Fábio Leite
Fabio Leite conhece música, tem sensibilidade. Aprendeu a escutar os tambores, percebeu que as escalas e divisões musicais pouco tinham a ver com a estrutura da música ocidental. Entrou na linguagem, primeiro no Brasil, depois em África. E mais, os tambores, as suas batidas, uma forma de comunicação, não foram tomadas como fator da estrutura e de função religiosa.
Um estudo profundo em torno de categorias que refletem aspectos centrais do universo africano de raiz tradicional antiga nasceu, há mais de três dezenas de anos, em torno da preparação e dos comentários sobre o programa mensal dos concertos da Orquestra da Universidade de São Paulo, conduzida pelo maestro Camargo Guarnieri. Dos temas de Vila Lobos, às modinhas paulistanas, às composições de Guarnieri, aos clássicos, à preparação da excursão do coral da USP a países africanos, sob a batuta criativa de Benito Juarez, passamos a trocar idéias sobre temas da cultura africana.
Fábio da Rocha Leite escapava da rotina imposta pelo seu cargo, dando asas a um primado espiritual de certa maneira sufocado. Orlando Marques de Paiva, o reitor da USP, que criou a Orquestra uspiana, José Roberto Franco da Fonseca, jurista e humanista, foram essenciais ao desenvolvimento dos estudos africanos na USP, que na fase de arrancada tiveram o apoio de Eurípedes Simões de Paula, Miguel Reale, Ruy Andrade Coelho, Vicente Marota Rangel, Dirceu Lino de Matos, além de um grupo de jovens estudantes africanos, hoje espalhados pelo mundo, e enquanto alguns ficaram em São Paulo, o Carlos Serrano, o Kabengele Munanga.
Hesitei em abordar este esmiuçamento de uma relação de atores da afirmação universalista do continente africano, uma determinante, entre outras, da criação do Centro de Estudos Africanos da USP, mas é, sem duvida, esclarecedora de um projeto.
Fábio libertou-se da agenda tão ambicionada por muitos e parte para a Costa do Marfim, terminados seus estudos preparatórios para o doutorado, acumulando a figura de Leitor na Universidade de Abidjan. Atendeu e desenvolveu o Leitorado sem o impedir de iniciar longas viagens ao interior do país, onde surge a pesquisa vivida. Periodicamente enviava notícias, longas cartas onde falava dos seus novos amigos participantes, da África profunda, jovens e velhos, estes senhores da memória coletiva de um povo, na concepção do Fábio. Umas vezes respondia prontamente, outras vezes não. Fábio vinha a férias, rápidas, e aí comentávamos a sua visão do universo africano. Tínhamos interesses comuns no mundo sudanês, eu no eixo entre Dakar e Bamako, particularmente em Timboctou que, anos mais tarde, uma “neta”, Denise Dias Barros, no dizer de Fábio, esquadrinhou.
Fábio Leite não viajou só pela Costa do Marfim. Passou várias temporadas no Togo, Benin, Ghana e Nigéria, pesquisando as instituições ancestrais nas sociedades Iorubá, Agni e Senufo, a partir dos conhecimentos profundos dos cultos africanos no Brasil e de leituras de clássicos. Tento não usar o termo “religiões africanas” por uma razão muito simples. Durante mais de dez anos pesquisei e estudei o tema das artes africanas, analisando as principais coleções nos museus europeus e no campo, o que me levou a estudar filosofia africana. Intuí e percebi uma certa relação entre a simbologia de motivos repetidos em grande número de peças – o ziguezague, as formas em espiral e/ou helicoidais – como que simbolizando uma permanente relação com os antepassados comuns, percorrendo uma noção de tempo(s). Uma outra constatação diz respeito àquelas sociedades com estruturas “avançadas” quanto ao poder que, em relação aos cultos, criaram a figura do intermediário(s) na relação entre homem e os antepassados comuns, surgindo um panteon hierarquizado, tal como na sociedade Iorubá, contrapondo-se a outras sociedades em que o homem aprendeu a se comunicar diretamente com os antepassados, devidamente inserido na sua comunidade de origem, mais comum na África Bantu.
Nunca me senti à vontade com o tipo de leituras que pretendiam configurar duas Áfricas: a “tradicional” e a “moderna”. Fábio Leite também não. Apesar do esforço de alguns autores a divisão, termos opostos, não só é de natureza linear como insuficiente enquanto modelo de explicação. Além do mais essa metodologia leva a uma certa ambigüidade à divulgação de idéias ligadas a interesses que negam a identidade africana. O ponto fundamental é, sem dúvida, a busca da identidade africana em um quadro universal e não redutor em busca de particularismos que passam a ter várias leituras, normalmente distantes da condição humana.
Por exemplo: falar do feiticismo como algo de especificamente africano é um erro. Encontramos a figura do feiticeiro em todos os cantos do mundo, mormente na literatura ocidental, ligada a um conceito de bem e mal que, aliás, não espelha o pensamento africano, refletindo mais uma prática típica de momentos agudos de ruptura social ocorridos em todas as épocas e lugares.
Um último fator, decorrente dos anteriores, emergiu de leituras antigas e das práticas judiciais atuais, ao novamente intuir que dos sucessivos conflitos exógenos e endógenos, ao longo da colonização, levaram a uma mutação do papel de certas figuras, como o do tradicional “adivinho”, sufocado pelas estruturas do poder tradicional em ruptura, que se transformou em uma figura lida por uma parte da literatura ocidental, como a do “feiticeiro” exprimindo posições que se afastam da razoabilidade, da flexibilidade e do justo. Estudos de caso, em uma perspectiva temporal, em situações de rupturas sucessivas, vão neste sentido.
Na primeira metade do século XVI, Francisco de Vitória (1492-1546), em suas aulas na Universidade de Salamanca, evidenciou que o tratamento do Sujeito, da Pessoa Moral, tinham fundamento universal e não particular, da então Comunitas Orbis, ou seja o mundo ocidental, face aos povos que passaram a ser conhecidos. Para Vitória todos tinham a sua orbis, sua organização própria e não havia por que tratar o outro em condição caracterizada por uma capitis deminutio. Vitória , a quem dediquei um estudo introdutório às suas lições, Relectiones de Indis Priore em De potestas civili (no prelo: Fundação Alexandre de Gusmão), afasta-se da interpretação extensiva do conceito de tutela, alargando os direitos subjetivos a todos os povos. A controvérsia é antiga, o problema é que ainda se mantém, passando da salvação à civilização, à cooperação.
Um ponto fundamental é o fato de que o texto de Fábio Leite não é um trabalho sobre religião mas trata, sim, de identidade. Curiosamente pilhei reações ao manuscrito nesse sentido, o que mostra o peso de idéias-força, tão aceitas, mas mal fundamentadas. Este é um ponto crucial que o leitor deve levar em conta para melhor aproveitar a contribuição do autor. Outro exemplo: o Censo Populacional brasileiro, pelas colocações que oferece, acaba por induzir o declarante, quando é o caso, a assinalar as “religiões afro-brasileiras”, o espiritismo, na categoria de “religião”, aliás posição assumida por muitos praticantes em busca de uma certa legitimação, o que reforça essa zona cinzenta do entendimento que, no fundo, é uma maneira de tratar com o poder. Para entender a obra de Fabio Leite, caro leitor, temos de nos afastar de preconceitos, ou melhor, ler seu trabalho utilizando como posição primeira, o véu da ignorância criado pelo jusfilósofo do Direito, John Rawls, ao tratar da proposição de um pacto social – Uma Teoria da Justiça –, ou em uma posição de “simpatia” com o outro, na concepção clássica de Adam Smith.
Teria uma sugestão a fazer ao Fábio e aos seus discípulos: pesquisar e analisar o papel que o curso de Iorubá lecionado durante vários anos no CEA/USP, que coordenou, teve em relação à pratica de cultos afro-brasileiros, principalmente em São Paulo, na medida em que boa parte desses alunos, oriundos dos terreiros, tomaram conhecimento da língua Iorubá confrontando-a com a linguagem utilizada nesses cultos. Certamente teremos muitas surpresas.
As numerosas e longas leituras que fiz – hoje estou, de certo modo voltando ao tema, na forma de um estudo sobre o Direito Africano, o chamado “direito tradicional”, analisando segundo uma metodologia jurídica e escapando das leituras antropológicas, com exceção, entre outros de Bronislaw Malinowski (Crime and Custom in Savage Society) – na perspectiva do paradigma do justo, poderá permitir a emergência de uma relação, como fonte de direito, ao relacionar essas fontes com o moderno Direito Constitucional. Fabio, que no intimo certamente lamentava o fato de eu ter passado a estudar as sociedades modernas, em torno da formação e evoluções do Estado moderno africano, certamente ficará satisfeito, mas com restrições ao papel das novas constituições. Vamos continuar a “brigar” em silêncio.
E a obra de Fábio Leite? Indagar-se-á o leitor. Afinal qual é o papel do prefaciador? Chegou à altura de falarmos dela. Contudo tínhamos de pôr em relevo a figura do autor – um artista musical (pianista) – impelido para tarefas administrativas de que se libertou com a sua nova função de pesquisador.
Com os recursos da sua formação acadêmica, com o apego à pesquisa de campo participativa, com a presença de sua formação cultural, passou das instituições à construção de conceitos. A Sociologia, a História, a Antropologia e a Filosofia – influenciado pela obra de Lukács – permitiram-lhe aprofundar a reflexão sobre a pesquisa e propor uma leitura original, a qual embora se utilize de uma ampla bibliografia, esta não foi determinante. Opção perigosa, certamente, mas que permitiu pôr em evidência, por intermédio de uma construção metodológica adequada à proposta, evidenciar conceitos descolonizados. Tarefa árdua que levanta obviamente divergências criativas. Na nossa troca de idéias ao longo do trabalho, Fábio Leite esquivou-se de utilizar certos autores. Insistiu em trabalhar e re-trabalhar os seus dados de pesquisa participativa como as melhores fontes, sem se deixar influenciar por algumas obras já clássicas neste campo. Era um direito seu e, finalmente, assim o levou a termo, e bem.
Uma última palavra sobre a temática e estruturação de sua tese.
Em seus estudos sobre os ancestrais em sociedades africanas, Fábio desejou objetivar mais concretamente esse conceito o qual considerava pouco aprofundado embora utilizado com freqüência. Para isso, necessitou examinar, nas três sociedades que citei antes, em primeiro lugar a noção de pessoa, para possível definição da controvertida figura do ancestral, examinando os elementos constitutivos do ser humano. Encontrando pontos comuns nas três sociedades, viu-se obrigatoriamente diante da questão da morte, fator que permite a passagem do homem de sua existência terrestre à sua condição de ancestral. Vencidas essas etapas, finalmente examinou alguns fatores e instituições sociais de natureza ancestral captados naquelas sociedades, mostrando a interação material estabelecida entre elas e seus antepassados. Esses pressupostos, a metodologia e os procedimentos adotados constam com detalhes na introdução de 1982 à sua tese.
O livro de Fábio Leite, inovador, entre muitos méritos, alguns já destacados, poderá contribuir para que o leitor e pesquisadores passem a produzir uma reflexão criativa sobre os temas abordados.
O livro de Fábio Leite, inovador, entre muitos méritos, alguns já destacados, poderá contribuir para que o leitor e pesquisadores passem a produzir uma reflexão criativa sobre os temas abordados.
Fernando Augusto Albuquerque Mourão
Professor Titular, USP
www.casadasafricas.org.br
Fabio Leite conhece música, tem sensibilidade. Aprendeu a escutar os tambores, percebeu que as escalas e divisões musicais pouco tinham a ver com a estrutura da música ocidental. Entrou na linguagem, primeiro no Brasil, depois em África. E mais, os tambores, as suas batidas, uma forma de comunicação, não foram tomadas como fator da estrutura e de função religiosa.
Um estudo profundo em torno de categorias que refletem aspectos centrais do universo africano de raiz tradicional antiga nasceu, há mais de três dezenas de anos, em torno da preparação e dos comentários sobre o programa mensal dos concertos da Orquestra da Universidade de São Paulo, conduzida pelo maestro Camargo Guarnieri. Dos temas de Vila Lobos, às modinhas paulistanas, às composições de Guarnieri, aos clássicos, à preparação da excursão do coral da USP a países africanos, sob a batuta criativa de Benito Juarez, passamos a trocar idéias sobre temas da cultura africana.
Fábio da Rocha Leite escapava da rotina imposta pelo seu cargo, dando asas a um primado espiritual de certa maneira sufocado. Orlando Marques de Paiva, o reitor da USP, que criou a Orquestra uspiana, José Roberto Franco da Fonseca, jurista e humanista, foram essenciais ao desenvolvimento dos estudos africanos na USP, que na fase de arrancada tiveram o apoio de Eurípedes Simões de Paula, Miguel Reale, Ruy Andrade Coelho, Vicente Marota Rangel, Dirceu Lino de Matos, além de um grupo de jovens estudantes africanos, hoje espalhados pelo mundo, e enquanto alguns ficaram em São Paulo, o Carlos Serrano, o Kabengele Munanga.
Hesitei em abordar este esmiuçamento de uma relação de atores da afirmação universalista do continente africano, uma determinante, entre outras, da criação do Centro de Estudos Africanos da USP, mas é, sem duvida, esclarecedora de um projeto.
Fábio libertou-se da agenda tão ambicionada por muitos e parte para a Costa do Marfim, terminados seus estudos preparatórios para o doutorado, acumulando a figura de Leitor na Universidade de Abidjan. Atendeu e desenvolveu o Leitorado sem o impedir de iniciar longas viagens ao interior do país, onde surge a pesquisa vivida. Periodicamente enviava notícias, longas cartas onde falava dos seus novos amigos participantes, da África profunda, jovens e velhos, estes senhores da memória coletiva de um povo, na concepção do Fábio. Umas vezes respondia prontamente, outras vezes não. Fábio vinha a férias, rápidas, e aí comentávamos a sua visão do universo africano. Tínhamos interesses comuns no mundo sudanês, eu no eixo entre Dakar e Bamako, particularmente em Timboctou que, anos mais tarde, uma “neta”, Denise Dias Barros, no dizer de Fábio, esquadrinhou.
Fábio Leite não viajou só pela Costa do Marfim. Passou várias temporadas no Togo, Benin, Ghana e Nigéria, pesquisando as instituições ancestrais nas sociedades Iorubá, Agni e Senufo, a partir dos conhecimentos profundos dos cultos africanos no Brasil e de leituras de clássicos. Tento não usar o termo “religiões africanas” por uma razão muito simples. Durante mais de dez anos pesquisei e estudei o tema das artes africanas, analisando as principais coleções nos museus europeus e no campo, o que me levou a estudar filosofia africana. Intuí e percebi uma certa relação entre a simbologia de motivos repetidos em grande número de peças – o ziguezague, as formas em espiral e/ou helicoidais – como que simbolizando uma permanente relação com os antepassados comuns, percorrendo uma noção de tempo(s). Uma outra constatação diz respeito àquelas sociedades com estruturas “avançadas” quanto ao poder que, em relação aos cultos, criaram a figura do intermediário(s) na relação entre homem e os antepassados comuns, surgindo um panteon hierarquizado, tal como na sociedade Iorubá, contrapondo-se a outras sociedades em que o homem aprendeu a se comunicar diretamente com os antepassados, devidamente inserido na sua comunidade de origem, mais comum na África Bantu.
Nunca me senti à vontade com o tipo de leituras que pretendiam configurar duas Áfricas: a “tradicional” e a “moderna”. Fábio Leite também não. Apesar do esforço de alguns autores a divisão, termos opostos, não só é de natureza linear como insuficiente enquanto modelo de explicação. Além do mais essa metodologia leva a uma certa ambigüidade à divulgação de idéias ligadas a interesses que negam a identidade africana. O ponto fundamental é, sem dúvida, a busca da identidade africana em um quadro universal e não redutor em busca de particularismos que passam a ter várias leituras, normalmente distantes da condição humana.
Por exemplo: falar do feiticismo como algo de especificamente africano é um erro. Encontramos a figura do feiticeiro em todos os cantos do mundo, mormente na literatura ocidental, ligada a um conceito de bem e mal que, aliás, não espelha o pensamento africano, refletindo mais uma prática típica de momentos agudos de ruptura social ocorridos em todas as épocas e lugares.
Um último fator, decorrente dos anteriores, emergiu de leituras antigas e das práticas judiciais atuais, ao novamente intuir que dos sucessivos conflitos exógenos e endógenos, ao longo da colonização, levaram a uma mutação do papel de certas figuras, como o do tradicional “adivinho”, sufocado pelas estruturas do poder tradicional em ruptura, que se transformou em uma figura lida por uma parte da literatura ocidental, como a do “feiticeiro” exprimindo posições que se afastam da razoabilidade, da flexibilidade e do justo. Estudos de caso, em uma perspectiva temporal, em situações de rupturas sucessivas, vão neste sentido.
Na primeira metade do século XVI, Francisco de Vitória (1492-1546), em suas aulas na Universidade de Salamanca, evidenciou que o tratamento do Sujeito, da Pessoa Moral, tinham fundamento universal e não particular, da então Comunitas Orbis, ou seja o mundo ocidental, face aos povos que passaram a ser conhecidos. Para Vitória todos tinham a sua orbis, sua organização própria e não havia por que tratar o outro em condição caracterizada por uma capitis deminutio. Vitória , a quem dediquei um estudo introdutório às suas lições, Relectiones de Indis Priore em De potestas civili (no prelo: Fundação Alexandre de Gusmão), afasta-se da interpretação extensiva do conceito de tutela, alargando os direitos subjetivos a todos os povos. A controvérsia é antiga, o problema é que ainda se mantém, passando da salvação à civilização, à cooperação.
Um ponto fundamental é o fato de que o texto de Fábio Leite não é um trabalho sobre religião mas trata, sim, de identidade. Curiosamente pilhei reações ao manuscrito nesse sentido, o que mostra o peso de idéias-força, tão aceitas, mas mal fundamentadas. Este é um ponto crucial que o leitor deve levar em conta para melhor aproveitar a contribuição do autor. Outro exemplo: o Censo Populacional brasileiro, pelas colocações que oferece, acaba por induzir o declarante, quando é o caso, a assinalar as “religiões afro-brasileiras”, o espiritismo, na categoria de “religião”, aliás posição assumida por muitos praticantes em busca de uma certa legitimação, o que reforça essa zona cinzenta do entendimento que, no fundo, é uma maneira de tratar com o poder. Para entender a obra de Fabio Leite, caro leitor, temos de nos afastar de preconceitos, ou melhor, ler seu trabalho utilizando como posição primeira, o véu da ignorância criado pelo jusfilósofo do Direito, John Rawls, ao tratar da proposição de um pacto social – Uma Teoria da Justiça –, ou em uma posição de “simpatia” com o outro, na concepção clássica de Adam Smith.
Teria uma sugestão a fazer ao Fábio e aos seus discípulos: pesquisar e analisar o papel que o curso de Iorubá lecionado durante vários anos no CEA/USP, que coordenou, teve em relação à pratica de cultos afro-brasileiros, principalmente em São Paulo, na medida em que boa parte desses alunos, oriundos dos terreiros, tomaram conhecimento da língua Iorubá confrontando-a com a linguagem utilizada nesses cultos. Certamente teremos muitas surpresas.
As numerosas e longas leituras que fiz – hoje estou, de certo modo voltando ao tema, na forma de um estudo sobre o Direito Africano, o chamado “direito tradicional”, analisando segundo uma metodologia jurídica e escapando das leituras antropológicas, com exceção, entre outros de Bronislaw Malinowski (Crime and Custom in Savage Society) – na perspectiva do paradigma do justo, poderá permitir a emergência de uma relação, como fonte de direito, ao relacionar essas fontes com o moderno Direito Constitucional. Fabio, que no intimo certamente lamentava o fato de eu ter passado a estudar as sociedades modernas, em torno da formação e evoluções do Estado moderno africano, certamente ficará satisfeito, mas com restrições ao papel das novas constituições. Vamos continuar a “brigar” em silêncio.
E a obra de Fábio Leite? Indagar-se-á o leitor. Afinal qual é o papel do prefaciador? Chegou à altura de falarmos dela. Contudo tínhamos de pôr em relevo a figura do autor – um artista musical (pianista) – impelido para tarefas administrativas de que se libertou com a sua nova função de pesquisador.
Com os recursos da sua formação acadêmica, com o apego à pesquisa de campo participativa, com a presença de sua formação cultural, passou das instituições à construção de conceitos. A Sociologia, a História, a Antropologia e a Filosofia – influenciado pela obra de Lukács – permitiram-lhe aprofundar a reflexão sobre a pesquisa e propor uma leitura original, a qual embora se utilize de uma ampla bibliografia, esta não foi determinante. Opção perigosa, certamente, mas que permitiu pôr em evidência, por intermédio de uma construção metodológica adequada à proposta, evidenciar conceitos descolonizados. Tarefa árdua que levanta obviamente divergências criativas. Na nossa troca de idéias ao longo do trabalho, Fábio Leite esquivou-se de utilizar certos autores. Insistiu em trabalhar e re-trabalhar os seus dados de pesquisa participativa como as melhores fontes, sem se deixar influenciar por algumas obras já clássicas neste campo. Era um direito seu e, finalmente, assim o levou a termo, e bem.
Uma última palavra sobre a temática e estruturação de sua tese.
Em seus estudos sobre os ancestrais em sociedades africanas, Fábio desejou objetivar mais concretamente esse conceito o qual considerava pouco aprofundado embora utilizado com freqüência. Para isso, necessitou examinar, nas três sociedades que citei antes, em primeiro lugar a noção de pessoa, para possível definição da controvertida figura do ancestral, examinando os elementos constitutivos do ser humano. Encontrando pontos comuns nas três sociedades, viu-se obrigatoriamente diante da questão da morte, fator que permite a passagem do homem de sua existência terrestre à sua condição de ancestral. Vencidas essas etapas, finalmente examinou alguns fatores e instituições sociais de natureza ancestral captados naquelas sociedades, mostrando a interação material estabelecida entre elas e seus antepassados. Esses pressupostos, a metodologia e os procedimentos adotados constam com detalhes na introdução de 1982 à sua tese.
O livro de Fábio Leite, inovador, entre muitos méritos, alguns já destacados, poderá contribuir para que o leitor e pesquisadores passem a produzir uma reflexão criativa sobre os temas abordados.
O livro de Fábio Leite, inovador, entre muitos méritos, alguns já destacados, poderá contribuir para que o leitor e pesquisadores passem a produzir uma reflexão criativa sobre os temas abordados.
Fernando Augusto Albuquerque Mourão
Professor Titular, USP
www.casadasafricas.org.br
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