Oliveiros S. Ferreira – Elos partidos. Uma nova visão do poder militar no Brasil
Leonardo Prota *
Oliveiros Ferreira foi um dos principais redatores e editorialistas de O Estado de S. Paulo num período crucial da ingerência militar na política, com a peculiaridade de que o jornal, que progressivamente viria a ser a mais visível trincheira contra aquela ingerência, na época a apoiava abertamente. Vivenciando esse período desde um observatório privilegiado, Oliveiros adquiriu amplo conhecimento dos personagens representativos do que batizaria de Partido Fardado. Reuniu sobre o tema material primoroso e, depois de fazer incursões a bem dizer tópicas As Forças Armadas e o desafio da Revolução (1964); O fim do poder civil (1966); Forças Armadas para que? (1988); e, mais recentemente Vida e morte do Partido Fardado (2000) dispôs-se a produzir uma síntese: Elos partidos. Uma nova visão do poder militar no país (São Paulo, Harbra, 2007).
A hipótese explorada é a de que, notadamente no período republicano, configuram-se dois poderes que acabariam confrontando-se: o Estado (a União) e a Federação. Nesse confronto, o Estado só consegue firmar-se recorrendo à força. Parte do pressuposto de que “não há dificuldade em reconhecer a Federação como um dos atores principais de nossa história; a dificuldade, apesar das sucessivas intervenções unitárias, digamos assim, reside em ver o Estado como desempenhando um dos principais papeis.” Registra que os esforços para destacar a sua contribuição na formação da nacionalidade é vista com desconfiança, arrolando-os simplesmente como provindo de inspiração autoritária.
A intervenção da força armada no embate terá sido sempre a serviço de um dos dois personagens; “em 1889, da Federação; depois de 1930, nas sucessivas intervenções em força, massa e com êxito, da União.” Ainda que, ressalva, “em muitas ocasiões procuravam atuar como atores principais da peça.”
Oliveiros não ignora que há outros processos simultâneos em curso, se nos voltarmos para a sociedade. Contudo, enfatiza: “o que os move diz respeito ao Estado Brasileiro.” Separa também o último período abrangido por sua análise (1990/2002). Interessa-lhe determinar o papel do Partido Fardado quando se tratava de tornar ao Estado “forte, organizador e condutor da sociedade.” E, mais: “Não se negará, no processo que tentamos descrever, fatos que escapam explicitamente ao confronto entre União e Federação e só podem ser explicados pelo jogo das personalidades.” Assim, responde de antemão às críticas que lhe poderiam ser dirigidas. Acrescente-se que a hipótese acadêmica típica procede desse modo, isto é, isola o fenômeno a ser estudado, sem embargo da atenção às influências exteriores que possam ter atuado sobre o processo, que terá oportunidade de assinalar, como indicaremos.
Para bem situar aquilo que seria específico do Partido Fardado, refuta a hipótese de que os “tenentes” teriam dado o tom da Revolução de 30. Escreve: “O que separava Góis Monteiro de Juarez Távora era uma questão que o jovem tenente não levava em conta: o comandante militar da revolução aceitava a chefia política do Rio Grande oficial e a Getúlio Vargas permaneceria leal até 29 de outubro de 1945”. (p.39). No capítulo “Os militares em cena” (págs. 49-66) empreende também uma crítica brilhante à tese, vigente sobretudo de 1945 a 1965 que muito apropriadamente denomina de “mito”, segundo a qual as Forças Armadas preencheriam o vácuo deixado pela abolição do Poder Moderador.
Afirma então: “Vivendo da ilusão do mito, não se apercebem que foi nesse período do qual não se podem excluir Jacareacanga e Aragarças, 1956 e 1958 que um amplo segmento da Força Armada tomara consciência de que os políticos não eram capazes de realizar os ideais pelos quais haviam lutado desde 1930.” (p.64)
Portanto, está posta a questão: na República, depois de se ter colocado ao serviço da Federação com o que viabilizou a derrubada da Monarquia, o Partido Fardado irá colocar-se ao serviço do Estado (União) até que se dê conta de que os políticos não se têm revelado aptos a concretizar os ideais pelos quais se batem (1964).
Antes de documentar o evento em se revela plenamente aquela conversão, Oliveiros examina a reconhecida influência positivista no Exército brasileiro e sugere uma outra que não fora referida: o que chama de liberal-militarismo.
A fim de construir sua interpretação, o autor repassa os principais eventos políticos depois de trinta: Plano Cohen, os integralistas e o desfecho daqueles embates. Talvez o cerne da hipótese de Oliveiros esteja no capítulo que intitulou de “Uma visão do Estado Novo” (p. 303-322) no qual avança a tese de que aquele regime seria de natureza corporativista. Isto é, instaurou no país diversas corporações, dotadas de tal rigidez que iriam perpetuar-se a exemplo do sindicalismo de Estado.
Assim, não tendo sido lograda a organização das classes sociais, condição para a democracia estabelecida por Oliveira Viana, o regime que sucedeu ao Estado Novo tangenciava o país real. Os partidos políticos não davam (e nem podiam dar) conta do recado, criando-se o caldo de cultura para a tutela do Partido Fardado.
Oliveiros reuniu (e soube explorar) vasta documentação sobre o movimento de março de 1964. Vê-se claramente como os artífices da rebelião foram deixados de lado pelo general Costa e Silva, que se auto-intitulou Comandante da Revolução e pretendia manter o Presidente da Câmara (Ranieri Mazili) na chefia (formal) do governo “até que se esgote o resto do mandato”. Alem disto, deixa claro que “em 1965 verei o que faremos nos próximos dez anos”. Essa situação explicaria o movimento dos governadores para empossar Castelo Branco, que ocupava o segundo lugar na hierarquia do Exército, como Chefe do Estado Maior.
No capítulo final, Oliveiros apresenta uma síntese que pode ser resumida do modo que se segue. “Em 1964 escreve, o Exército abandonou o texto oficial pelo qual os atores vinham pautando sua ação e, fingindo apoiar-se na Federação para restabelecer a Ordem, ocupou o poder do Estado o soberano é quem decide da exceção , destruiu seu aliado da véspera e impôs à União a sua peculiar maneira de ver o mundo, que antes de tudo foi burocrática e negadora dos princípios liberais e individualistas em torno dos quais se vinha articulando a vida política desde o Império.” E, mais adiante: “Em 1969, triunfante a União e submetida a Federação, o Partido Fardado está praticamente sem espaço para atuar, golpeado pela Junta Militar e condenado pelas ações repressivas que praticava sem norte. Nesse quadro, sem apoio de setores civis de importância social e política, o Exército começou a perder vitalidade política e, lentamente, se retirou de cena juntamente com as outras Armas, dez anos depois. Então, cedeu o papel de protagonista aos partidos políticos civis que pretendiam corresponder a algum projeto nacional”. (p. 579).
Do que precede, vê-se que o livro de Oliveiros corresponde a importante contribuição no sentido de ser reconstituído o longo ciclo de ingerência militar na política durante a República. Contudo, para termos uma visão completa da trajetória da instituição caberia ter presente o esforço em prol da profissionalização. Tomando por base a premissa estabelecida por Samuel Huntingtoin (1927/2008), no livro The Soldier and the State (1957), segundo a qual a ingerência militar na política denota baixo nível de profissionalismo, o brigadeiro Murillo Santos procurou documentar esse lado (O caminho da profissionalização das Forças Armadas, Instituto Histórico Cultural da Aeronáutica, 1991). Afirma que Castelo Branco vislumbrava incompatibilidade entre a mentalidade profissional (“sedimentada na defesa do Brasil e de suas instituições” ) e a que denominava de “miliciana” (“dá margem ao surgimento da tendência da política partidária em se servir dos militares e a destes em se envolverem nas questões partidárias”). A seu ver, algumas reformas que introduziu visavam dificultar (ou inviabilizar) a indesejável ingerência, entre estas o afastamento automático dos que passassem a exercer mandatos eletivos e a limitação do tempo de permanência, na ativa, no posto de general.
Oliveiros S. Ferreira, a par de sua conhecida atuação como jornalista, desenvolveu paralelamente atividade acadêmica na Faculdade de Filosofia na USP, pela qual se formou e onde concluiu o doutorado e a livre docência, sempre integrado à área dedicada ao estudo da política. De sua ampla bibliografia, além dos mencionados estudos sobre as incursões do Exército na política, consta livro pioneiro sobre o processo de descolonização da África Negra.
Leonardo Prota
Nasceu na Itália, naturalizando-se brasileiro. Basicamente desenvolveu extensa obra educacional no Norte do Paraná, nos três níveis de ensino, jubilando-se como professor titular da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pioneiro na organização do ensino de informática em nível superior. Encontrando-se entre os fundadores do Instituto de Humanidades, atua como seu diretor executivo (www.institutodehumanidades.com.br)
Revista Liberdade e Cidadânia
Leonardo Prota *
Oliveiros Ferreira foi um dos principais redatores e editorialistas de O Estado de S. Paulo num período crucial da ingerência militar na política, com a peculiaridade de que o jornal, que progressivamente viria a ser a mais visível trincheira contra aquela ingerência, na época a apoiava abertamente. Vivenciando esse período desde um observatório privilegiado, Oliveiros adquiriu amplo conhecimento dos personagens representativos do que batizaria de Partido Fardado. Reuniu sobre o tema material primoroso e, depois de fazer incursões a bem dizer tópicas As Forças Armadas e o desafio da Revolução (1964); O fim do poder civil (1966); Forças Armadas para que? (1988); e, mais recentemente Vida e morte do Partido Fardado (2000) dispôs-se a produzir uma síntese: Elos partidos. Uma nova visão do poder militar no país (São Paulo, Harbra, 2007).
A hipótese explorada é a de que, notadamente no período republicano, configuram-se dois poderes que acabariam confrontando-se: o Estado (a União) e a Federação. Nesse confronto, o Estado só consegue firmar-se recorrendo à força. Parte do pressuposto de que “não há dificuldade em reconhecer a Federação como um dos atores principais de nossa história; a dificuldade, apesar das sucessivas intervenções unitárias, digamos assim, reside em ver o Estado como desempenhando um dos principais papeis.” Registra que os esforços para destacar a sua contribuição na formação da nacionalidade é vista com desconfiança, arrolando-os simplesmente como provindo de inspiração autoritária.
A intervenção da força armada no embate terá sido sempre a serviço de um dos dois personagens; “em 1889, da Federação; depois de 1930, nas sucessivas intervenções em força, massa e com êxito, da União.” Ainda que, ressalva, “em muitas ocasiões procuravam atuar como atores principais da peça.”
Oliveiros não ignora que há outros processos simultâneos em curso, se nos voltarmos para a sociedade. Contudo, enfatiza: “o que os move diz respeito ao Estado Brasileiro.” Separa também o último período abrangido por sua análise (1990/2002). Interessa-lhe determinar o papel do Partido Fardado quando se tratava de tornar ao Estado “forte, organizador e condutor da sociedade.” E, mais: “Não se negará, no processo que tentamos descrever, fatos que escapam explicitamente ao confronto entre União e Federação e só podem ser explicados pelo jogo das personalidades.” Assim, responde de antemão às críticas que lhe poderiam ser dirigidas. Acrescente-se que a hipótese acadêmica típica procede desse modo, isto é, isola o fenômeno a ser estudado, sem embargo da atenção às influências exteriores que possam ter atuado sobre o processo, que terá oportunidade de assinalar, como indicaremos.
Para bem situar aquilo que seria específico do Partido Fardado, refuta a hipótese de que os “tenentes” teriam dado o tom da Revolução de 30. Escreve: “O que separava Góis Monteiro de Juarez Távora era uma questão que o jovem tenente não levava em conta: o comandante militar da revolução aceitava a chefia política do Rio Grande oficial e a Getúlio Vargas permaneceria leal até 29 de outubro de 1945”. (p.39). No capítulo “Os militares em cena” (págs. 49-66) empreende também uma crítica brilhante à tese, vigente sobretudo de 1945 a 1965 que muito apropriadamente denomina de “mito”, segundo a qual as Forças Armadas preencheriam o vácuo deixado pela abolição do Poder Moderador.
Afirma então: “Vivendo da ilusão do mito, não se apercebem que foi nesse período do qual não se podem excluir Jacareacanga e Aragarças, 1956 e 1958 que um amplo segmento da Força Armada tomara consciência de que os políticos não eram capazes de realizar os ideais pelos quais haviam lutado desde 1930.” (p.64)
Portanto, está posta a questão: na República, depois de se ter colocado ao serviço da Federação com o que viabilizou a derrubada da Monarquia, o Partido Fardado irá colocar-se ao serviço do Estado (União) até que se dê conta de que os políticos não se têm revelado aptos a concretizar os ideais pelos quais se batem (1964).
Antes de documentar o evento em se revela plenamente aquela conversão, Oliveiros examina a reconhecida influência positivista no Exército brasileiro e sugere uma outra que não fora referida: o que chama de liberal-militarismo.
A fim de construir sua interpretação, o autor repassa os principais eventos políticos depois de trinta: Plano Cohen, os integralistas e o desfecho daqueles embates. Talvez o cerne da hipótese de Oliveiros esteja no capítulo que intitulou de “Uma visão do Estado Novo” (p. 303-322) no qual avança a tese de que aquele regime seria de natureza corporativista. Isto é, instaurou no país diversas corporações, dotadas de tal rigidez que iriam perpetuar-se a exemplo do sindicalismo de Estado.
Assim, não tendo sido lograda a organização das classes sociais, condição para a democracia estabelecida por Oliveira Viana, o regime que sucedeu ao Estado Novo tangenciava o país real. Os partidos políticos não davam (e nem podiam dar) conta do recado, criando-se o caldo de cultura para a tutela do Partido Fardado.
Oliveiros reuniu (e soube explorar) vasta documentação sobre o movimento de março de 1964. Vê-se claramente como os artífices da rebelião foram deixados de lado pelo general Costa e Silva, que se auto-intitulou Comandante da Revolução e pretendia manter o Presidente da Câmara (Ranieri Mazili) na chefia (formal) do governo “até que se esgote o resto do mandato”. Alem disto, deixa claro que “em 1965 verei o que faremos nos próximos dez anos”. Essa situação explicaria o movimento dos governadores para empossar Castelo Branco, que ocupava o segundo lugar na hierarquia do Exército, como Chefe do Estado Maior.
No capítulo final, Oliveiros apresenta uma síntese que pode ser resumida do modo que se segue. “Em 1964 escreve, o Exército abandonou o texto oficial pelo qual os atores vinham pautando sua ação e, fingindo apoiar-se na Federação para restabelecer a Ordem, ocupou o poder do Estado o soberano é quem decide da exceção , destruiu seu aliado da véspera e impôs à União a sua peculiar maneira de ver o mundo, que antes de tudo foi burocrática e negadora dos princípios liberais e individualistas em torno dos quais se vinha articulando a vida política desde o Império.” E, mais adiante: “Em 1969, triunfante a União e submetida a Federação, o Partido Fardado está praticamente sem espaço para atuar, golpeado pela Junta Militar e condenado pelas ações repressivas que praticava sem norte. Nesse quadro, sem apoio de setores civis de importância social e política, o Exército começou a perder vitalidade política e, lentamente, se retirou de cena juntamente com as outras Armas, dez anos depois. Então, cedeu o papel de protagonista aos partidos políticos civis que pretendiam corresponder a algum projeto nacional”. (p. 579).
Do que precede, vê-se que o livro de Oliveiros corresponde a importante contribuição no sentido de ser reconstituído o longo ciclo de ingerência militar na política durante a República. Contudo, para termos uma visão completa da trajetória da instituição caberia ter presente o esforço em prol da profissionalização. Tomando por base a premissa estabelecida por Samuel Huntingtoin (1927/2008), no livro The Soldier and the State (1957), segundo a qual a ingerência militar na política denota baixo nível de profissionalismo, o brigadeiro Murillo Santos procurou documentar esse lado (O caminho da profissionalização das Forças Armadas, Instituto Histórico Cultural da Aeronáutica, 1991). Afirma que Castelo Branco vislumbrava incompatibilidade entre a mentalidade profissional (“sedimentada na defesa do Brasil e de suas instituições” ) e a que denominava de “miliciana” (“dá margem ao surgimento da tendência da política partidária em se servir dos militares e a destes em se envolverem nas questões partidárias”). A seu ver, algumas reformas que introduziu visavam dificultar (ou inviabilizar) a indesejável ingerência, entre estas o afastamento automático dos que passassem a exercer mandatos eletivos e a limitação do tempo de permanência, na ativa, no posto de general.
Oliveiros S. Ferreira, a par de sua conhecida atuação como jornalista, desenvolveu paralelamente atividade acadêmica na Faculdade de Filosofia na USP, pela qual se formou e onde concluiu o doutorado e a livre docência, sempre integrado à área dedicada ao estudo da política. De sua ampla bibliografia, além dos mencionados estudos sobre as incursões do Exército na política, consta livro pioneiro sobre o processo de descolonização da África Negra.
Leonardo Prota
Nasceu na Itália, naturalizando-se brasileiro. Basicamente desenvolveu extensa obra educacional no Norte do Paraná, nos três níveis de ensino, jubilando-se como professor titular da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pioneiro na organização do ensino de informática em nível superior. Encontrando-se entre os fundadores do Instituto de Humanidades, atua como seu diretor executivo (www.institutodehumanidades.com.br)
Revista Liberdade e Cidadânia
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