Machado de Assis e sua crítica
Pedro Meira MonteiroI
IPrinceton University, Princeton, Estados Unidos.
GUIMARÃES, H. de S.. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
A circulação e a recepção dos textos de Machado de Assis são temas complexos. O mais canônico dos escritores nacionais é também um dos mais sintomáticos. Nele, estão cifradas as grandes questões que balizam a imaginação sobre o Brasil e sua literatura: regional e global, afrodescendente de inspiração europeia, criador de narradores que minam o seu próprio poder, ora explicando o país e sua complicada inserção mundial, ora parecendo distanciar-se dos limites nacionais. Machado de Assis não dorme em paz: seu corpo e sua memória são chamados a auxiliar as mais diferentes causas e, não raro, o escritor se converte num grande monumento escolar, embora em outras ocasiões esse Machado imaginário se mantenha calado, como uma esfinge que nos olhasse de cima.1
Existem estudos competentes sobre a recepção do autor, assim como longas listagens da interminável e muitas vezes inclassificável fortuna crítica machadiana. Contudo, faltava um estudo que desse conta não só das ondas da recepção - positiva ou negativa, admirada ou irritada, colada ao texto ou capaz dos mais extraordinários voos teóricos -, como também das figuras que vão se formando, à medida que a história lança novos e velhos reptos para a compreensão do autor carioca. Machado de Assis, o escritor que nos lê se impõe à crítica machadiana, por ter identificado e desenvolvido, com precisão e clareza, as inflexões "na percepção e no entendimento da construção de quatro figuras do autor, em que os estudos críticos são agentes e sintomas de transformações que muitas vezes extrapolam o âmbito literário" (p.14). Essas quatro figuras pontuam os quatro capítulos deste livro, que é a versão retrabalhada de uma tese de livre-docência defendida em 2013 na Universidade de São Paulo. São elas: (1) o primeiro Machado esquadrinhado pela crítica, ainda quando o criador do Brás Cubas vivia, no tempo em que Sílvio Romero e José Veríssimo esgrimiam em torno da qualidade e do caráter nacional do autor; (2) o mito nacional, que se confunde à constituição de uma esfera cultural própria da era Vargas, e em torno do qual se forja todo um novo vocabulário crítico; (3) o Machado de Assis "internacional", que começa a ser traduzido, entre outros idiomas, para o inglês, e que não se entende sem a importante virada interpretativa de Helen Caldwell; e (4) finalmente o Machado de Assis "realista", figura que convida à discussão da complexa relação do autor com seu tempo e seu local, plano em que se projetam os grandes debates que ainda hoje orientam os estudos machadianos.
Um dos muitos méritos de Machado de Assis, o escritor que nos lê está em revelar que alguns dos problemas que julgamos recentes estão mergulhados na longa duração, e muitas vezes estão já no nascedouro da crítica sobre Machado. No início do primeiro capítulo, por exemplo, ficamos sabendo que o desconcerto que a chamada segunda fase da ficção machadiana causa tem um antecedente na reflexão coeva daquilo que viria a identificar-se posteriormente como sua primeira fase. A suposta falta de atenção aos aspectos locais, ou a falta de "carnalidade" dos personagens, já eram apontadas pelos críticos da década de 1870, indicando que Machado de Assis seria, como várias vezes sugere este livro, percebido como um "corpo estranho" na paisagem literária brasileira. Podemos até nos perguntar se a questão de um Machado de Assis "afrodescendente" já não estava armada na percepção do "Doutor Fausto", que resenha nada menos que Ressurreição e vê, no romancista estreante, o impasse entre a "limpidez da escrita" e a origem pobre do autor "trigueiro" (p.26).
O primeiro capítulo mostra como, nos embates entre José Veríssimo e Sílvio Romero, e na posição menos extremada de Araripe Júnior, já se arma a tensão que atravessaria a leitura da obra machadiana, jogada, na imaginação crítica, entre o compromisso com o meio local e a inspiração estrangeira, que logo será associada ao humor de matriz inglesa. Um dos pontos fascinantes do estudo de Hélio Guimarães é como ele nota que, ao errar o alvo, os críticos por vezes acertavam nas questões. Assim, a virulenta crítica de Romero, que vê um Machado anacrônico e imitativo, fornece pasto para a crítica futura, que viria a dividir-se entre a detecção da forma social entranhada na ficção, as fontes literárias e filosóficas de corte universalista, até chegar às leituras mais abertamente comparativas. A investigação atenta do entorno crítico em que se foi publicando a obra machadiana revela, ademais, a preocupação do autor das Memórias póstumas de Brás Cubas em responder às leituras que se faziam de sua obra. Assim, Machado insiste na matriz inglesa, promovendo um rico deslizamento no gosto em geral francófilo do universo letrado brasileiro. Machado constitui uma figura de exceção justamente pelo "efeito equívoco" (p.64) de sua obra, que parece dar razão às interpretações mais diversas, por vezes mesmo opostas.
O segundo capítulo abrange a progressiva consagração do autor, desde o embaraço que o corpo estranho causou entre as hostes modernistas, até o surgimento de uma tríade que estabeleceria um novo plano interpretativo: Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira e Astrojildo Pereira. De formas diversas, a biografia explicava a literatura, mas eram também os mecanismos profundos de uma sociedade patriarcal que vinham à tona nas novas análises de Machado de Assis. Como que elevando a crítica anterior a novo patamar, e enfrentando a figura que incomodara ou espantara os modernistas, os novos críticos atribuíam, ao autor de Dom Casmurro, estatuto de criador genial, atento às armadilhas das paixões humanas e ao tecido social em que elas florescem. A excentricidade machadiana, com seu lugar deslocado na linhagem da literatura nacional, reencontrava agora explicações de ordem psicológica, e sua novidade seria compreendida a partir de um impasse existencial que foi por muito tempo associado à crise dos quarenta anos, com a célebre doença que levou Machado e Carolina a Nova Friburgo, de onde o autor regressaria com a ideia do seu Brás Cubas, afiado no mais lúcido estilo e numa inclemente visão da comédia humana. Nesse ponto, Hélio Guimarães é feliz ao mostrar que a crítica iniciada na década de 1930, quando a estátua de Machado (que fora erguida em 1929) começa a ganhar "movimento", forma o esteio da própria crítica contemporânea. É como se víssemos, pelas lentes do autor de Machado de Assis, o escritor que nos lê, Alfredo Bosi e Roberto Schwarz surgindo como leitores de Lúcia Miguel Pereira e Augusto Meyer - este último, como bem nota o autor desse estudo, bebera na crítica anterior de Alcides Maya, ao mesmo tempo em que corroía o "medalhão" em que Machado corria o risco de se converter.
O Estado Novo varguista encontrou, no Machado realçado pela crítica e já entronizado na década anterior, um corpo simbólico a ser trabalhado pelas políticas culturais. Aí se dá a monumentalização do autor mulato, homem do povo e genial, a ser reverenciado e tornado patrimônio, o que acontece em diversas frentes, incluindo a literatura pedagógica, que aliás amanharia o solo para a retomada cívica de Machado de Assis em outros contextos e meios, como no caso do cinema, ainda no primeiro período varguista, e da telenovela, já em plena ditadura militar, na década de 1970. O processo não se dava sem acidentes, é claro, como sugere o delicioso despacho de um secretário de Educação do Rio Grande do Sul, que em 1938 se negou a autorizar que uma escola pública fosse chamada "Machado de Assis", alegando que não caberia a uma instituição de ensino elementar incorporar o nome de um "fascinante inoculador de venenos sutis" (p.119). Mais uma vez: mesmo quando erram, os leitores críticos parecem acertar...
O terceiro capítulo, que me parece o mais cheio de provocações, pode ser lido como um discreto puxão de orelha na crítica especializada, que tende à autossuficiência e a certo sentimento de superioridade em relação àquilo que se produz às margens, incluída aí a crítica estrangeira. O caso paradigmático, que fornece eixo ao capítulo, é o de Helen Caldwell, autora de The Brazilian Othello of Machado de Assis, publicado em 1960 na Califórnia e traduzido ao português na década passada. Numa interpretação interessada dos modelos clássicos que estariam operando na feitura de Dom Casmurro - especialmente o seu intertexto shakespeariano - a crítica norte-americana, como se sabe, gira a bússola e passa a defender o reverso do que havia por tanto tempo sido aceito: a culpa de Capitu. Os leitores de Machado de Assis notarão, ao ler esse capítulo, que a ambiguidade de Capitu, e mesmo o narrador não confiável que tanto renderia na crítica posterior, já estão prefigurados em algumas intervenções isoladas, anteriores à década de 1960, mas que demorariam a se cristalizar numa leitura amplamente reconhecida. O silêncio em relação à ruidosa tese de Caldwell é eloquente, e está todo no livro que Eugênio Gomes publicou em 1967, O enigma de Capitu, que pode ser visto como uma resposta à crítica norte-americana, sem contudo citá-la. Mas por que os ciúmes de Bento Santiago seriam mantidos debaixo do tapete por tanto tempo? O autor de Machado de Assis, o escritor que nos lê responde:
Talvez porque apenas a partir da década de 1960, com todos os movimentos de contestação que eclodiram no Ocidente, a desconfiança em relação à autoridade do narrador e a hipótese de que Capitu não tivesse traído puderam ter alguma ressonância entre leitores que passaram a questionar os papéis tradicionais de homens e mulheres, as relações de gênero e o autoritarismo das estruturas sociais no Brasil e no mundo. (p.179)
Chega a ser engraçado, e um pouco embaraçoso, que em 1963 a Academia Brasileira de Letras tenha oferecido a Helen Caldwell uma medalha, que de fato nunca foi entregue. A má fortuna das reflexões de Caldwell seguiria firme, passaria pelas críticas de Wilson Martins, e seria relativizada por Silviano Santiago, já no final da década de 1960, quando a "verossimilhança" da narrativa é desconstruída, e a lente crítica é novamente voltada para as engrenagens sociais que condicionam a história contada por Bento Santiago, em que o ciúme desempenha papel central. A circulação machadiana para além do Brasil, deslanchada com as traduções dos anos 1950 ao inglês, se fortaleceria num jogo de leituras e leitores que incluem a própria Helen Caldwell, William Grossman, Waldo Frank e, mais tarde, Susan Sontag e Salman Rushdie, sem contar essa espécie de momento pop da carreira internacional de Machado de Assis, que mais recentemente descobriu-se ser um dos autores prediletos de Woody Allen.
A figuração do "autor realista" ocupa o quarto e último capítulo, que se inicia com uma espécie de genealogia que aponta para Lúcia Miguel Pereira e ganha densidade crítica em Raymundo Faoro, abrindo-se para as reflexões de Roberto Schwarz e John Gledson, cuja atenção ao tecido social entranhado no texto - seja como forma em sentido lukacsiano, no caso do primeiro, seja como alegoria histórica, no caso do segundo - lhes permite superar a noção mecanicista da literatura como reflexo, que estava no marxismo mais duro de Astrojildo Pereira. Já em Alfredo Bosi, o intencionalismo com que Schwarz e Gledson interpretam a construção dos narradores machadianos encontra um limite importante, que se explica no jogo de afastamento e aproximação que marcaria a mirada às vezes cruel, às vezes empática de personagens que resistiriam à tipificação a que tendem, nas análises de cunho mais estritamente histórico ou sociológico.
A figuração de um Machado "realista" é esmiuçada por Hélio Guimarães, que explicita o caráter político do projeto crítico de Schwarz anterior a 1964, que tem na denúncia do ponto de vista execrável dos narradores machadianos o seu ponto forte e talvez mais problemático, se dermos ouvidos às críticas que lhe endereça Bosi. Já Gledson ocupa lugar não menos importante no debate, ao atentar para a fatura da voz narrativa, sobretudo nos romances maduros. É uma pena que o panorama dessa figuração "realista" perca de vista, em especial quando se detém sobre a complexa questão da voz narrativa nas crônicas, as reflexões de Sidney Chalhoub, que parece escondido numa nota de rodapé. Mas a questão talvez mais importante está na relativa fixidez do ponto de vista daqueles que detectam, em Machado de Assis, a denúncia inapelável do patriarcalismo e do paternalismo brasileiros. A essa fixidez, Hélio Guimarães parece querer contrapor um ponto de vista mais fluido, erradio e indeterminado. Daí que a voz contrastante de Bosi ocupe um lugar ao mesmo tempo discreto e central no panorama. Aí se entende, também, que Abel Barros Baptista e Michael Wood apareçam como uma espécie de antídoto, não de todo nomeado, ao ponto de vista que quer encerrar o universo da significação em sentidos estáveis e inalteráveis. Entretanto, o próprio Gledson não é prontamente associado àquela fixidez, já que haveria algo de tridimensional em sua compreensão dos personagens, mas também dos leitores de Machado de Assis. Seja como for, esse livro mostra que o empenho hermenêutico que marcou a figuração de um Machado nacional e brasileiro, na década de 1930, segue firme e forte, embora encontre nas visões de Wood e de Barros Baptista um obstáculo, talvez mesmo um trampolim em que poderíamos nos sentir "no ar, antes de mergulhar", segundo o belo verso do cancioneiro popular, evocado à p.256.
Por fim, não resta dúvida de que este é um estudo fundamental. Pela sua clareza, mas também pelo equilíbrio com que acompanha a leitura da obra machadiana em seu movimento pela história, Machado de Assis, o escritor que nos lê é passo incontornável para compreender que o valor atribuído aos grandes autores é também uma invenção compartilhada.
Há um único detalhe, neste livro, que me põe a pensar no que talvez lhe falte. Acontece que, nele, o próprio Hélio Guimarães se encontra por vezes um tanto escondido, tímido talvez, como um narrador discreto que evita imiscuir-se à cena. Os leitores de Machado de Assis, o escritor que nos lê talvez deixem o livro, tão rico e cheio de novidades, com vontade de entender melhor onde está o próprio crítico que acabaram de ler: em quais redes se insere, como avança na leitura de sua própria geração e de seu próprio trabalho, onde se apoia, quando duvida e onde ousa escarnecer. Nem sempre vemos com clareza os seus caninos, com exceção, porventura, do terceiro capítulo e da crítica subliminar e diplomática à matriz determinista na interpretação de Machado, no quarto capítulo. É como se, ao evitar a mordida, ele inadvertidamente revelasse seu próprio tédio diante do embate rijo. Se correta essa minha suposição, trata-se de algo bastante curioso, já que a graça e o sabor da recepção da obra de Machado de Assis estão muitas vezes na defesa apaixonada das posições, como aliás este livro revela em abundância.
Mas afastar-se do bulício da crítica não será, no fim das contas, um derradeiro gesto machadiano, como se o único desejo fosse observar com calma o espetáculo das paixões, sem o qual nada neste mundo faz mesmo muito sentido?
NOTAS
1Como se lê numa resenha recente: "Sempre me impressionou a frequência com que Machado de Assis é chamado de ‘esfinge’. Imagino o gracioso bigode, sob o familiar pincenê, estampado na face da grande Esfinge a perscrutar o deserto. [...] Ao ler os intérpretes de Machado, tomamos emprestado o pincenê do mestre para sorrateiramente observar os mundos que eles habitam. A crítica literária imita a lenda: a resposta ao enigma da esfinge, quando vier, não será uma verdade do outro mundo, mas, sim, o próprio homem" (Flora Thomson-DeVeaux, Lendo a nós mesmos no reflexo de Machado, Quatro Cinco Um, maio 2017, p.24).
REFERÊNCIA
GUIMARÃES, H. de S. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
Revista Estudos Avançados
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