O fantasma de 64
João Roberto Martins Filho
LITERATURA; A REBELIÃO DOS MARINHEIROS
AVELINO BIDEN CAPITANI
Erico Veríssimo que nos perdoe, mas faltou um personagem em seu "Incidente em Antares" (1971). Neste romance, estavam presentes sete mortos ressuscitados: a fazendeira Quitéria Campolargo, o advogado Cícero Branco, o artista Menandro Olinda e o intelectual João Paz, além de Barcelona -o anarquista- e dos dois boêmios Pudim de Cachaça e Erotildes. "A Rebelião dos Marinheiros" parece provar, no entanto, que os mortos-vivos de Antares eram, na verdade, oito: faltou o marinheiro Avelino Biden Capitani. Gaúcho, como os colegas acima, o ex-líder da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), fundada em 25 de março de 1962, morreu pelo menos duas vezes e recebeu até homenagem póstuma, na música "Charles, Anjo 45", de Jorge Ben.
Capitani foi colega do legendário cabo Anselmo -agitador de talento e depois traiçoeiro agente dos órgãos de segurança- na organização do mítico sindicato dos marinheiros e esteve no centro do furacão que arrastou aquela entidade, depois de 25 de março de 1964.
O autor foi preso e torturado pelo Cenimar em 1964 e conseguiu fugir da prisão; exilou-se no Uruguai, treinou guerrilha em Cuba e voltou ao país, em 1966, para participar da trágica guerrilha do Caparaó; foi preso novamente, em 1967 (desta vez, pelo Exército e não houve tortura), até fugir, dois anos depois, integrando-se às organizações da luta armada e vivendo no Chile e Argentina; de volta ao Brasil, militou clandestino antes da anistia de 1979. Finalmente, ingressou no PT.
O belo livro de Capitani ressuscita uma das mais agitadas epopéias pessoais, de todas as que inspiraram as memórias de esquerda até aqui publicadas. Sem ódio ou rancor, o ex-marujo e guerrilheiro dá uma contribuição importante à historiografia sobre o pré-golpe e a resistência ao regime militar.
Ao contar os acontecimentos que presenciou de perto, com quase 30 anos de distância, retira os marinheiros do limbo em que foram colocados, quer pela historiografia que os culpa pelas "loucuras" que levaram ao golpe, quer pela própria instituição a que pertenceram, pois a Marinha recusou-se a aceitar a extensão da anistia aos 963 marinheiros e fuzileiros navais punidos depois de 64.
Entre os historiadores que trataram do assunto, J. F. Dulles dedica àqueles episódios sete páginas e seis fotografias de seu livro "Unrest in Brazil, Political-Military Crises, 1955-1964" (University of Texas Press, 1970). Mas é um relato conservador, no qual o movimento parece não ter vida própria e os marujos e sua associação surgem apenas como massa de manobra de comunistas e governistas.
A mesma visão vem à luz em uma página do livro "A Revolução e o Governo Costa e Silva" (Guavira, 1979), do general Jayme Portella. Aí, o ex-chefe do Gabinete Militar de Costa e Silva reforça a idéia da manipulação. Por sua vez, o respeitado almirante Mário César Flores, num artigo que escreveu para a "História Naval Brasileira" (Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1985), é capaz de rever alguns dos dogmas da Guerra Fria, ao criticar a dependência do Brasil frente aos EUA, mas restringe-se a apontar a "deterioração dos valores da hierarquia e da disciplina, produzida por motivações político-ideológicas alimentadas por várias fontes" como raiz dos males que aquela força sofreu em 1963-64.
Certamente, infiltrações e manipulações fazem parte da política, e não foram, naqueles tempos de Guerra Fria, privilégio dos movimentos de esquerda. Importa ressaltar que esse viés historiográfico tem impedido reconhecer e discutir as inquietações próprias dos marinheiros e por que aquele setor se mostrou tão disposto a desafiar a rigorosa disciplina de navios e quartéis, de forma coletiva e apaixonada.
Ao mesmo tempo, esconde-se que a radicalização dos marinheiros deve ser inserida no clima geral que então envolvia o país, as Forças Armadas e, especialmente, a Marinha. Nesse sentido, depoimentos publicados no livro "Visões do Golpe - A Memória Militar Sobre 1964" (Relume Dumará, 1994) lembram que a situação nos navios da Marinha era muito específica, dada a presença de poucos oficiais, isolados entre muitos marujos. Como resultado, na expressão do general Moraes Rego, diante da subversão, "a Marinha entrou em pânico".
Nesse quadro, "A Rebelião dos Marinheiros" expõe as motivações de uma categoria militar oriunda, em sua maioria, do campesinato ou das classes trabalhadoras, que não via na Marinha da época a mínima flexibilidade capaz de serenar seu ânimos rebeldes.
Ao mesmo tempo em que descreve o momento em que os marinheiros romperam o limiar da hierarquia, Avelino retrata as condições de disciplina, moradia, alimentação e soldo que geraram o motim, condições essas bastante piores que as dos soldados do Exército e da Aeronáutica na mesma época. Se não o fossem, não teriam sido objeto de modificação depois de 1964.
Na minha opinião, o melhor capítulo do livro é o que se intitula "O Golpe", um relato em primeira mão das tentativas de resistência e da desilusão que se seguiu à fuga de Jango e Brizola. Sem líderes e sem diretrizes, sem armas e perspectivas, os marujos ficaram entregues à própria sorte. Esses acontecimentos estão na raiz de numerosas adesões posteriores à luta armada.
Só há a lamentar que o autor tenha se esquecido de datar alguns acontecimentos fundamentais que, apesar do rigor na recapitulação, ficam perdidos no tempo. Enfim, vale lembrar que, no livro todo, a voz do narrador só fica embargada uma vez, quando toca na questão da anistia jamais concedida aos marujos de 1964 e na da tenacidade da Marinha em evitar que se cicatrize, enfim, essa ferida.
Quase uma década depois do fim da Guerra Fria, talvez já seja hora de fechar esse capítulo histórico. Quando esse dia vier, a anistia aos marinheiros rebelados apenas estenderá um direito que não foi negado a ninguém, vencidos ou vencedores. Quem sabe, assim, os mortos de Antares possam viver em paz e seus vivos morrer dignamente.
João Roberto Martins Filho é professor de política na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e autor de "A Rebelião Estudantil, 1968 - México, França e Brasil" (Mercado de Letras).
Folha de São Paulo
João Roberto Martins Filho
LITERATURA; A REBELIÃO DOS MARINHEIROS
AVELINO BIDEN CAPITANI
Erico Veríssimo que nos perdoe, mas faltou um personagem em seu "Incidente em Antares" (1971). Neste romance, estavam presentes sete mortos ressuscitados: a fazendeira Quitéria Campolargo, o advogado Cícero Branco, o artista Menandro Olinda e o intelectual João Paz, além de Barcelona -o anarquista- e dos dois boêmios Pudim de Cachaça e Erotildes. "A Rebelião dos Marinheiros" parece provar, no entanto, que os mortos-vivos de Antares eram, na verdade, oito: faltou o marinheiro Avelino Biden Capitani. Gaúcho, como os colegas acima, o ex-líder da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), fundada em 25 de março de 1962, morreu pelo menos duas vezes e recebeu até homenagem póstuma, na música "Charles, Anjo 45", de Jorge Ben.
Capitani foi colega do legendário cabo Anselmo -agitador de talento e depois traiçoeiro agente dos órgãos de segurança- na organização do mítico sindicato dos marinheiros e esteve no centro do furacão que arrastou aquela entidade, depois de 25 de março de 1964.
O autor foi preso e torturado pelo Cenimar em 1964 e conseguiu fugir da prisão; exilou-se no Uruguai, treinou guerrilha em Cuba e voltou ao país, em 1966, para participar da trágica guerrilha do Caparaó; foi preso novamente, em 1967 (desta vez, pelo Exército e não houve tortura), até fugir, dois anos depois, integrando-se às organizações da luta armada e vivendo no Chile e Argentina; de volta ao Brasil, militou clandestino antes da anistia de 1979. Finalmente, ingressou no PT.
O belo livro de Capitani ressuscita uma das mais agitadas epopéias pessoais, de todas as que inspiraram as memórias de esquerda até aqui publicadas. Sem ódio ou rancor, o ex-marujo e guerrilheiro dá uma contribuição importante à historiografia sobre o pré-golpe e a resistência ao regime militar.
Ao contar os acontecimentos que presenciou de perto, com quase 30 anos de distância, retira os marinheiros do limbo em que foram colocados, quer pela historiografia que os culpa pelas "loucuras" que levaram ao golpe, quer pela própria instituição a que pertenceram, pois a Marinha recusou-se a aceitar a extensão da anistia aos 963 marinheiros e fuzileiros navais punidos depois de 64.
Entre os historiadores que trataram do assunto, J. F. Dulles dedica àqueles episódios sete páginas e seis fotografias de seu livro "Unrest in Brazil, Political-Military Crises, 1955-1964" (University of Texas Press, 1970). Mas é um relato conservador, no qual o movimento parece não ter vida própria e os marujos e sua associação surgem apenas como massa de manobra de comunistas e governistas.
A mesma visão vem à luz em uma página do livro "A Revolução e o Governo Costa e Silva" (Guavira, 1979), do general Jayme Portella. Aí, o ex-chefe do Gabinete Militar de Costa e Silva reforça a idéia da manipulação. Por sua vez, o respeitado almirante Mário César Flores, num artigo que escreveu para a "História Naval Brasileira" (Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1985), é capaz de rever alguns dos dogmas da Guerra Fria, ao criticar a dependência do Brasil frente aos EUA, mas restringe-se a apontar a "deterioração dos valores da hierarquia e da disciplina, produzida por motivações político-ideológicas alimentadas por várias fontes" como raiz dos males que aquela força sofreu em 1963-64.
Certamente, infiltrações e manipulações fazem parte da política, e não foram, naqueles tempos de Guerra Fria, privilégio dos movimentos de esquerda. Importa ressaltar que esse viés historiográfico tem impedido reconhecer e discutir as inquietações próprias dos marinheiros e por que aquele setor se mostrou tão disposto a desafiar a rigorosa disciplina de navios e quartéis, de forma coletiva e apaixonada.
Ao mesmo tempo, esconde-se que a radicalização dos marinheiros deve ser inserida no clima geral que então envolvia o país, as Forças Armadas e, especialmente, a Marinha. Nesse sentido, depoimentos publicados no livro "Visões do Golpe - A Memória Militar Sobre 1964" (Relume Dumará, 1994) lembram que a situação nos navios da Marinha era muito específica, dada a presença de poucos oficiais, isolados entre muitos marujos. Como resultado, na expressão do general Moraes Rego, diante da subversão, "a Marinha entrou em pânico".
Nesse quadro, "A Rebelião dos Marinheiros" expõe as motivações de uma categoria militar oriunda, em sua maioria, do campesinato ou das classes trabalhadoras, que não via na Marinha da época a mínima flexibilidade capaz de serenar seu ânimos rebeldes.
Ao mesmo tempo em que descreve o momento em que os marinheiros romperam o limiar da hierarquia, Avelino retrata as condições de disciplina, moradia, alimentação e soldo que geraram o motim, condições essas bastante piores que as dos soldados do Exército e da Aeronáutica na mesma época. Se não o fossem, não teriam sido objeto de modificação depois de 1964.
Na minha opinião, o melhor capítulo do livro é o que se intitula "O Golpe", um relato em primeira mão das tentativas de resistência e da desilusão que se seguiu à fuga de Jango e Brizola. Sem líderes e sem diretrizes, sem armas e perspectivas, os marujos ficaram entregues à própria sorte. Esses acontecimentos estão na raiz de numerosas adesões posteriores à luta armada.
Só há a lamentar que o autor tenha se esquecido de datar alguns acontecimentos fundamentais que, apesar do rigor na recapitulação, ficam perdidos no tempo. Enfim, vale lembrar que, no livro todo, a voz do narrador só fica embargada uma vez, quando toca na questão da anistia jamais concedida aos marujos de 1964 e na da tenacidade da Marinha em evitar que se cicatrize, enfim, essa ferida.
Quase uma década depois do fim da Guerra Fria, talvez já seja hora de fechar esse capítulo histórico. Quando esse dia vier, a anistia aos marinheiros rebelados apenas estenderá um direito que não foi negado a ninguém, vencidos ou vencedores. Quem sabe, assim, os mortos de Antares possam viver em paz e seus vivos morrer dignamente.
João Roberto Martins Filho é professor de política na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e autor de "A Rebelião Estudantil, 1968 - México, França e Brasil" (Mercado de Letras).
Folha de São Paulo
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