terça-feira, 18 de setembro de 2018

O pecado original da República



Veredas e labirintos de uma História

Cecilia Helena L. de Salles OliveiraI
IMuseu Paulista da Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

CARVALHO, J. M.. O pecado original da República, . Debates, personagens e eventos para compreender o Brasil. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017. 296pp.

Reconhecido pela vasta produção acadêmica e pelas contribuições ao estudo da formação histórica do Brasil, José Murilo de Carvalho lançou, pela recém-criada casa editorial fluminense Bazar do Tempo, coletânea de artigos voltada para públicos mais amplos e não especializados. Como ele próprio assinala na Introdução, são "trabalhos mais leves", em linguagem menos aprisionada aos protocolos do historiador e do cientista político, visando facilitar a leitura e a compreensão de episódios, personagens e interpretações sobre a história política do país nos séculos XIX e XX. O objetivo é reunir e tornar mais acessíveis textos dispersos, de visível engajamento político, editados em jornais e revistas de divulgação, ou apresentados originalmente na forma de conferências proferidas em instituições, como a Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

São 43 trabalhos, escritos entre 1999 e 2017, organizados por Ana Cecilia Impellizieri Martins e Luciano Figueiredo, distribuídos em cinco grandes blocos que procuram articulá-los de forma temática. Desses, apenas um é inédito, os demais, mesmo os textos de conferências, já foram editados, alguns pela terceira vez. Mas esses aspectos, que poderíamos considerar de natureza formal, não comprometem o impacto da coletânea que se caracteriza pela evidente manifestação do autor contra os "desvios" passados e presentes da República e pela abordagem de questões centrais ao debate sobre a nação e a identidade nacional brasileiras. Permeiam os artigos ora a indignação frente ao que Carvalho define como "a entrada tardia do povo na esfera da política" (p.8), ora a denúncia da "nossa dificuldade" em construir uma democracia que seja capaz de desfazer desigualdades sociais.

O formato da obra e sua destinação procuram atender demandas pela história e pela memória nacionais, o que tem se mostrado uma constante contemporaneamente, como já observaram Beatriz Sarlo e Pierre Nora. No entanto, seu conteúdo não decepciona pesquisadores, professores e historiadores de profissão. Ao contrário, alarga polêmicas e acirra controvérsias que vêm se desdobrando desde o século XIX e que datam do momento mesmo em que eram discutidas as possibilidades de organização de um Império constitucional na América.

Os assuntos e questões apresentados envolvem tanto procedimentos relativos à escrita da História (a exemplo dos artigos "Brasil de Noel a Gabriel" e "Biografia tem dono?") quanto avaliações sobre condicionamentos e peculiaridades da emergência da nação e do Estado nacional no Brasil, tema que, sobretudo às vésperas das comemorações do Bicentenário da Independência, adquire enorme repercussão.

Os artigos selecionados pelos organizadores remetem a propostas analíticas lançadas por José Murilo de Carvalho nos anos 1980 e 1990 quando da edição de algumas de suas obras mais conhecidas e estudadas: A construção da Ordem (1980); Os bestializados (1987) Teatro de sombras (1988) e A formação das almas (1990). A coletânea realimenta, assim, discussões em torno dos significados da República e da democracia, ao mesmo tempo em que Carvalho expõe suas próprias expectativas para o futuro.

O título escolhido - O pecado original da República - por si só provoca inúmeras ilações. Reproduz e realça a denominação dada ao primeiro bloco de artigos do livro e ao texto de abertura da coletânea, escrito em 2005. A metáfora foi usada pelo autor para indicar que, desde os primórdios, os idealizadores e dirigentes do regime republicano cometeram erros e faltas, dos quais o "pecado" maior foi, segundo Carvalho, a exclusão do "povo" da política e da esfera pública. As ações políticas do "povo", no século XIX e, particularmente, ao longo do século XX, teriam resultado em manifestações de rua fora dos espaços tradicionais de ação político-partidária, sem que, todavia, o sistema legal de representação se modificasse. Esse teria se caracterizado sempre pela "ausência do povo" e, portanto, não haveria no Brasil, desde a Independência até o momento presente, um governo verdadeiramente representativo. Nas circunstâncias atuais, os processos de inclusão política e de representação seriam fragmentados e agiriam na direção do agravamento das distâncias entre Estado e sociedade, elites e "povo", distâncias essas mensuradas pela enorme e persistente desigualdade social. Nesse ponto, ao "pecado original" aliam-se, segundo o autor, outros quatro "pecados capitais" a ancorar a formação nacional: a escravidão, o latifúndio, o patriarcalismo e o patrimonialismo (p.36-41).

A insistência na metáfora do "pecado", que sem dúvida pode gerar curiosidades em torno do livro, remete a complexo universo de práticas políticas e culturais, não explicitado na coletânea, mas que vem sendo profundamente debatido há tempos pela historiografia dedicada à política no Império e na República. A noção de pecado relaciona-se à violação individual de preceitos, à desobediência a normas morais e de conduta, bem como à consciência cristã do bem e do mal. O "pecado original" foi herdado por toda a humanidade e sua remissão exige não só a demonstração da fé nas leis de Deus, como o exercício de ações que possam expiar a culpa. Mas, trata-se de ação-pensamento de foro íntimo, muito embora possa exercer interferências familiares e sociais. Na Epístola aos Romanos, Paulo prega: "Eis porque, como por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram...". Mais adiante, registra: "[...] assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra de justiça de um só [Jesus Cristo] resultou para todos os homens justificação que traz a vida...." (A Bíblia de Jerusalém, 1989, p.2127).

Estabelecer a sinonímia entre o regime republicano e a inobservância de preceitos morais interpretados como basilares para a vida individual e coletiva sugere, de imediato, a existência subjacente de um modelo de República. Percorrendo os vários artigos é possível encontrá-lo. Uma primeira aproximação em relação à forma exemplar de governo está no destaque atribuído a observações do jesuíta Simão de Vasconcelos, feitas em 1663: "Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem vela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular" (p.48). Para o autor, a frase espelha a impossibilidade de o "brasileiro" ser efetivamente republicano, em razão de não seguir as leis, desejar privilégios, solicitar proteções em troca de favores e usufruir do Estado e dos recursos públicos como se fossem suas propriedades pessoais. Em outra passagem, Carvalho considera que a falta de enraizamento de práticas republicanas articula-se, entre outras razões, ao fato de que no Brasil grandes mudanças aconteceram sem que houvesse uma "revolução", o que é "nosso mérito e nosso drama" (p.69). Mérito, porque as mudanças ocorreram sem os custos sociais que as revoluções provocam. Drama, porque as mudanças não modificaram as estruturas sociais e "agravaram a dificuldade de viver sob o governo da lei" (p.69).

Mas o leitor pode compreender com traços mais nítidos o desenho que Carvalho propõe para a República a partir dos artigos dedicados a alguns dos protagonistas da História do Brasil e daqueles que foram reunidos sob a denominação "Nação impenitente". Merece destaque o estudo elaborado sobre as figuras de D. Pedro II e Euclides da Cunha (p.127-40). De modo comparativo, o autor procurou mostrar que em suas trajetórias ambos haviam desenvolvido o "espírito republicano", assim como o fizera Frei Caneca. Lutar pelo bem comum em detrimento de interesses pessoais e familiares seria a virtude maior de um republicano e estaria materializada na defesa da justiça e da liberdade, "na gestão honesta e eficaz dos dinheiros públicos" (p.138), na simplicidade das condições de vida dos governantes, no amor à pátria, no respeito ao "povo", práticas que, segundo o autor, nunca foram incorporadas pelos governantes tampouco pela maior parte da população.

Dentre as exceções estariam, ainda, segundo o autor, Tiradentes e Juscelino Kubitschek. Foram mobilizados para exemplificar tanto a "epifania da linguagem moderna e republicana" à época da Inconfidência como sua atualização no século XX (p.196), pois suas atitudes seriam condizentes com a iniciativa individual, a crença no progresso, a valorização de mudanças e a defesa da liberdade. No tocante a Tiradentes, o autor se refere a uma sonhada "República Florente" (p.199), tema por ele recuperado em recente carta aberta que fez circular pela internet. No documento, Carvalho explicita que o regime idealizado por Tiradentes permanece como inspiração para todos os que, como ele próprio, continuam na luta contra os donos da "República delinquente".

Entretanto, as personagens privilegiadas na coletânea parecem casos isolados, que surgem de tempos em tempos, mas que não representam o conjunto da sociedade e também eles, em função desse descolamento, apontam caminhos que desembocam reiteradamente em fracassos ou então em legados desperdiçados e esquecidos. "[...] Passados mais de cinco séculos, é preciso admitir que nossos melhores sonhos têm sido sistematicamente frustrados por nossa incapacidade em torná-los realidade. A retórica do ufanismo só serve para encobrir nossa frustração como povo e como nação..." (p.243).

Nesse sentido, para Carvalho, a nação e a identidade nacional seriam construções políticas e representações sem substância, porque incompletas, sempre à espera de acabamento. Ao desajuste e às distorções entre sociedade e República corresponderia a imoralidade dos nexos entre interesses públicos e privados. "Impenitente", incapaz de expiar e se redimir dos "pecados", a nação não consegue se realizar como formação social, equiparada às demais. Carente de forças internas que pudessem sustentar o autogoverno a nação estaria vulnerável (ou refratária) à atuação de homens excepcionais, que como faróis fariam iluminar o percurso da salvação? Poder-se-ia perguntar: tal como o Cristo descrito pelo apóstolo Paulo que lavou o pecado original do mundo?

As interrogações levantadas em relação à nação e à República se reproduzem, também, em relação ao "povo". Questão central aos artigos que se debruçam sobre as significações e práticas da cidadania, o "povo" foi apresentado pelo autor com diferentes qualificações. No século XIX, haveria um "povo eleitoral", constituído pelos votantes; um "povo político", formado pelos que tinham direito de voto, mas nem sempre o exerciam; e o "povo excluído", maioria composta por analfabetos, mulheres, estrangeiros e menores de 21 anos (p.13-18). Mas, nos dias de hoje, haveria vários "povos": "o povão das políticas sociais"; o "povo organizado em sindicatos e associações; o povo das redes sociais" (p.26-7). Ora exposto como vítima de políticas excludentes das elites - que parecem igualmente sucumbir a suas próprias faltas morais ecoando a nação "impenitente" -, ora parte de uma sociedade em busca de sua própria história e identidade, o "povo" aparece também, como na imagem estampada na capa da coletânea, na condição de pilar do mundo político.

A ilustração reproduz a figura publicada no n.113 da revista O Malho, que circulou na cidade do Rio de Janeiro, em 12 de novembro de 1904,1 e traz a seguinte legenda: "Zé Povo: Sim, sim! Sou o Atlas da República; mas é preciso que o governo não me enfraqueça, nem me sobrecarregue muito.... do contrário não aguento... e vai tudo por água abaixo...". Tendo ao fundo a baía da Guanabara iluminada pelo sol, o desenho mostra, ironicamente, um homem franzino carregando nas costas um enorme globo azul, representando o céu da República, com a inscrição "Ordem e Progresso", sobre o qual estão ainda amontoados alguns dos políticos da época, como Rio Branco e o então presidente Rodrigues Alves, entre outros.

Atlas faz parte da mitologia grega e geralmente é idealizado como forte e robusto. Era um dos Titãs que investiram contra o poder de Zeus. Derrotado, foi condenado a sustentar eternamente o céu olímpico em suas costas. Foi excluído do Olimpo com todas as demais forças do mal, a exemplo dos Gigantes. Está associado, desse modo, à imagem do portador e do sofredor, sendo aquele que é obrigado a carregar, para sempre, o peso da materialidade, escravo dos sentidos e da existência física, contrapondo-se a Zeus e aos demais deuses que usufruíam das benesses da liberdade, da imortalidade e da ambrosia.2

Em uma primeira leitura, a charge pode ser interpretada como uma crítica contundente dos redatores da revista ao regime republicano, e mais ainda ao governo daquele período. Mas era, também, uma advertência aos governantes. O povo que sustentava nos ombros o peso do Estado e dos políticos que o regiam poderia não mais suportá-los. Apenas para situar o momento da publicação do desenho, naqueles dias de novembro de 1904 ocorreu a Revolta da Vacina - tratada em um dos artigos da coletânea - e outras manifestações populares se insurgiam contra as reformas urbanísticas promovidas na capital federal pelo prefeito Pereira Passos.

Mas, por outro lado, a ilustração abre uma senda para problematizar a metáfora do "pecado", porque alude a formas de dominação e exploração que não coadunam com a moral cristã a não ser por meio de retórica. Seria possível, então, compreender a promiscuidade entre a esfera pública e interesses particulares no passado e no presente da República - questão fundamental nos estudos sobre a formação da sociedade brasileira - por intermédio de outras leituras que não a da oposição recorrente entre bem e mal. Além de relativizar possíveis clivagens entre o céu da República e o mundo social que o sustentava, a imagem faz recordar observações elaboradas por Hannah Arendt (1988). Ao debruçar-se sobre as revoluções dos séculos XVIII e XIX, a filósofa evidenciou que a construção da liberdade política, dos espaços de cidadania e dos governos representativos - marco da Revolução Francesa e das independências americanas, nas quais se insere a do Brasil - foi atravessada pela mais brutal violência, inscrita não no cometimento de "pecados", mas na configuração de uma nova ordem mundial no qual a propriedade se tornou o fundamento da liberdade e, simultaneamente, da opressão. Para que alguns setores da sociedade pudessem exercer a liberdade de governar e decidir sobre os destinos públicos, muitos outros foram excluídos da participação ativa na política, posto que submetidos ao reino da necessidade e da produção incessante, sem a qual o Estado liberal e o correlato processo de acumulação e lucro não poderiam se concretizar.

O que quero dizer é que se a coletânea caminha por certas "veredas" interpretativas, expressão usada por Carvalho na Introdução em referência à obra de Guimarães Rosa, existem à disposição do leitor outras possibilidades de entendimento da História do Brasil. Dada a complexidade dos processos de configuração da nação e do Estado Nacional, são "veredas" diferentes daquelas que o leitor vai aqui encontrar, porém também merecem ser percorridas. Podem seguir paralelas às desta coletânea, podem ser divergentes, podem até ser convergentes em algum momento do trajeto, mas, sobretudo, quanto maior for seu número e a extensão de seus matizes e pressupostos mais profundamente poderemos conhecer e compreender práticas e concepções políticas que estão na origem da sociedade a que pertencemos. À imagem das "veredas" talvez seja possível agregar a metáfora do "labirinto", usada por Gabriel García Márquez (2007) para descrever a última viagem imaginária de Simón Bolívar. Ao revisitar lugares, pessoas e referências territoriais com as quais se defrontara durante as guerras de libertação, o general espantou-se com detalhes, ações e circunstâncias das quais não tinha memória e que pareciam ser inéditas para ele, o que o obrigou a percorrer por dentro e pelo avesso suas próprias convicções. Entre "veredas" e "labirintos", a coletânea de José Murilo de Carvalho é de consulta obrigatória, já que as propostas por ele defendidas trazem pertinentes motivações para rever e confrontar, à luz de ampla bibliografia recente dedicada aos temas discutidos, não só eventos e protagonistas como percursos e meandros da História do Brasil.

NOTAS
1A revista O Malho começou a circular, na cidade do Rio de Janeiro, em 1902, e com algumas interrupções foi publicada até 1954. Dela fizeram parte alguns dos mais importantes desenhistas e caricaturistas do país naquele período, entre os quais J. Carlos e Angelo Agostini. A coleção está disponível em formato digital na página da Casa de Rui Barbosa. Ver: .

2Sobre o tema, consultar Vernant (2000).

REFERÊNCIAS
A Bíblia de Jerusalém. 4ª. Impressão. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. p.2127.
ARENDT, H. Da revolução. São Paulo: Ática, 1988. 
CARVALHO, J. M. O pecado original da República. Debates, personagens e eventos para compreender o Brasil. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017. 296p. 
MÁRQUEZ, G. G El general en su laberinto. 5 ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2007. [
VERNANT, J.-P. O universo, os deuses e os homens. Mitos gregos contados por Jean-Pierre Vernant. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. 

Cecilia Helena L. de Salles Oliveira foi diretora do Museu Paulista da USP (2008/2012). Atualmente é professora titular sênior na mesma instituição e pesquisadora CNPq. @ - psalles@usp.br
Revista Estudos Avançados

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