quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Terra calada: os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia. Rio de Janeiro





Antropologia do cotidiano como história

Nádia Heusi Silveira


RESENHAS

Antropologia do cotidiano como história

Nádia Heusi Silveira

Susana de Matos VIEGAS. Terra calada: os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2007. 339 páginas.



Dispersos numa região turística pitoresca, pouco afeitos a conversas e conhecidos pela qualidade da farinha de mandioca que produzem, os Tupinambá despertaram a curiosidade e o estranhamento de Susana de Matos Viegas, interessada que estava nos debates em torno dos dilemas da identidade e da autodeterminação dos povos indígenas. Ao longo do livro, a autora põe em diálogo a perspectiva desses "índios-caboclos de Olivença" e suas próprias vivências durante sete anos de idas e vindas à Bahia. Ao mesmo tempo em que apresenta o universo desse povo, deslinda seu caminho analítico com evidente sensibilidade etnográfica. É uma antropologia da vida diária que ilustra muito bem como a inflexão histórica é capaz de diluir a fixidez atribuída à identidade étnica.



Trata-se de uma revisão de sua pesquisa de doutorado, defendida em 2003, na Universidade de Coimbra. O estudo foi levado a cabo no município de Ilhéus, parte no seu centro urbano e parte no interior, numa região da vila de Olivença conhecida por Sapucaeira, entre agosto de 1997 e agosto de 1998. À época da pesquisa os Tupinambá totalizavam uma população de 2.500 pessoas e viviam num território de 50 mil hectares. O primeiro ano de estadia em campo foi complementado por vários retornos a Olivença e culminou com o trabalho de identificação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença.



A etnografia assenta-se num "tripé reflexivo", cuja ênfase se criou pela convivência com os Tupinambá. A importância de dar sustento e cuidar das crianças, a valorização da experiência pessoal direta e o território vivido como memória conformam o jeito de ser tupinambá e as elaborações e comparações de Viegas. Um dado relevante nesse sentido é sua afirmação de que chegou ao Brasil com uma equipagem teórica direcionada aos estudos interétnicos e que, após a vivência in loco, fez mais sentido a reflexão oriunda da etnologia indígena, particularmente as teorias inspiradas na fenomenologia. A autora teve o privilégio de acompanhar o processo de reivindicação da identidade indígena, embora no cotidiano os Tupinambá continuassem a se auto-referir indistintamente como índios ou caboclos. Alternância esta que remeteu sua atenção aos "modos de criar afeto, viver e habitar e a modos de conceber como a vida social se faz no tempo" (p. 18).



O livro subdivide-se em nove capítulos com títulos elucidativos que pontuam os temas emergentes e o percurso da pesquisa. Os capítulos "Comer e habitar: a ligação entre as pessoas e as casas", "Comer com minha mãe preferida: parentes, afetos e o tempo da socialidade" e "A dinâmica dos afetos: gênero, parentesco e micro-história" são ilustrados com fotografias do cotidiano em Sapucaeira, aproximando o leitor da vida tupinambá. No núcleo de seu argumento está a idéia de que o socius se faz na reiteração cotidiana de laços de parentesco, no nível da dimensão intersubjetiva e histórico-biográfica do sujeito. Assim, a característica dispersão das unidades de residência e a ausência de sentido de coletividade que, somados à falta de sinais diacríticos de indianidade, são atributos utilizados por alguns segmentos do entorno social para justificar a negação de uma identidade propriamente indígena, são aqui revertidos em positividade identitária. Viegas postula que a vivência em grupos locais fortemente autônomos é um eixo fundador dos sentimentos de pertença e da socialidade entre os Tupinambá. Este é também o fio que conduz suas formulações teóricas, cuja principal preocupação é alcançar um termo de comparação que permita escapar ao espelho do ocidente. Tendo em vista o alargamento comparativo de sua etnografia sem se deixar enredar em particularismos antropológicos ou cair em contrastes absolutos, a autora aloca a diferença nas "condições de socialidade". Por essa via discute parentesco, espaço e identidade, numa comparação de largo espectro que inclui não apenas a etnologia americanista, como também os materiais austronésios e do sudeste asiático.



A definição do que a autora entende por socialidade e condições de socialidade vai sendo elaborada ao longo dos capítulos, em variadas aproximações. No primeiro plano, Viegas menciona a convergência epistemológica entre antropologia e fenomenologia, seguindo a tendência inaugurada por Joanna Overing. No segundo plano, assume a crítica ao conceito de sociedade formulada originalmente por Roy Wagner, que argumenta contra a reificação do social como entidade agregativa das partes num todo. A síntese de Viegas aponta, de certa forma, para uma equivalência do conceito de socialidade à idéia de experiência vivida. Sua abordagem da socialidade dá-se numa "perspectiva processual que conjuga aspectos sociais e culturais em uma análise micro-histórica" (p. 49) e elude as divergências entre a vertente que enfatiza a convivialidade e a que ressalta as relações de predação. É através da experiência constituída por meio da intersubjetividade que o socius se torna conhecido, uma vez que a estética da ação tupinambá privilegia a experiência direta em detrimento das narrativas que atravessam gerações. A história cotidiana apresenta aos sentidos da etnógrafa o que, em certa altura do livro, ela identifica como "disposições estruturantes da socialidade" ou "condições de socialidade" que, se entendo, são as contingências que circunscrevem as ações ordinárias e revelam de maneira sutil a diferença cultural. A seguir apresento de que forma a análise da socialidade se desdobra em particularidades socioculturais a partir de certos aspectos prosaicos da vida: as formas de habitar, a convivência em torno da comida e as relações de gênero.



O modo ideal de habitar constitui-se naquilo que os Tupinambá chamam de "um lugar". São várias casas em relação simultânea de dependência e independência, onde vive, geralmente, uma família extensa virilocal. A independência é conferida pelo fogo - ordinariamente cada mulher cozinha na sua casa. O lugar engloba casas, pés de fruta, caminhos, roças, córrego, mata e uma efemeridade característica. Sua fundação inicia com o plantio de frutas, das quais Viegas destaca a jaca, o coco, o caju e a manga como as mais comuns. O abandono desse espaço se deve a uma abrupta separação de parentes co-residentes, seja por falecimento de um dos moradores, seja pela dissolução do casamento. Para a autora, o lugar produz socialidade de muitas maneiras: cria sentidos de habitar que são compartilhados; gera laços personalizados com o ambiente físico-geográfico; induz à produção de disposições alimentares partilhadas.



Durante a pesquisa de campo havia poucas casas de farinha nos lugares, mas todas as dificuldades em assegurar a produção de farinha de mandioca, mesmo que em locais distantes, eram superadas em prol do prazer de consumir beiju. Por meio da vivência culinária Viegas percebeu a centralidade dos alimentos derivados da mandioca na experiência de viver num lugar, sendo o desejo por esses alimentos constitutivo das relações sociais e do sentimento de pertença. Em sua análise do papel da comida na produção do parentesco, não é a comensalidade que importa, pois são raros os momentos em que as pessoas se reúnem para uma refeição, mas a partilha de alimentos cozidos no mesmo fogo. Inspirada na reflexão de Viveiros de Castro, a autora refere-se a uma afecção corporal gerada pelo desejo intenso de consumir certos alimentos, desenvolvendo-se dessa forma uma semelhança de base corporal. As preferências alimentares criam, então, condições de socialidade.



Além disso, a comida é um tópico fundamental neste esquema comparativo em função de servir como um índice da dinâmica dos afetos, à maneira de "dar sustento". O lugar é para a criança uma fonte de mães potenciais, comumente a avó paterna, e a ênfase no ato de agradar as crianças, alimentando-as, atesta que comer não é um epifenômeno na produção da diferença. Essa reflexão originou-se da observação de como os Tupinambá pensam e se relacionam com seus filhos de criação e com os filhos legítimos. Viegas descreve o dar sustento em seus aspectos intersubjetivos. A atitude "afirmativa" das crianças, quase exigindo serem alimentadas, é totalmente tolerável, ao passo que em outros âmbitos do relacionamento espera-se uma atitude submissa endereçada aos adultos. Ademais, a criança sente-se pertencida a um único fogo e raramente come fora de sua casa, ainda que seja um filho de criação e sua mãe legítima viva no mesmo lugar. A dinâmica do sustento une a afirmação do vínculo, por parte da criança, a uma disponibilidade para agradar, por parte da mãe, caracterizada pela abnegação no desempenho dessa tarefa e pela capacidade de responder aos desejos do filho. Desta perspectiva fenomenológica, o que está jogo não é partilha de substância, mas o trânsito de alimentos. A configuração dos afetos depende de esforço persistente, a memória do cuidado é um processo cumulativo e reversível, tanto quanto o vínculo entre a mulher e a criança. É o que a autora chama de parentesco revogável, fenômeno ancorado na concepção de corpo como feixe de afecções. Ou seja, o parentesco não é dado, sua efetivação é conquistada com esforço e persistência cotidiana. É preciso transformar comida em memória afetiva (reforço de vínculos) ou em esquecimento (reversão do parentesco).



A vida pacata das mães, mulheres que vivem nos lugares de Sapucaeira, em geral com os parentes de seu esposo, atentas às crianças, contrapõe-se a um movimento recorrente para a vila de Olivença, onde se tornam empregadas domésticas em casas burguesas, e à sua visibilidade política no cenário indigenista. Este é outro elemento fundante da diferença para Viegas. A descrição minuciosa das formas de convívio entre homens e mulheres, desde crianças até adultos, é alinhavada pela ótica da socialidade. A proximidade física com a mãe, na primeira infância, é forte, independentemente do sexo, e vai se diferenciando em brincadeiras na escola e atividades produtivas específicas de cada gênero no curso da vida. A tendência agnática, que confere poder legitimador à liderança masculina, reconhecida pela Funai em nível local, encontra-se hoje em concorrência com uma "feminilidade hegemônica" (p. 179), ligada à capacidade das mulheres de transitar entre o mundo da roça e o mundo da rua. A autora elabora essa contraposição das disposições da socialidade tupinambá não como assimetria, em vez disso, vê a transitividade feminina conectada a processos políticos supralocais como uma espécie de atrito produtivo entre as agências masculina e feminina.



Susana Viegas assinala sua reflexão sobre a noção tupinambá de território como ápice da etnografia. Descreve a importância do espaço em termos da constituição do parentesco como lugar e de uma instância de regeneração da vida - de onde surge a imagem de um "território pontilhado" na paisagem da mata. Uma monumentalidade do espaço está ausente na vivência tupinambá da Mata Atlântica. Não há marcos físicos de eventos mitológicos ou locais sagrados na paisagem que remetam a um vínculo territorial. Apenas os pés de frutas servem de referência mnemônica de antigos lugares onde a mata se regenera. O significado da terra é explicado pela autora como um "mapa de vivências", em que "o movimento depende de ciclos de abandono a partir do reverso entre a mata e os espaços de habitação. As referências no mapa movem-se em função do espectro temporal, entre as ações de abandono, rememoração e regeneração da vida por meio da reversão do espaço habitado da mata" (pp. 294-295). Pertencer àquele território implica em formas de estar-no-espaço ligadas à temporalidade cotidiana. Os ciclos de abandono dos espaços de moradia e o trânsito na vila tanto sublinham o cotidiano tupinambá e reiteram laços de parentesco, como produzem sentimento de pertença ao lugar.



Além de conter um foco comparativo de vasta amplitude condizente com a tendência contemporânea de dissolução de conceitos antropológicos totalizadores, Terra calada supera a tônica do academicismo presente na antropologia que se faz no Brasil. É possível vislumbrar algumas preocupações de ordem prática na discussão sobre a identidade tupinambá e na definição de sua noção de território, sem que as elaborações teóricas de Viegas sejam enviesadas por uma lógica unidirecional ou simplificadas a relações de causa e efeito. Ao contrário, o rigor e a minúcia intelectual tornam algumas passagens do livro excessivamente pontuadas por conceitos que, talvez, pudessem ser subtraídos sem prejuízos à reflexão como um todo.



Nádia Heusi Silveira, é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas da Universidade Católica Dom Bosco.

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