As interpretações do passado e as metamorfoses da escrita da história
Diogo da Silva Roiz
Não é recente a indagação de que não existe um passado "puro" a ser descoberto e explorado pelos historiadores, ou tampouco a de que só existem interpretações na história, e que essas sejam suficientes para resolver os problemas para se escrever a história dos homens e das sociedades do passado e do presente. Se for correto afirmar que desde, pelo menos, o século XIX esses questionamentos fizeram parte das querelas, quase que constantes, entre historiadores e cientistas sociais, não é menos verdadeiro dizer que, a partir da década de 1970, essas discussões se tornaram ainda mais recorrentes, dadas as metamorfoses que têm sofrido tanto a escrita da história quanto as interpretações sobre o passado.
Desde aquela época, Roger Chartier1 tem participado vivamente daqueles debates. Em sua obra, além de apontar caminhos investigativos para se renovar a escrita da história, com base em novas abordagens sobre a "história cultural", inquirindo as práticas e as representações arraigadas sob a manifestação dos grupos e dos indivíduos, e de que modo são apropriadas e convertidas em "visões de mundo", que servem de instrumento de ação e de convencimento das massas, também tem procurado refletir as próprias mudanças da história e de sua escritura.
Em seu novo livro, A história ou a leitura do tempo, originalmente uma conferência apresentada na Espanha e, depois, sugerida pela Editora Gedisa para que o autor a transformasse em livro, analisa de que modo foi escrita a história nas últimas décadas. Nele o autor volta a se questionar e também a propor "novos" percursos aos "velhos" problemas da história e de sua escrita. De início, aponta a importância das reflexões e críticas indicadas pelas obras de Paul Veyne (em Como se escreve a história, de 1971), Hayden White (em Meta-história, de 1973) e Michel de Certeau (em A escrita da história, de 1975). Para ele, essas teriam prescrito os principais diagnósticos sobre as questões de o que é a história, como é escrita, e como é pesquisada, e que resultaram na constatação de uma possível "crise dos procedimentos da pesquisa histórica", que só se tornariam evidentes nos anos 1980 e 1990.
Ao lembrar-se da avaliação de Carlo Ginzburg, Chartier indica que: "reconhecer as dimensões retórica ou narrativa da escrita da história não implica, de modo algum, negar-lhe sua condição de conhecimento verdadeiro, construído a partir de provas e de controles" (p.13). Contudo, caberia observar, como fez Michel de Certeau que: "Em cada momento, a 'instituição histórica' se organiza segundo hierarquias e convenções que traçam as fronteiras entre os objetos históricos legítimos e os que não são e, portanto, são excluídos ou censurados" (p.18). Aqui é evidente o peso que a historiografia francesa dá à instituição sobre o exercício de um ofício e de sua prática de pesquisa e exposição dos dados. E que no caso da história, "os lugares sucessivos nos quais se produziu um discurso da história: a cidade, desde a Grécia até as cidades do Renascimento italiano, o mosteiro e a glória de Deus, a corte e o serviço do príncipe na era dos absolutismos, as redes eruditas e as academias de sábio, as universidades a partir do século XIX" (p.17), cada qual a seu modo, definindo os espaços de atuação do historiador, suas práticas de pesquisa e modos de apresentação dos resultados. Evidentemente, o peso relativo da instituição não deve ser deixado de lado, mas, de modo inverso, a própria ação do historiador em sua prática de pesquisa também não deve ser subestimada, nessa tensão dialética, que conforma a produção do saber histórico.
Para ele, "os historiadores sabem que o conhecimento que produzem não é mais que uma das modalidades da relação que as sociedades mantêm com o passado" (p.21), haja vista que essa, além de ter íntimas ligações com outras áreas do conhecimento, como a filosofia e a literatura, também mantém uma relação tensa com a memória (individual e coletiva). Mesmo considerando que, nesse caso, ao "testemunho, cujo crédito se baseia na confiança autorgada à testemunha, opõe-se a natureza indiciária do documento" (p.21). Uma segunda diferença opõe "o imediatismo da reminiscência à construção da explanação histórica". Uma terceira diferença estaria na oposição entre "reconhecimento do passado e representação do passado". Ainda que essas diferenças constituam parte integrante da composição do conhecimento histórico e da produção (e armazenamento) da memória coletiva, "o testemunho da memória é o fiador da existência de um passado que foi e não é mais", e de que, por isso também, mesmo o conhecimento histórico é possível de ser realizado.
Por sua vez, "a ficção é um 'discurso que 'informa' do real, mas não pretende representá-lo nem abonar-se nele', enquanto a história pretende dar uma representação adequada da realidade que foi e já não é" (p.24). Uma segunda razão que faz vacilar a distinção entre história e ficção "reside no fato de que a literatura se apodera não só do passado, mas também dos documentos e das técnicas encarregados de manifestar a condição de conhecimento da disciplina histórica" (p.27). Uma terceira estaria em que, no "mundo contemporâneo, a necessidade de afirmação ou de justificação de identidades construídas ou reconstruídas, e que não são todas nacionais, costuma inspirar uma reescrita do passado que deforma, esquece ou oculta as contribuições do saber histórico controlado" (p.30). Não por acaso:
Numa época em que nossa relação com o passado está ameaçada pela forte tentação de criar histórias imaginadas ou imaginárias, é fundamental e urgente a reflexão sobre as condições que permitem sustentar um discurso histórico como representação e explicação adequadas da realidade que foi. (p.31)
Após sintetizar as principais características do percurso dessas discussões, o autor passa a destacar de que modo a atenção dos historiadores perpassou do social para o cultural, e de que forma a cultura pode contribuir para um melhor conhecimento do passado. Para ele, a dificuldade quanto ao entendimento do termo cultura estaria, de imediato, em sua concentração a duas famílias de significados que prescrevem:
a que designa as obras e os gestos que, em uma sociedade dada, se subtraem às urgências do cotidiano e se submetem a um juízo estético ou intelectual e a que aponta as práticas comuns através das quais uma sociedade ou um indivíduo vivem e refletem sobre sua relação com o mundo, com os outros e com eles mesmos. (p.34)
No primeiro caso, "leva a construir a história dos textos, das obras e das práticas culturais como uma história de dimensão dupla", como demonstrou Carl Schorske; enquanto, no segundo, "se apoia na acepção que a antropologia simbólica oferece da noção", em que a cultura se estabeleceria numa relação de significados historicamente transmitidos e regulados pelo grupo, um sistema de relações herdadas e expressas em formas simbólicas, por meio das quais os indivíduos se comunicam e entendem os outros, como indicou Clifford Geertz, para quem "a totalidade das linguagens e das ações simbólicas próprias de uma comunidade constitui a sua cultura" (p.35).
Ao lado dessas questões, está a difícil representação entre "discursos eruditos e práticas populares", por que, além de mobilizarem de forma apaixonada a "história cultural", esta a concentrou em dois aspectos:
O primeiro, desejoso de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, trata da cultura popular como um sistema simbólico coerente, que se ordena segundo uma lógica estrangeira e irredutível em relação à da cultura letrada. O segundo, preocupado em recordar a força das relações de dominação e das desigualdades do mundo social, aborda a cultura popular a partir de suas dependências e de suas faltas no que diz respeito à cultura dos dominantes. (p.45)
O ponto-chave da "história cultural", nesse aspecto, estaria em "como pensar a articulação entre os discursos e as práticas", e:
O objeto fundamental de uma história que se propõe reconhecer a maneira como os atores sociais dão sentido a suas práticas e a seus enunciados se situa, portanto, na tensão entre, por um lado, as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, por outro, as restrições e as convenções que limitam - de maneira mais ou menos clara conforme a posição que ocupam nas relações de dominação - o que lhes é possível pensar, dizer, fazer. [...] essa noção [a de representação] permite vincular estreitamente as posições e as relações sociais com a maneira como os indivíduos e os grupos se percebem e percebem os demais. (p.49)
Assim, conduzir "a história da cultura escrita dando-lhe como pedra fundamental a história das representações é, pois, vincular o poder dos escritos ao das imagens que permitem lê-los, escutá-los ou vê-los, com as categorias mentais, socialmente diferenciadas, que são as matrizes das classificações e dos julgamentos" (p.52). No entanto, é imprescindível a atenção sobre as escalas de observação do vivido, bem como sobre a discussão que a concentrou ora ao global, ora ao local. Para o autor, a contribuição dos diálogos sobre a "história global" está justamente em propor que se observe a relação dialética entre o global e o local, estabelecendo suas conexões e articulando suas diferentes dimensões de percepção do social, do cultural, do político e do econômico. Por sua vez, também é importante verificar as transformações nos dispositivos de representação da cultura escrita, do papel à imagem, da fala à internet, do livro aos meios digitais. Isso porque:
Os três dispositivos clássicos da prova da história (a nota, a referência, a citação) estão muito modificados no mundo da textualidade digital a partir do momento em que o leitor é colocado em posição de poder ler, por sua vez, os livros que o historiador leu e consultar por si mesmo, diretamente, os documentos analisados. [...] Assim se estabelece uma relação nova, mais comprometida com os vestígios do passado e, possivelmente, mais crítica com respeito à interpretação do historiador. (p.60-1)
E, por fim, outro aspecto fundamental é o de notar a "especificidade da história, dentro das ciências humanas e sociais" que "é sua capacidade de distinguir e articular os diferentes tempos que se acham superpostos em cada momento histórico" (p.65). Justamente porque o "fato é que a leitura das diferentes temporalidades que fazem que o presente seja o que é, herança e ruptura, invenção e inércia ao mesmo tempo, continua sendo a tarefa singular dos historiadores e sua responsabilidade principal para com seus contemporâneos" (p.68).
Ao distinguir, portanto, os principais caminhos que a escrita da história tomou nas últimas décadas do século passado e enfocar as características que ainda prescrevem a pesquisa histórica, o autor oferece uma síntese consistente e bem informada sobre o tema, e ainda não deixa de demonstrar as contribuições que a "história cultural" pode proporcionar neste momento, ele próprio um de seus principais representantes. Não há dúvida quanto aos riscos que esse tipo de defesa apaixonada pode acarretar, mas não há como negar que a maneira como o autor procede, além de amplamente articulada, também é muito convincente. Por tudo isso, a leitura desse livro é fundamental para estudantes e pesquisadores interessados: a) em conhecer os caminhos da discussão sobre a história e a sua escrita; b) de que modo a "história cultural" pode contribuir para destrinçar as relações entre as práticas, as representações e as apropriações que os grupos e os indivíduos conformam sobre seu mundo e o dos outros; c) as estreitas ligações entre história e memória, de um lado, e história e ficção, de outro; d) as disputas que se estabelecem sobre a maneira com que o "princípio de realidade" contido em cada um desses discursos é tomado na história, na literatura e na filosofia; e) e de que modo procuram representar o passado, ou a partir dele "criar imaginativamente outros", e que fazem que o passado não seja apenas alvo de usos políticos e culturais, mas também que esteja no centro de debates que inquirem sua própria existência e possibilidade de ser adequadamente representado.
Diogo da Silva Roiz é doutorando em História pela UFPR, bolsista CNPq e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (Uems), Campus Amambaí. @ - diogos@yahoo.com.br
Revista Estudos Avançados
Diogo da Silva Roiz
Não é recente a indagação de que não existe um passado "puro" a ser descoberto e explorado pelos historiadores, ou tampouco a de que só existem interpretações na história, e que essas sejam suficientes para resolver os problemas para se escrever a história dos homens e das sociedades do passado e do presente. Se for correto afirmar que desde, pelo menos, o século XIX esses questionamentos fizeram parte das querelas, quase que constantes, entre historiadores e cientistas sociais, não é menos verdadeiro dizer que, a partir da década de 1970, essas discussões se tornaram ainda mais recorrentes, dadas as metamorfoses que têm sofrido tanto a escrita da história quanto as interpretações sobre o passado.
Desde aquela época, Roger Chartier1 tem participado vivamente daqueles debates. Em sua obra, além de apontar caminhos investigativos para se renovar a escrita da história, com base em novas abordagens sobre a "história cultural", inquirindo as práticas e as representações arraigadas sob a manifestação dos grupos e dos indivíduos, e de que modo são apropriadas e convertidas em "visões de mundo", que servem de instrumento de ação e de convencimento das massas, também tem procurado refletir as próprias mudanças da história e de sua escritura.
Em seu novo livro, A história ou a leitura do tempo, originalmente uma conferência apresentada na Espanha e, depois, sugerida pela Editora Gedisa para que o autor a transformasse em livro, analisa de que modo foi escrita a história nas últimas décadas. Nele o autor volta a se questionar e também a propor "novos" percursos aos "velhos" problemas da história e de sua escrita. De início, aponta a importância das reflexões e críticas indicadas pelas obras de Paul Veyne (em Como se escreve a história, de 1971), Hayden White (em Meta-história, de 1973) e Michel de Certeau (em A escrita da história, de 1975). Para ele, essas teriam prescrito os principais diagnósticos sobre as questões de o que é a história, como é escrita, e como é pesquisada, e que resultaram na constatação de uma possível "crise dos procedimentos da pesquisa histórica", que só se tornariam evidentes nos anos 1980 e 1990.
Ao lembrar-se da avaliação de Carlo Ginzburg, Chartier indica que: "reconhecer as dimensões retórica ou narrativa da escrita da história não implica, de modo algum, negar-lhe sua condição de conhecimento verdadeiro, construído a partir de provas e de controles" (p.13). Contudo, caberia observar, como fez Michel de Certeau que: "Em cada momento, a 'instituição histórica' se organiza segundo hierarquias e convenções que traçam as fronteiras entre os objetos históricos legítimos e os que não são e, portanto, são excluídos ou censurados" (p.18). Aqui é evidente o peso que a historiografia francesa dá à instituição sobre o exercício de um ofício e de sua prática de pesquisa e exposição dos dados. E que no caso da história, "os lugares sucessivos nos quais se produziu um discurso da história: a cidade, desde a Grécia até as cidades do Renascimento italiano, o mosteiro e a glória de Deus, a corte e o serviço do príncipe na era dos absolutismos, as redes eruditas e as academias de sábio, as universidades a partir do século XIX" (p.17), cada qual a seu modo, definindo os espaços de atuação do historiador, suas práticas de pesquisa e modos de apresentação dos resultados. Evidentemente, o peso relativo da instituição não deve ser deixado de lado, mas, de modo inverso, a própria ação do historiador em sua prática de pesquisa também não deve ser subestimada, nessa tensão dialética, que conforma a produção do saber histórico.
Para ele, "os historiadores sabem que o conhecimento que produzem não é mais que uma das modalidades da relação que as sociedades mantêm com o passado" (p.21), haja vista que essa, além de ter íntimas ligações com outras áreas do conhecimento, como a filosofia e a literatura, também mantém uma relação tensa com a memória (individual e coletiva). Mesmo considerando que, nesse caso, ao "testemunho, cujo crédito se baseia na confiança autorgada à testemunha, opõe-se a natureza indiciária do documento" (p.21). Uma segunda diferença opõe "o imediatismo da reminiscência à construção da explanação histórica". Uma terceira diferença estaria na oposição entre "reconhecimento do passado e representação do passado". Ainda que essas diferenças constituam parte integrante da composição do conhecimento histórico e da produção (e armazenamento) da memória coletiva, "o testemunho da memória é o fiador da existência de um passado que foi e não é mais", e de que, por isso também, mesmo o conhecimento histórico é possível de ser realizado.
Por sua vez, "a ficção é um 'discurso que 'informa' do real, mas não pretende representá-lo nem abonar-se nele', enquanto a história pretende dar uma representação adequada da realidade que foi e já não é" (p.24). Uma segunda razão que faz vacilar a distinção entre história e ficção "reside no fato de que a literatura se apodera não só do passado, mas também dos documentos e das técnicas encarregados de manifestar a condição de conhecimento da disciplina histórica" (p.27). Uma terceira estaria em que, no "mundo contemporâneo, a necessidade de afirmação ou de justificação de identidades construídas ou reconstruídas, e que não são todas nacionais, costuma inspirar uma reescrita do passado que deforma, esquece ou oculta as contribuições do saber histórico controlado" (p.30). Não por acaso:
Numa época em que nossa relação com o passado está ameaçada pela forte tentação de criar histórias imaginadas ou imaginárias, é fundamental e urgente a reflexão sobre as condições que permitem sustentar um discurso histórico como representação e explicação adequadas da realidade que foi. (p.31)
Após sintetizar as principais características do percurso dessas discussões, o autor passa a destacar de que modo a atenção dos historiadores perpassou do social para o cultural, e de que forma a cultura pode contribuir para um melhor conhecimento do passado. Para ele, a dificuldade quanto ao entendimento do termo cultura estaria, de imediato, em sua concentração a duas famílias de significados que prescrevem:
a que designa as obras e os gestos que, em uma sociedade dada, se subtraem às urgências do cotidiano e se submetem a um juízo estético ou intelectual e a que aponta as práticas comuns através das quais uma sociedade ou um indivíduo vivem e refletem sobre sua relação com o mundo, com os outros e com eles mesmos. (p.34)
No primeiro caso, "leva a construir a história dos textos, das obras e das práticas culturais como uma história de dimensão dupla", como demonstrou Carl Schorske; enquanto, no segundo, "se apoia na acepção que a antropologia simbólica oferece da noção", em que a cultura se estabeleceria numa relação de significados historicamente transmitidos e regulados pelo grupo, um sistema de relações herdadas e expressas em formas simbólicas, por meio das quais os indivíduos se comunicam e entendem os outros, como indicou Clifford Geertz, para quem "a totalidade das linguagens e das ações simbólicas próprias de uma comunidade constitui a sua cultura" (p.35).
Ao lado dessas questões, está a difícil representação entre "discursos eruditos e práticas populares", por que, além de mobilizarem de forma apaixonada a "história cultural", esta a concentrou em dois aspectos:
O primeiro, desejoso de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, trata da cultura popular como um sistema simbólico coerente, que se ordena segundo uma lógica estrangeira e irredutível em relação à da cultura letrada. O segundo, preocupado em recordar a força das relações de dominação e das desigualdades do mundo social, aborda a cultura popular a partir de suas dependências e de suas faltas no que diz respeito à cultura dos dominantes. (p.45)
O ponto-chave da "história cultural", nesse aspecto, estaria em "como pensar a articulação entre os discursos e as práticas", e:
O objeto fundamental de uma história que se propõe reconhecer a maneira como os atores sociais dão sentido a suas práticas e a seus enunciados se situa, portanto, na tensão entre, por um lado, as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, por outro, as restrições e as convenções que limitam - de maneira mais ou menos clara conforme a posição que ocupam nas relações de dominação - o que lhes é possível pensar, dizer, fazer. [...] essa noção [a de representação] permite vincular estreitamente as posições e as relações sociais com a maneira como os indivíduos e os grupos se percebem e percebem os demais. (p.49)
Assim, conduzir "a história da cultura escrita dando-lhe como pedra fundamental a história das representações é, pois, vincular o poder dos escritos ao das imagens que permitem lê-los, escutá-los ou vê-los, com as categorias mentais, socialmente diferenciadas, que são as matrizes das classificações e dos julgamentos" (p.52). No entanto, é imprescindível a atenção sobre as escalas de observação do vivido, bem como sobre a discussão que a concentrou ora ao global, ora ao local. Para o autor, a contribuição dos diálogos sobre a "história global" está justamente em propor que se observe a relação dialética entre o global e o local, estabelecendo suas conexões e articulando suas diferentes dimensões de percepção do social, do cultural, do político e do econômico. Por sua vez, também é importante verificar as transformações nos dispositivos de representação da cultura escrita, do papel à imagem, da fala à internet, do livro aos meios digitais. Isso porque:
Os três dispositivos clássicos da prova da história (a nota, a referência, a citação) estão muito modificados no mundo da textualidade digital a partir do momento em que o leitor é colocado em posição de poder ler, por sua vez, os livros que o historiador leu e consultar por si mesmo, diretamente, os documentos analisados. [...] Assim se estabelece uma relação nova, mais comprometida com os vestígios do passado e, possivelmente, mais crítica com respeito à interpretação do historiador. (p.60-1)
E, por fim, outro aspecto fundamental é o de notar a "especificidade da história, dentro das ciências humanas e sociais" que "é sua capacidade de distinguir e articular os diferentes tempos que se acham superpostos em cada momento histórico" (p.65). Justamente porque o "fato é que a leitura das diferentes temporalidades que fazem que o presente seja o que é, herança e ruptura, invenção e inércia ao mesmo tempo, continua sendo a tarefa singular dos historiadores e sua responsabilidade principal para com seus contemporâneos" (p.68).
Ao distinguir, portanto, os principais caminhos que a escrita da história tomou nas últimas décadas do século passado e enfocar as características que ainda prescrevem a pesquisa histórica, o autor oferece uma síntese consistente e bem informada sobre o tema, e ainda não deixa de demonstrar as contribuições que a "história cultural" pode proporcionar neste momento, ele próprio um de seus principais representantes. Não há dúvida quanto aos riscos que esse tipo de defesa apaixonada pode acarretar, mas não há como negar que a maneira como o autor procede, além de amplamente articulada, também é muito convincente. Por tudo isso, a leitura desse livro é fundamental para estudantes e pesquisadores interessados: a) em conhecer os caminhos da discussão sobre a história e a sua escrita; b) de que modo a "história cultural" pode contribuir para destrinçar as relações entre as práticas, as representações e as apropriações que os grupos e os indivíduos conformam sobre seu mundo e o dos outros; c) as estreitas ligações entre história e memória, de um lado, e história e ficção, de outro; d) as disputas que se estabelecem sobre a maneira com que o "princípio de realidade" contido em cada um desses discursos é tomado na história, na literatura e na filosofia; e) e de que modo procuram representar o passado, ou a partir dele "criar imaginativamente outros", e que fazem que o passado não seja apenas alvo de usos políticos e culturais, mas também que esteja no centro de debates que inquirem sua própria existência e possibilidade de ser adequadamente representado.
Diogo da Silva Roiz é doutorando em História pela UFPR, bolsista CNPq e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (Uems), Campus Amambaí. @ - diogos@yahoo.com.br
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