedicados à obra. Não chega a ser tão completo quanto a antologia organizada por G.M. Bravo para a Ed. Riuniti em 1978 ("Il Manifesto del Partito Comunista e i Suoi Interpreti"): faltam os ensaios de Plekhánov, Kautsky, Belloni, Rosa Luxemburgo, Bela Kun, Michels e Togliatti. Foram substituídos por Trotski, Lucien Martin e James Petras.
A antologia organizada por Daniel Aarão Reis Filho também reproduz o texto do "Manifesto" (infelizmente sem os diversos prefácios) e ensaios críticos sobre o destino do panfleto (Marcelo Ridenti, por exemplo, analisa a leitura pós-moderna de Marshall Bermann sobre o "Manifesto", sua polêmica com Perry Anderson e as repercussões do debate no Brasil). O terceiro volume, organizado por Caio Navarro Toledo, agrupa ensaios teóricos que gravitam em torno do legado marxiano.
O objeto de tanta discussão é um texto curto, elaborado por dois jovens (Marx com 29 anos e Engels com 28), para atender uma encomenda da Liga dos Comunistas, uma organização clandestina e minúscula (menos de mil participantes). Escrito na iminência do vendaval revolucionário de 1848, o texto foi redigido por Marx a partir de um esboço preparado por Engels. O tom solene e provocativo do texto, com suas frases incendiárias e desafiadoras, faz lembrar o "Prefácio" à "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", um dos mais belos escritos de Marx. Só que aqui o autor está confiante no processo revolucionário que, pouco depois, de fato se realizou, embora com desdobramentos contrários às suas expectativas.
0 texto inaugura o materialismo histórico, método anunciado na "Ideologia Alemã" e voltado agora à caracterização da história social.
Cento e cinquenta anos depois, o que se pode falar de um texto de ocasião que errou na caracterização do processo revolucionário em curso (causa imediata de sua existência) e que, por outro lado, avançava em considerações sobre a estrutura da sociedade capitalista feitas antes de o autor mergulhar a fundo nos estudos de economia política?
Labriola, escrevendo em 1895, já constatava o envelhecimento do final do segundo capítulo, aquele em que Marx e Engels propõem medidas para a eventualidade de a classe operária chegar ao poder, bem como as referências, feitas no terceiro capítulo, às diversas correntes de socialismo que não exerciam mais nenhuma influência sobre o movimento operário.
Mesmo no primeiro capítulo, o "núcleo duro" do panfleto, algumas considerações foram desmentidas pelo processo histórico.
A tese da "pauperização absoluta" da classe operária -esperança da estratégia política revolucionária- guarda mais relações com a teoria feurbachiana da alienação do que com a realidade econômica do capitalismo. Mais tarde, os estudos de economia levarão Marx a falar em "pauperização relativa". De todos os autores, somente Trotski insiste em defender, em 1937, uma tese deixada para trás pelo próprio Marx.
Sob essa frágil argumentação econômica, Marx e Engels construíram uma visão esquemática da luta de classes, centrada unicamente na expectativa da crescente polarização operariado fabril/burguesia industrial. Desprovido de todo direito, condenado à miséria crescente, o proletário da indústria, em sua própria desumanização, encarnaria a idéia da humanidade aviltada pelo capitalismo e, por isso mesmo, estaria destinado a redimir o gênero humano. Essa visão binária faz-se acompanhar de uma concepção restrita do Estado como "comitê executivo da burguesia": um aparelho a ser tomado de assalto pelo proletariado e utilizado para revolucionar a sociedade. Como se sabe, Marx e Engels corrigiram posteriormente essa visão simplista.
Diante das evidências demonstradas pela evolução do capitalismo, os críticos tiraram conclusões diferenciadas. As noções restritas de proletariado e Estado, base da concepção "explosiva" do processo revolucionário, foram substituídas, graças à influência das idéias gramscianas, pela estratégia de revolução "processual", defendida nas intervenções de Carlos Nelson Coutinho e Tarso Genro; a crítica da polarização das classes levou Daniel Aarão Filho a constatar: "Os proletários dos países avançados, tendo se transformado em cidadãos, tenderam, em grande maioria, a abandonar a perspectiva revolucionária". Outros autores, contrariamente, consideram que a socialização do trabalho e o assalariamento generalizado criaram as condições para a transformação revolucionária (Trotski, James Petras, Teotônio dos Santos, J. A. de Paula, Hector Benoit, Michel Lõwy).
O panfleto de 1848 teve um destino que certamente surpreenderia seus autores. Originalmente dirigido a um pequeno círculo clandestino de operários, o "Manifesto" tornou-se, tempos depois, uma referência viva para os trabalhadores agrícolas, assim que o capital subverteu as relações de produção no campo e pôs fim à "idiotia" atribuída por Marx e Engels à vida rural. O mesmo aconteceu com os movimentos sociais no Terceiro Mundo (os povos "bárbaros", contrapostos pela visão eurocêntrica dos autores às nações "civilizadas"), que tinham como objetivo imediato a resolução da "questão nacional" na luta antiimperialista.
O livro percorreu caminhos imprevistos. Nos 12 anos posteriores à morte de Marx, lembra Coggiola, apareceram 75 edições do "Manifesto" em 15 línguas, sendo que as traduções russas eram mais mumerosas do que as editadas no original alemão. O ciclo revolucionário aberto em 1917, num país não propriamente "civilizado", trouxe novas surpresas. Depois, a revolução chinesa (feita basicamente por camponeses e não por operários industriais) e a revolução cubana (feita à revelia do Partido Comunista e não tendo a classe operária como principal protagonista) aprofundaram o descompasso entre o movimento real da história e as previsões do "Manifesto". Mesmo na América Latina o processo revolucionário não ocorreu nos países mais desenvolvidos (Brasil, Argentina, México), mas em Cuba, Nicarágua e El Salvador.
Com o fim do bloco socialista o capitalismo voltou a imperar solitário no mundo. O processo conhecido como "globalização", antevisto por Marx e Engels em 1848, está enfim impondo ao planeta a "civilização", isto é, a forma burguesa de sociabilidade. A revolução técnico-científica em curso reafirma o prognóstico do "Manifesto" sobre esse modo de produção que só se mantém mediante a transformação contínua das forças produtivas. Acirrando as contradições entre o progresso material e a apropriação privada, o capitalismo moderno está agora mais próximo do retrato esboçado pelo "Manifesto" do que em 1848. Cento e cinquenta anos depois, o texto poderá adquirir uma explosiva atualidade.

Celso Frederico é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP e autor de "Lukács, um Clássico do Século 20" (Moderna).

Folha de São Paulo

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