quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Entre Têmis e Leviatã - uma relação difícil: o Estado democrático de direito a partir e além de Luhmann e Habermas







A esfera pública levada a sério

Orlando Villas Bôas Filho

RESENHAS

A esfera pública levada a sério

Orlando Villas Bôas Filho



Marcelo NEVES. Entre Têmis e Leviatã - uma relação difícil: o Estado democrático de direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo, Martins Fontes, 2006. 354 páginas.



Um dos problemas fundamentais enfrentados pelo direito na sociedade contemporânea decorre da ausência de um plexo de valores válido como padrão de comportamento em todas as esferas da vida social. A dissolução desse plexo, com a decorrente emergência de uma sociedade pluralista caracterizada por diversas visões de mundo irreconciliáveis, retira a possibilidade de uma fundamentação inquestionável do direito, trazendo, como conseqüência, de um lado, o problema de sua redução à mera facticidade da imposição coercitiva e, de outro, da pretensão de legitimidade que agora não pode mais estar fundada em pressupostos legitimadores dados a priori.



Essa é a questão fundamental que anima a análise realizada por Marcelo Neves em Entre Têmis e Leviatã - uma relação difícil, que, baseado na teoria dos sistemas e na teoria do discurso, aborda as vicissitudes enfrentadas pelo Estado democrático de direito na atualidade, sobretudo no que concerne à articulação entre a facticidade do poder estatal e a pretensão de legitimidade do direito que, em sua análise, são associadas, em termos metafóricos, às figuras de Leviatã e Têmis, respectivamente.



Para dar conta da tarefa a que se propõe, a obra está estruturada em cinco capítulos seguidos de um excurso, intitulado "Perspectiva: do Estado democrático de direito ao direito mundial heterárquico ou à política interna mundial?", inserido à guisa de observações finais, no qual são discutidos os impactos engendrados pela emergência de ordens jurídicas globais no plano do Estado democrático de direito.



Na estruturação da obra percebe-se claramente - inclusive por indicação do próprio autor - um nexo entre os capítulos que permite dividi-la em duas partes: a primeira, abrangendo os três primeiros capítulos, apresenta uma pormenorizada análise reconstrutiva dos modelos teóricos com os quais o autor dialoga e a segunda, que abarca os dois últimos capítulos e o excurso que figura como conclusões finais, veicula o modelo de fundamentação e as condições de realização do Estado democrático de direito, além de abordar criticamente os novos problemas que lhe são impostos pela emergência de ordens jurídicas globais e pela política mundial.



Os três capítulos iniciais reconstroem criticamente os modelos propostos por Luhmann e Habermas, pontuando seus distanciamentos e, o que é mais interessante, seus paralelos. Trata-se de uma análise que, além de desvelar convergências e divergências entre esses dois paradigmas, também procura apontar as limitações apresentadas por ambas. Ainda nessa primeira parte da obra, além da exposição da teoria dos sistemas de Luhmann e da teoria do discurso de Habermas, Marcelo Neves também já começa a apontar as limitações apresentadas por elas para lidar com o pluralismo que caracteriza a sociedade complexa hodierna, aspecto esse que será retomado e aprofundado em seguida.



A segunda parte se inicia pela retomada comparativa dos traços básicos dos modelos de Luhmann e Habermas a respeito da modernidade e do Estado democrático de direito, indicando, sobretudo, a ênfase dada pelo autor da teoria dos sistemas ao dissenso conteudístico que caracteriza a sociedade moderna e a ênfase da teoria do discurso na obtenção do consenso a partir de procedimentos com potencialidade normativa universal.



Feita essa comparação inicial, Marcelo Neves enfatiza a sobrecarga que a pretensão consensualista do modelo habermasiano impõe ao horizonte dos agentes comunicativos ("mundo da vida"), tornando-o, segundo o autor, incapaz de dar conta adequadamente da divergência em torno de conteúdos morais e valorativos que são próprios da sociedade moderna, caracterizada pela superação da moral conteudística e hierárquica que marca as sociedades tradicionais. Embora não desconsidere o fato de que Habermas concebe o consenso como um "ideal regulativo", Marcelo Neves ressalta que o autor alemão se manteria preso a um racionalismo idealista incompatível com a complexidade da sociedade hodierna.



Assim, ao enfatizar a insuficiência do conceito habermasiano de intersubjetividade para a apreensão adequada da complexidade da sociedade contemporânea - uma vez que as relações intersubjetivas orientadas para o entendimento comunicativo engendrariam uma pretensão consensualista incompatível com o caráter plural e multifacetado que caracteriza as sociedades pós-tradicionais -, Marcelo Neves procura justamente demonstrar que o dissenso acerca dos conteúdos valorativos e das visões de mundo, característico de tais sociedades, não pode ser desconsiderado.



Baseando-se, em parte, na abordagem de Gunther Teubner, o autor propõe uma releitura do modelo habermasiano à luz da teoria dos sistemas, sugerindo que o conceito de "mundo da vida" seja considerado uma esfera social na qual a comunicação é reproduzida por meio da linguagem natural cotidiana e não a partir da especialização que pauta a linguagem dos sistemas funcionais.1 Desse modo, Neves caracteriza a sociedade moderna como pautada não pelo consenso, mas pelo dissenso conteudístico decorrente de uma esfera pública pluralista, na qual os conteúdos valorativos e as visões de mundo discrepantes se entrechocam. Trata-se da idéia de uma "arena do dissenso" que funciona como um campo complexo de interferência e tensão entre "mundo da vida" (entendido, em termos genéricos, como uma esfera social não estruturada sistêmico-funcionalmente),2 subsistemas funcionalmente diferenciados (economia, ciência, educação, arte etc.) e sistema constitucional.



No entanto, segundo o autor, a própria continuidade da esfera pública pluralista somente é garantida pela existência de procedimentos constitucionais que assegurem o fluxo livre e eqüitativo de valores, expectativas e interesses heterogêneos, razão pela qual o consenso procedimental se impõe como pressuposto imprescindível à própria salvaguarda do caráter plural e multifacetado que caracteriza a esfera pública. E é justamente nesse contexto que o Estado democrático de direito é definido pelo autor como uma forma de intermediação entre consenso procedimental e dissenso conteudístico.



Essa proposta, entretanto, não superestima o processo legislativo em detrimento dos demais procedimentos do Estado democrático de direito. Ao contrário, baseando-se na idéia de "hierarquias entrelaçadas" [tangled hierarchies], proposta por Douglas Hofstadter e amplamente utilizada por Niklas Luhmann, enfatiza a circularidade internormativa e interprocedimental como característica essencial do Estado democrático de direito, com a decorrente rejeição da prevalência hierárquica do processo legislativo em relação aos demais procedimentos, afastando assim o problema da imposição unilateral de conteúdos morais e valorativos que poderia criar restrições incompatíveis com a multiplicidade de visões de mundo que caracteriza a esfera pública pluralista da sociedade contemporânea. A idéia de "hierarquias entrelaçadas" possibilita a inserção crítica permanente no âmbito dos sistemas político e jurídico, o que permite que as visões e os argumentos minoritários permaneçam como possibilidades contínuas de mutação da ordem jurídico-política.



Trata-se, portanto, de uma perspectiva preocupada em manter-se adequada ao caráter plural da sociedade pós-tradicional, na qual não é mais possível conceber a soberania do povo (entendida como forma de heterolegitimação do Estado que, na perspectiva sistêmica, deve articular-se com a autolegitimação proporcionada pela autonomia funcionalmente condicionada e territorialmente determinada do sistema político) em termos da manifestação de uma vontade geral homogênea e unitária. Ao contrário, atento ao caráter heterogêneo que é próprio de uma concepção despersonalizada de soberania do povo - algo que expressa uma posição embasada em pressupostos distanciados das premissas da filosofia da consciência -, o autor procura caracterizá-la em termos de uma "inserção contínua dos mais diversos valores, interesses e exigências presentes na esfera pública pluralista nos procedimentos do Estado Democrático de Direito" (p. 165). Trata-se, assim, de um fator de reciclagem permanente do Estado diante de novas situações e possibilidades, constituindo-se também como condição indispensável à sua heterolegitimação num contexto hipercomplexo marcado pela heterogeneidade ética e pelo pluralismo das posições jurídicas.



Entretanto, Marcelo Neves não se contenta apenas em construir um modelo teórico de Estado democrático de direito com a pretensão de aplicação indistinta a todo e qualquer contexto social. O autor também se preocupa em indicar o caráter heterogêneo que marca a sociedade moderna, definida como sociedade mundial (ou seja, sem barreiras territoriais à comunicação), que condiciona de maneiras diferentes a realização do Estado democrático de direito, razão pela qual distingue, no desenvolvimento da sociedade moderna, uma bifurcação que leva à sua divisão em uma modernidade central e outra periférica. Trata-se de uma distinção, já explorada pelo autor em outros textos, que constitui um esforço significativo para a superação de uma visão homogeneizada e empiricamente limitada da sociedade moderna.



Indicadas as diferenças entre esses dois contextos (central e periférico), Marcelo Neves aponta os problemas específicos que o Estado democrático de direito encontra em cada um deles. É nesse sentido que, referindo-se aos países da modernidade central, o autor ressalta que o problema fundamental estaria relacionado com a heterorreferência do Estado (que se expressa tanto na dificuldade de responder adequadamente às exigências dos demais sistemas funcionais, como na dificuldade de uma inter-relação adequada entre política e direito), ao passo que, nos países da modernidade periférica, o problema estaria relacionado essencialmente com a auto-referência deficitária dos sistemas político e jurídico. Na modernidade periférica, definida como negativa, a exclusão social e o bloqueio destrutivo à auto-referência do direito conduziriam a uma situação de "corrupção sistêmica" que apresentaria tendência à generalização na experiência jurídica. Segundo o autor, o Brasil figura justamente como um exemplo de uma sociedade na qual se observa tanto a persistência de privilégios e exclusões que obstruem a construção de uma esfera pública pautada pela generalização institucional da cidadania, como a instrumentalização particularista do direito por indivíduos ou grupos sobreintegrados.



Por fim, são analisadas as pressões engendradas pela dinâmica da sociedade mundial e pelos conflitos étnicos e fundamentalistas sobre o Estado democrático de direito que, segundo o autor, enfraquecem sua capacidade funcional e força integrativa, ensejando a necessidade de busca de mecanismos, procedimentos e instituições que forneçam alternativas, com caráter jurídico e político, à incapacidade regulatória e aos déficits funcionais do Estado. Para tanto, empreende uma análise que conjuga tanto a perspectiva de Gunther Teubner como a proposta de Jürgen Habermas.



É preciso notar que, embora esteja baseada em perspectivas teóricas aparentemente irreconciliáveis, a proposta de Marcelo Neves não consiste numa abordagem eclética que busca levar a um denominador comum dois modelos que, como é sabido, divergem em pontos nevrálgicos. Trata-se, antes, de uma apropriação original e conseqüente que retira, de ambos, os elementos necessários à construção de um modelo mais abrangente, cuja pretensão é dar o devido relevo ao dissenso conteudístico que marca a esfera pública pluralista da sociedade moderna.



Notas




1
Embora se inspire na proposta de Gunther Teubner, Marcelo Neves extrai dela aspectos inexplorados, agregando-lhes maior precisão analítica, o que lhe permite evitar as críticas enfrentadas pelo autor alemão, especialmente a que lhe é endereçada por Jürgen Habermas no livro
Direito e democracia: entre facticidade e validade.



2
Marcelo Neves, diferentemente de Habermas, não considera o conceito de "mundo da vida" como o horizonte dos "agentes comunicativos" orientados à busca do entendimento intersubjetivo, pois, segundo ele, isso o sobrecarrega com uma pretensão consensualista (p. 125).

Orlando Villas Bôas Filho, é bacharel em Direito (PUC/SP), História (USP) e Filosofia (USP). Mestre e doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP, é pesquisador do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento - Cebrap e professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: ovbf@mackenzie.br.


1 Embora se inspire na proposta de Gunther Teubner, Marcelo Neves extrai dela aspectos inexplorados, agregando-lhes maior precisão analítica, o que lhe permite evitar as críticas enfrentadas pelo autor alemão, especialmente a que lhe é endereçada por Jürgen Habermas no livro Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 Marcelo Neves, diferentemente de Habermas, não considera o conceito de "mundo da vida" como o horizonte dos "agentes comunicativos" orientados à busca do entendimento intersubjetivo, pois, segundo ele, isso o sobrecarrega com uma pretensão consensualista (p. 125).

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