quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Diálogos Makii de Francisco Alves de Souza: manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina, 1786





DIÁLOGOS DE FÉ, DEVOÇÃO E ESCRAVIDÃO AFRICANA NO RIO DE JANEIRO SETECENTISTA

Carlos da Silva Jr

SOARES, Mariza de Carvalho. Diálogos Makii de Francisco Alves de Souza: manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina, 1786. São Paulo: Chão Editora, 2019. 238


A publicação de fontes históricas não é algo muito comum no mercado editorial brasileiro. Neste sentido, é mais do que bem-vinda esta narrativa sobre uma congregação religiosa católica formada por africanos que originalmente vieram para o Brasil escravizados do Golfo do Benim (atual Togo, Benim e Nigéria). Este documento, guardado na seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi apresentado ao público através do trabalho de Mariza de Carvalho Soares, uma das mais destacadas africanistas em atividade no Brasil. Partes dele tinham sido exploradas em trabalhos anteriores da pesquisadora, mas somente agora uma edição crítica do documento, com notas explicativas, veio a lume.



Antes deste livro, a autora já havia publicado Devotos da cor, obra que trata da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia no Rio de Janeiro durante o século XVIII (SOARES, 2000). Ademais, ela também organizou um livro sobre a diáspora da Costa da Mina para o Rio de Janeiro (SOARES, 2007). Em outras palavras, é uma conhecedora desta região africana e da diáspora no Brasil dos povos desta área (conhecida pelos linguistas como “área dos gbe-falantes”). A iniciativa contou com o apoio da Chão, editora nova no mercado e que já tinha publicado documentos sobre Jovita Feitosa, uma voluntária para a Guerra do Paraguai, com comentários de José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 2019).



Diálogos Makii, título da obra, refere-se a dois diálogos entre o regente da Congregação Mina, Francisco Alves de Souza, e Gonçalo Monteiro, secretário da agremiação. O primeiro diálogo trata da “conflituosa eleição” do regente e dos estatutos a uma devoção às Almas de 1786; o segundo aborda a expansão portuguesa na África Ocidental e um roteiro de navegação para a Costa da Mina. Como a organizadora explica, os diálogos são uma novidade da perspectiva literária, pois “reproduz o modo de escrever dos segmentos menos letrados” (p. 9), e do ponto de vista histórico, pois apresenta a perspectiva “de um grupo de africanos escravizados sobre seu dramático processo de conversão ao catolicismo” (p. 9).



Os mahis (ou como prefere a organizadora, seguindo a documentação, Makiis) formavam uma confederação que vivia ao norte de Abomé, capital do antigo reino do Daomé (atual Benim). Com a ascensão deste reino, sobretudo a partir da década de 1720, a área mahi converteu-se num “campo de caça a escravos”, como a define o historiador nigeriano Isaac Akinjogbin (AKINJOGBIN, 1967). Incursões frequentes das forças daomeanas sobre seu território resultaram na deportação de milhares de mahis através do Atlântico nos séculos XVIII e XIX, boa parte dos quais encontrou o fim da jornada transatlântica no Brasil (SWEET, 2011; REIS, 2016, p. 13-40). É justamente nesse contexto de estabelecimento de uma comunidade mahi no Rio de Janeiro que se pode compreender a fundação da Congregação Mina (sendo mina um “guarda-chuva” étnico que englobava os diversos povos falantes de gbe), formada principalmente, mas não somente, por mahis.



O livro transcreve na íntegra as 70 folhas do manuscrito, com notas explicativas para certos termos e citações, facilitando a leitura. O livro é composto de três partes: uma transcrição dos dois diálogos (p. 13-107); um posfácio de Soares (p. 111-177), que inclui uma cronologia da Congregação Makii, além de anexos (cartas de alforria, habilitação matrimonial, testamento) que adicionam novas camadas documentais e permitem compreender diferentes aspectos das vidas dos principais integrantes da congregação mahi, na África e no Brasil.



Através destes documentos, por exemplo, foi possível conhecer melhor a Francisco Alves de Souza, regente da Congregação Mina e autor dos Diálogos. Escravizado na área mahi com cerca de 10 anos de idade, foi enviado para a costa (provavelmente Uidá), de onde seguiu para a ilha de São Tomé e de lá continuou a jornada até a Bahia, onde passou pouco tempo. Da Bahia, seguiu para o Rio de Janeiro, sendo comprado em 1748 por um comerciante. Francisco Alves permaneceu como escravo por pelo menos trinta anos até conseguir sua alforria. A documentação complementar também revela inesperados encontros (ou reencontros) nas Américas, como de Ignácio Gonçalves do Monte e Victória Correa (rei e rainha da Congregação Makii), que se uniram em matrimônio. Como declarou Ignácio Monte em seu testamento de 1763, (embora só tivesse falecido 20 anos mais tarde), Victoria era filha de seu avô, “Eseú Agoa”, rei dos mahis, portanto sua tia. Como nota a autora, trata-se não apenas de um casamento intrafamiliar, mas de um casamento entre pessoas de diferentes grupos étnicos - Ignácio Monte era Mahi enquanto Victoria Correa pertencia à nação Courá. Essa narrativa é de difícil interpretação à luz do que se conhece sobre a história dos povos mahis - na organização política mahi não havia a figura do “rei”, talvez referindo a um chefe local -, mas ela retrata o processo de separação de famílias durante a era do tráfico e o seu reencontro nas Américas, o que, embora fosse incomum, não era impossível (OLIVEIRA, 1995/1996, p. 174-193).



O estabelecimento de uma congregação católica de africanos da Costa da Mina no Rio de Janeiro setecentista é particularmente importante, uma vez que a maior parte do tráfico daquela região foi direcionado para a Bahia, que recebeu 80% dos dois milhões de indivíduos que deixaram a Costa da Mina, segundo dados do Voyages: The Transatlantic Slave Trade Database (ELTIS; BEHRENDT; RICHARDSON; FLORENTINO, 2006). Apesar do reduzido número de africanos escravizados da Costa da Mina no Rio de Janeiro no final do século XVIII (cerca de 10% do total de africanos, segundo estimativas da autora, p. 113), a Congregação Mina carioca representava um microcosmo dos diferentes grupos étnicos tragados pelo tráfico negreiro na Costa da Mina e deportados para as Américas. Eram mina-makiis, mina-sabarus, mina-chambá, mina-courá, mina-nagô, mina-cobu, entre outros grupos. Como observou Mariza Soares, os africanos minas traziam na bagagem experiências de convivência na África bem como “lembranças das guerras e da escravização” (p. 131).



Assim, o manuscrito demonstra as tensões no interior da Congregação como resquícios das rivalidades trazidas do lado de lá do Atlântico. Por exemplo, a cizânia no seio da Congregação Mina envolveu, de um lado, Mahis, Zanos, Agolins (Agonlin), Sabarus (Savalu), e de outro, os Dagomés (isto é, os Fons). A celeuma surgiu a partir “de alguns ditos picantes que os dagomés lhes diziam” (p. 41). Sabendo que o Daomé foi o principal reino escravista da Costa da Mina durante o século XVIII, pode-se facilmente imaginar quais foram os tais “ditos picantes”. Não deixa de ser irônico que escravistas e escravizados tenham compartilhado a condição de cativeiro nas Américas e tenham se reunido no interior da Congregação Mina.



Embora integrados em alguma medida ao universo português, o background africano dos seus membros continuava a operar no seio da Congregação Mina. Enquanto conflitos internos reacendiam rivalidades antigas, as hierarquias internas reproduziam terminologias africanas, reelaboradas no contexto da diáspora. Por isso encontram-se termos de difícil compreensão, como “Aeolû Cocoti de Daçá, que é como cá também duque” (p. 45). Como mostra a autora, esta e outras expressões correspondem à língua geral de Mina, “uma mistura de línguas gbe (fon e maxi) e iorubá” (p. 212, nota 17).



Outro aspecto trazido pelo manuscrito é a preocupação com os “abusos e superstições” (p. 20), as práticas “gentílicas e supersticiosas” (p. 40) e o desejo de expurgá-las do interior da comunidade religiosa. Entretanto, o regente Francisco Alves afirmou ao secretário Cordeiro que “[o]s pretos Mina, principalmente os que vêm daquela oriunda Costa e Reino de Makii, são tão briosos que nunca usaram de abusos, nem de superstições, como vossa mercê bem sabe” (p. 21). Ora, a ênfase nesse aspecto indica que este diálogo tinha outro público-alvo, qual seja, as autoridades portuguesas, e visava garantir aquela comunidade religiosa sob o manto do catolicismo. Outras irmandades, em diferentes partes da América portuguesa - inclusive outras formadas por africanos da Costa da Mina -, utilizavam-se do mesmo vocabulário da aversão a valores espirituais africanos para demonstrar o sucesso da conversão e adesão ao catolicismo (PARÉS, 2006; BONOMO, 2015; PARÉS, 2016).



Vale ainda destacar que o manuscrito mina (sobretudo passagens do Diálogo Segundo) foi elaborado “a partir de informações de terceiros” (p. 145). Mariza Soares identifica pelo menos uma das obras consultadas por Francisco Alves para narrar as conquistas portuguesas na África: os Dialogos de varia historia que sumariamente se referem muitas, de Pedro Mariz, publicado em 1597, de onde também teria tirado inspiração para o manuscrito na forma de diálogos. Como Francisco Alves teria deixado a Costa da Mina em tenra idade (menos de 10 anos, segundo Soares, p. 150), sua descrição da região foi feita a partir de “informações na cultura erudita da cidade onde viveu a maior parte de sua vida” (p. 150). Soares empreende um cuidadoso trabalho de identificar as raízes do gênero dialógico de narrar, que vai de Platão ao padre Manuel da Nóbrega. A autora também coteja as informações fornecidas no Segundo Diálogo sobre a Costa da Mina e seus reinos com descrições de época, cotejando com fontes conhecidas para a história da África Ocidental no período pré-colonial.



Segundo Soares, o autor dos Diálogos aprendeu a ler e escrever durante seu período de cativeiro (que provavelmente só terminou após a morte seu senhor, depois de 1777), e se beneficiou da instrução fornecida pelos franciscanos e do acesso a livros (pp. 118-120). A assinatura do regente Francisco Alves, “feita em desenho apurado”, indica “um homem não apenas alfabetizado, mas ilustrado” (p. 120), como aliás o define o secretário Cordeiro, tornando o documento ainda mais relevante. Segundo Soares, o manuscrito “deve ser lido como registro de uma experiência coletiva de escravização produzida no interior do próprio grupo, por um de seus representantes, em uma época em que a escrita era quase exclusivamente uma ferramenta das elites.” (p. 113).



A erudição apresentada por Francisco Alves (com inclusão de passagens da Bíblia e citações em latim) se assemelha à de outro africano, Olaudah Equiano, que publicou em 1789 uma autobiografia que rapidamente se converteu em um best seller (EQUIANO, 2003). Acredito que o manuscrito tenha passado por alguns processos de edição para adequar-se ao público ao qual se destinava, embora Mariza Soares credite todo o conteúdo ao próprio Francisco Alves. Ainda que o documento não possa ser considerado uma autobiografia no sentido clássico, as informações ali contidas e os documentos adicionais fornecidos pela organizadora abrem uma janela para o mundo dos afro-ocidentais no Rio de Janeiro do século XVIII.



O Segundo Diálogo trata dos principais portos da Costa da Mina. Como informa o autor, ele obteve informações de um “piloto amigo” que viajou para a Costa da Mina “há muitos anos” (p. 86). Na atlântica cidade do Rio de Janeiro setecentista, não seria difícil encontrar pessoas (capitães negreiros, marinheiros) que, em algum momento de suas vidas, atravessaram o oceano e desembarcaram na África Ocidental, e mais especificamente na Costa da Mina, terra de Francisco. Talvez por ter se informado com alguém que viajou para a Costa da Mina “há muitos anos”, Francisco Alves tenha incorrido em alguns erros, como por exemplo identificar Uidá (grafado no documento “Fidá, ou Ajudá”) como porto de “Ardra” (Aladá), quando Uidá reivindicou sua independência de Aladá em fins do século XVII (LAW, 1991, p. 225-260). Ou seja, quando Francisco Alves chegou ao Brasil, na década de 1730, Uidá há muito deixara de ser tributário de Aladá e tinha sido conquistado pelo Daomé (1727) (LAW, 2004). Similarmente, Jakin (grafado “Jaquem”) é descrito como local “aonde se faz muito negócio de pretos” (p. 91). Ocorre que o porto de Jakin fora destruído pelas tropas daomeanas em 1732 e novamente em 1734, 50 anos antes da escrita dos Diálogos. É possível ainda que Francisco Alves tenha obtido algumas dessas informações através das inúmeras narrativas de viajantes do século XVII, particularmente de viajantes e comerciantes holandeses na costa ocidental africana. Afinal, “Fidá”, como aparece no manuscrito (p. 90), é a grafia holandesa em documentos coevos (BOSMAN, 1705). Versado nas práticas de leitura, como argumenta Soares, o regente da Congregação Mina pode ter tido acesso a esse material. Por outro lado, a maior parte desses textos encontram-se ainda hoje em inglês, francês e holandês, nunca traduzidos - infelizmente - para o português, o que exigiria de Francisco Alves fluência em várias línguas - ou o auxílio de alguém versado nelas -, tornando sua história ainda mais interessante.



Diálogos Makii “compõem uma narrativa de escape à escravização, à assustadora viagem transatlântica e aos anos de escravidão que viveram e que queriam esquecer” (p. 150). Tudo narrado em primeira pessoa, o que constitui uma fonte para os historiadores da África e da diáspora africana bem como para o público não acadêmico interessado na história da escravidão. Que estes diálogos estimulem o mercado editorial brasileiro a investir na publicação de fontes sobre a história da África e dos africanos escravizados no Brasil.

Referências Bibliográficas
AKINJOGBIN, Isaac A. Dahomey and its Neighbours, 1708-1818 Cambridge: Cambridge University Press, 1967.
BONOMO, Gabriella Oliveira. O Bom Senhor Jesus dos Martírios - Irmandades de Africanos e Crioulos na Bahia Oitocentista Dissertação de Mestrado, História, Programa de Pós Graduação em História Regional e Local, Universidade do Estado da Bahia, 2015.
BOSMAN, Willem. A New and Accurate Description of the Coast of Guinea, Divided into the Gold, the Slave, and the Ivory Coasts Londres: Knapton, 1705.
CARVALHO, José Murilo de. Jovita Alves Feitosa: voluntária da pátria, voluntária da morte São Paulo: Chão Editora, 2019.
ELTIS, David; BEHRENDT, Stephen; RICHARDSON, David; FLORENTINO, Manolo. Voyages: The Transatlantic Slave Trade Database Disponível em: <www.slavevoyages.org>. Acesso em: 8 de setembro de 2019. (“Atualmente o site está migrando para uma nova plataforma, impedindo seu acesso no momento”)
EQUIANO, Olaudah. The Interesting Narrative and Other Writings (Edited with an Introduction and Notes by Vincent Carretta). Nova York: Penguin, 2003.
LAW, Robin. The Slave Coast of West Africa, 1550-1750: The Impact of the Atlantic Slave Trade on an African Society Oxford: Clarendon Press, 1991.
LAW, Robin. Ouidah: The Social History of a West African Slaving ‘Port’, 1727-1892 Athens: Ohio University Press, 2005.
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX. Revista USP, São Paulo (28), dezembro/fevereiro 95/96, p. 174-193.
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte: a religião vodum no antiga Costa dos Escravos na África Ocidental São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
REIS, João José. Revisitando ‘Magia Jeje na Bahia’. In: COSTA, Valéria; GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação São Paulo: Selo Negro, 2016, p. 13-40.
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
SOARES, Mariza de Carvalho (org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro Rio de Janeiro: EDUFF, 2007.
SWEET, James. Domingos チlvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011.

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