Mircea Eliade –Tratado de história das religiões (1919). São Paulo: Martins Fontes, 2010, 479 p.
Antonio Paim *
Com a publicação do Tratado de história das religiões, a Editora Martins Fontes completa, de certa forma, a divulgação do que se considera seja a parcela central da obra de Mircea Eliade (1907/1986). Temos em vista o fato de constar de seu catálogo O sagrado e o profano e Dicionário das religiões.
Eliade coroa a trajetória iniciada por William James (1842/1910) na obra Variedades da experiência religiosa, aparecida em 1902. Agora a investigação não mais diz respeito ao que melhor poderia expressar aquilo a que corresponderia o “outro mundo”. Volta-se para esclarecer o lugar que a dimensão religiosa ocupa na constituição da pessoa humana. James classificou a massa de informações disponíveis sobre a vivência religiosa em sua terra natal (Estados Unidos). Indicou que a expressão de sua autenticidade encontrava-se no papel que viria a desempenhar na vida de quem a tivesse experimentado. Em síntese, o objeto do estudo passa a ser a experiência religiosa. O passo seguinte seria dado pelo pensador alemão Rudolf Otto (1864/1937) ao publicar, em 1917, livro intitulado Idéia do sagrado.
A contribuição de Eliade cifra-se no estabelecimento de que a vivência do sagrado situa-se entre os primeiros passos que a espécie humana empreenderia no sentido de orientar-se no espaço circundante. E mais: que essa vivência irá permear a formação da personalidade, vindo a ocupar lugar especial na maneira pela qual iremos construindo referenciais, sem nos darmos conta. Associa a essa experiência fundante o fato de que todos dispomos da reminiscência de espaços mais significativos que outros (a experiência espacial que associamos aos primeiros amores; a terra natal, etc.). O homem religioso tem horror à homogeneidade do espaço profano. Perde ali o referencial. Assim, para o homem religioso emerge a necessidade de encontrar o espaço sagrado. Eliade apresenta exemplos edificantes da permanência, em nossa vida cotidiana, daquilo a que corresponderiam as vivências primordiais da espécie humana.
Importa aqui salientar outra categoria fundamental a que recorre em sua doutrina. Trata-se do termo hierofania.
Hierofante era o nome que designava, na Grécia Antiga, o sacerdote que presidia aos mistérios de Elêusis, um dos cultos então praticados. Cumpria-lhe anunciar o sagrado. Assim, a hierofania corresponde ao elemento a partir do qual tem-se acesso à esfera do que seria o sagrado.
Eliade reuniu a documentação disponível acerca das mais expressivas religiões existentes na obra História das crenças e das idéias religiosas, em três volumes. A partir desse material, pode estabelecer o que se poderia denominar de tipologia das hierofanias, isto é, dos elementos através dos quais certas civilizações buscaram aproximar-se do sagrado.
O próprio Eliade explica deste modo o caminho escolhido: “A via que seguimos, se não é a mais simples, é pelo menos a mais segura. Começamos a nossa pesquisa pela exposição de algumas hierofanias cósmicas, o Céu, as Águas, a Terra, as Pedras. Se escolhemos estas classes de hierofanias, não foi porque as consideramos como as mais antigas (o problema histórico não se coloca por enquanto) mas porque a sua descrição explica, por um lado, a dialética do sagrado e, por outro, as estruturas segundo as quais o sagrado se constitui. Por exemplo, o exame das hierofanias aquáticas ou celestes prover-nos-á de um material documental apto a levar-nos à compreensão: 1º) do sentido exato da manifestação do sagrado nestes níveis cósmicos (o Céu e as águas); 2º) da medida em que as hierofanias uranianas ou aquáticas constituem estruturas autônomas, isto é, revelam uma série de modalidades complementares e integráveis do sagrado. Passaremos em seguida às hierofanias biológicas (os ritmos lunares, o Sol, a vegetação e a agricultura, a sexualidade, etc.), e finalmente aos mitos e aos símbolos.”
O fato de que tenhamos escolhido que as instituições sociais sejam estruturadas segundo princípios estritamente laicos não deveria significar que devamos desvalorizar a dimensão do sagrado como constitutiva de nosso modo de ser. A subestimação da dimensão religiosa levará inevitavelmente à incapacidade de lidar com o sagrado. O mérito da cultura geral consiste precisamente em permitir que saibamos colocar cada um dos seus componente no lugar próprio.
Levando em conta que o nosso sistema de ensino não toma conhecimento da cultura humanista, cumpre destacar a importância das edições que a Martins Fontes tem patrocinado. Pelo menos torna acessível parte dos textos básicos constitutivos do que se convencionou chamar de cânon, isto é, as obras básicas da cultura ocidental, entre as quais a presença de Eliade é inquestionável.
Mircea Eliade
Mircea Eliade nasceu na capital da Romênia (Bucareste). Depois de adquirir formação intelectual na pátria de origem e interessando-se pelo estudo da religião, concluiu a Universidade de Calcutá, na Índia, onde permaneceu de 1928 a 1931. Seus primeiros estudos, dedicados à religião hindu, apareceram em 1935. Durante a guerra, viveu em Lisboa, radicando-se em Paris, no pós-guerra, onde seria professor na École des Hautes Études. Finalmente, deu cursos e orientou teses na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Faleceu nessa última cidade.
Revista Liberdade e Cidadania
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