Às voltas com o marxismo universitário paulista
Deni Alfaro RubboI
IFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.
SCHWARZ, R.. Nós que amávamos tanto, O Capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017.
A passagem da teoria de Marx para uma doutrina marxista tem sido um processo gerador de impasses teóricos e metodológicos. Sobre a base de (certos) textos de Marx, e em nome de uma leitura "correta", emerge um sistema teórico aberto e inacabado, que é apropriado, recriado e enriquecido por diversos sujeitos e movimentos sociais em escala planetária. A grande quantidade de correntes políticas e intelectuais surgidas no século XX em prol da "doutrina marxista" é exemplo de uma diversidade flagrante, como a imagem de um rio intempestivo de correntezas heterogêneas que ora se juntam e se complementam, ora seguem rotas diferentes e, até mesmo, contrapostas.
Com efeito, nesse campo problemático, existe também uma distinção fundamental, assinalada pelo historiador francês Georges Haupt (1983), entre o que se entende, de um lado, por recepção de Marx, enquanto um corpo de ideias e uma teoria crítica da sociedade; e, de outro, uma "doutrina", modo pelo qual um indivíduo e/ou movimento social apropria-se de tal teoria crítica e a socializa.
No Brasil, durante o final da década de 1950 e na década seguinte, um capítulo da recepção e circulação transnacional das ideias de Marx começava a ser escrito. Pela primeira vez no país, as ideias encontraram abrigo no espaço da instituição acadêmica. Evidentemente, o pensamento de Marx circulava nos espaços externos às salas de aulas da universidade (partidos políticos, organizações, corredores, revistas, cafés etc.). Porém, por meio da iniciativa de jovens professores da Universidade de São Paulo e discípulos ávidos, estabeleceu-se um núcleo de estudos que se tornou o cultuado, estudado e prestigiado "Seminário d’O Capital". Cumpre ressaltar que a "vocação científica do grupo", para usar termo de um de seus participantes, marcada pela leitura estruturalista, rigorosamente interna, academicamente "correta", importada da França, era uma maneira de diferenciar-se das ideias marxistas em voga no Brasil e criticá-las, hegemonizadas pelo stalinismo dos esquemas etapistas e do eurocentrismo. E nisso, é bom dizer, tiveram êxito.
Aos poucos se formava um instigante capítulo da história do marxismo brasileiro: personagens (principais e secundários), roteiro de estudo, organização de leituras, confronto de interpretações, histórias de convivência, projeções de carreira, competições e concorrência entre participantes. Um livro, uma forma de leitura e leitores de todas as áreas.1
Nesse contexto, publica-se em boa hora um livro com quatro depoimentos de pensadores ativos no cenário intelectual e político brasileiro, os quais foram personagens dessa trama do marxismo acadêmico paulista. Trata-se das intervenções da mesa "Sobre os estudos d’O Capital" do Seminário "Marx: a criação destruidora" (realizado pela Boitempo Editorial, Sesc-SP, Programa de Pós-Graduação da FAU-USP e Fundações Laura Campos e Rosa Luxemburg em março de 2013), reunidas sob o título Nós que amávamos tanto O Capital. Os participantes foram Roberto Schwarz, José Arthur Gianotti, João Quartim de Moraes e Emir Sader, com mediação de Sofia Manzano. De perfis completamente distintos, tanto do ponto de vista intelectual quanto do político, e transcorridos mais de cinquenta anos da experiência do Seminário, os veteranos universitários retornam a Marx.
Roberto Schwarz ("Sobre a leitura de Marx no Brasil"), participante das primeira e segunda gerações, optou por realizar um balanço crítico da experiência da leitura de Marx, não sem astúcia e fina ironia, marcas inconfundíveis do crítico literário, e também por apresentar o caldo fervilhante da cultura política de esquerda da época. Ressalta de vários modos aquilo que considera o maior trunfo do grupo: a produção de um marxismo plasmado nas realidades locais, sem decalque nem cópia, e que articula criativamente a simultaneidade dos tempos discordantes do capitalismo periférico de extração colonial. Por seu turno, José Artur Gianotti ("Considerações sobre O Capital") mergulha "internamente" no texto d’O Capital, mostrando os embates de Marx com Ricardo, o valor como essência e as influências hegelianas. Curiosamente, mantém a mesma metodologia que rendeu fama ao Seminário: Marx alçado à condição de filósofo, leitura talmúdica das escrituras e explicitação da força e do movimento interno dos conceitos. Parte da segunda geração de leitores, já em plena ditadura civil-militar, João Quartim de Moraes ("Comunismo e marxismo no Brasil") analisa a história do comunismo brasileiro anterior ao empreendimento acadêmico do Seminário. Essa "bagagem do comunismo" é entendida pelo autor como a trajetória do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, iniciando seu itinerário a partir da década de 1920, tinha como fonte principal a leitura de panfletos e manuais. Por último, Emir Sader ("O Capital, 150 anos depois) procura atualizar O Capital de Marx por meio de uma análise do capitalismo contemporâneo caracterizada pela crise estrutural e pela autonomização do capital financeiro.
Aos nossos olhos, o texto de Schwarz assume importância decisiva, pois explora os alcances teóricos (e inovadores) dos participantes do lendário Seminário. As relações peculiares de uma ex-colônia como o Brasil e a teoria do capitalismo de Marx criavam um descompasso difícil de equacionar. Como, afinal, foi desatado esse nó teórico? "Como era de esperar, iam surgindo as questões de adequação e inadequação dos nomes, diante das quais havia duas saídas óbvias: dispensar o marxismo, porque ele não coincidia com os fatos brasileiros, ou dispensar os fatos, porque eles não coincidiam com o marxismo" (p.24). A solução adotada foi "não fazer nem uma nem outra coisa, mas reter os dois termos", alternativa que o crítico literário chamou de "inteligência dialética". Afinal, como lembrava José Carlos Mariátegui no Peru da década de 1920 - do qual, aliás, muitos membros posteriormente se tornaram leitores -, o marxismo não é um "corpo de consequências rígidas, iguais para todos os climas históricos e todas as latitudes sociais" (Mariátegui, 1988, p.112).
Nessa toada, distanciando-se das ideias dualistas e da teoria da "modernização", que conformava o PCB e a Comissão Econômica para América Latina (Cepal), o grupo contribuiu com um novo diagnóstico sobre o Brasil (exceções feitas a Caio Prado Júnior e aos trotskistas Mário Pedrosa e Lívio Xavier). Nosso atraso, na realidade, estava intimamente conectado com a reprodução da sociedade moderna mundial. A especificidade brasileira redefinia, portanto, teórica e politicamente a condição da burguesia, da nação e da classe operária mediante uma experiência histórica diferente do mundo europeu.
De todo modo, "a leitura não política da obra de Marx", como destaca na apresentação Sofia Manzano, compreendida como teoria do conhecimento, tinha seu aspecto ideológico e impuro. Basta recordar o contexto em que os universitários paulistas estavam: processo de "modernização", industrialização e urbanização do país. Cada qual dos membros fazia suas avaliações políticas do período em curso.
Convém lembrar que o título do livro é uma referência ao excepcional filme italiano Nós que nos amávamos tanto(1974) de Ettore Scola. Como se sabe, Gianni, Nicola e Antonio, personagens do enredo, tornam-se amigos durante a guerra contra o nazismo, compartilhando dificuldades, afetos e utopias. Décadas depois, reencontram-se com perspectivas e em posições sociais distintas: na reconciliação com a ordem, na decepção diante dos próprios ideais outrora cultivados e, surpreendentemente, na manutenção dos ideais antigos, embora custosos. O paralelo é irresistível. Os veteranos catedráticos compartilharam leituras e utopias em torno do grupo e, posteriormente, com suas carreiras intelectuais consolidadas, divergem em suas interpretações sobre os rumos do país após a abertura democrática. Esse aspecto torna-se patente pelo próprio perfil dos textos reunidos. Não se trata apenas de leituras heterogêneas a partir de Marx, mas, sobretudo, de divergências profundas adocicadas, digamos, pela cordialidade e respeito mútuo entre os expositores.
Das intervenções depreendem-se manifestos e posições ora autênticas, ora polêmicas. Na defesa das ortodoxias asfixiantes arquitetadas pela razão burocrática da URSS que sempre expressou publicamente (João Quartim de Moraes); na produção da crítica da cultura via crítica literária sobre as vicissitudes da cultura brasileira num nível de qualidade expressivo, provocador e estimulante, quiçá à custa de um relativo isolamento no campo político (Roberto Schwarz). Os dois restantes, de carreiras tão díspares, assemelham-se por terem sido capturados pelas relações de poder constituídas nos governos do Partido da Social Democracia Brasileira (PSBD) e Partido dos Trabalhadores (PT). Não obstante, com uma diferença: de um lado, no afã de exercer a querela da ciência sem ideologia (José Artur Gianotti); de outro lado, na convicção da produção puramente ideológica sem ciência (Emir Sader).
Dissabores à parte, os depoimentos dos ilustres leitores de Marx encontrados nesse pequeno e instigante livro têm evidentemente uma validade documental inestimável para uma história da recepção transnacional das ideias de Marx no Brasil. Uma outra história do marxismo está por ser feita.
NOTAS
1Para um trabalho fundamental sobre a história intelectual do Seminário, ver o interessante trabalho de Rodrigues (2012).
REFERÊNCIAS
HAUPT, G. Marx e o marxismo. In: HOBSBAWM, E. J. (Org.) História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. v.1, p.347-75. [ Links ]
MARIÁTEGUI, J. C. Ideología y política. Lima: Amauta, 1988. [ Links ]
RODRIGUES, L. S. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e "um seminário" (1958-1978). São Paulo, 2012. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. [ Links ]
SCHWARZ, R. et al. Nós que amávamos tanto O Capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo, Boitempo, 2017. [ Links ]
FILME
Nós que nos amávamos tanto. Itália. Dir: Ettore Scola, 1974.
Revista Estudos Avançados
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