Edgar Salvadori de Decca
Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Caixa Postal 6110. 13081-970 Campinas — São Paulo — Brasil. edecca@terra.com.br
John Gray. Black mass
New York: Penguin Books, 2008. 352p.
Ele não é muito lido nas universidades brasileiras. Acho até que cometo um exagero. Ele não é sequer conhecido nos nossos meios universitários. Refiro-me a John Gray, filósofo da Universidade de Oxford e professor da London School of Economics, figura de destaque no mundo intelectual europeu e americano, considerado uma das inteligências mais brilhantes deste novo século XXI. Apesar de desconhecido entre nós universitários, há algum consolo diante de uma feliz constatação: a maioria dos livros de John Gray foi traduzida no Brasil e teve boa recepção. Para mencionar alguns livros importantes, quem aprecia sínteses filosóficas não deve deixar de ler o ensaio sobre Voltaire, da Editora da Unesp (1999), mas também o ensaio sobre Isaiah Berlin, publicado pela Difel (2000), onde esboça as suas críticas às utopias sociais, antecipando os contundentes ataques ao Cristianismo e ao Iluminismo presentes em seu mais novo livro, ainda inédito no Brasil, Black Mass. No ensaio sobre Voltaire mesclam-se as críticas contundentes à religião do Iluminismo e a sinceridade em valorizar a obra desse filósofo. As considerações de Gray sobre Voltaire são polêmicas, a ponto de concluir que: "a filosofia de Voltaire pouco tem a nos ensinar. O maior legado de Voltaire talvez seja o seu desdém pelas consolações da teodicéia — inclusive a do Iluminismo, que o guiou por toda a vida. A ambição voltairiana de ajudar a humanidade a ser um pouco menos miserável pode bem constituir a mais valiosa herança do Iluminismo" (Voltaire, p.54). Podemos reconhecer em Gray os traços característicos de Voltaire, porque apesar de ser também um herdeiro do Iluminismo, seus escritos têm um profundo desdém por uma filosofia que se consola ao reconhecer que apesar de todos os males, vivemos no melhor dos mundos possíveis.
Antes do seu mais recente ensaio filosófico, Gray já nos tinha brindado com obras de profundo conteúdo crítico, derrubando as ilusões de um mundo comandado por um mercado auto-regulado e baseado nos valores da democracia liberal. Há ainda o provocante livro Falso amanhecer (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1999), resposta a Fukuyama e à sua utopia do fim da história. No entanto, se essa ilusão utópica do Ocidente mereceu contundente crítica de John Gray, ainda não podíamos imaginar o que estava por vir, depois dos ataques às Torres Gêmeas de 11 de setembro. Num ensaio brilhante e ao mesmo tempo desconcertante, John Gray afasta do 11 de setembro as possíveis conotações tradicionais do islamismo e encara o terrorismo da Al Qaeda, como o produto mais recente da modernidade ocidental. Em um ensaio de forte impacto, John Gray esmiúça as tramas desse novo terrorismo sem fronteiras nacionais e anunciado já no título do livro, Al Qaeda e o que significa ser moderno, também publicado pela Record (2004). Suas conclusões não são nada animadoras, se considerarmos que o terrorismo da Al Qaeda, como o nazismo e o comunismo, pretende criar um novo mundo utópico através do terror. Trata-se, portanto, de uma nova capacidade de potencializar a violência em níveis jamais imaginados por outras épocas históricas anteriores à modernidade. Gray nos alerta, "Nenhuma época anterior acalentou projetos semelhantes. As câmaras de gás e os gulags são modernos. Há muitas maneiras de ser moderno, algumas delas monstruosas" (p.16).
Mas, antes de concluir esse preâmbulo e passar a expor alguns pontos inquietantes do novo livro, Black Mass (Missa Negra), não poderíamos deixar de mencionar a obra que o tornou conhecido em todo o mundo, inclusive no Brasil. Trata-se do ensaio filosófico intitulado Cachorros de palha (Ed. Record, 2005), onde o autor desfere um ataque verdadeiramente contundente contra a nossa ilusão antropocêntrica. Buscando a inspiração em poema de Lao Tsé que diz que o céu e a terra tratam miríades de criaturas como cachorros de palha, John Gray acredita que a terra irá também descartar o ser humano e que estamos em contagem regressiva desse processo. Para ele, qualquer crença no progresso humano é ilusória, e, ainda que possa haver progresso no conhecimento científico e tecnológico, pouco se pode esperar de qualquer tipo de progresso no plano da ética e da política, dado que uma hora ou outra todos esses avanços poderão tornar-se meios de destruição. O livro Cachorros de palha descarta as nossas ilusões sobre o livre-arbítrio e também, na esteira de Darwin, nos equipara a todos os outros animais, com a nossa incapacidade e impossibilidade de sermos donos de nosso próprio destino. Das crenças cristãs até o Iluminismo, ainda somos prisioneiros do livre-arbítrio e das doutrinas da salvação. A prova é que, já no início do século XXI, "o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas" (Cachorros de palha, p.3).
Esta visão pouco condescendente com o antropocentrismo, das origens no Cristianismo até sua principal herança filosófica, o Iluminismo, será a linha mestra do mais novo desafio de John Gray ao campo do pensamento filosófico e político da atualidade. Em Black Mass, há algo de muito mais inquietante e que já se anunciava de modo sutil nas obras anteriores do autor. Afinal, a "Missa Negra" é a versão satânica da missa cristã, e, com essa metáfora poderosa, Gray nos faz mergulhar no universo da utopia, tal como ela se anunciou desde o livro da Revelação, até as mais modernas visões apocalípticas da política. Ao contrário do que imaginamos, as utopias políticas modernas, segundo Gray, nada mais são do que modelos de idealização quiméricos da sociedade, que tiveram seu ponto de partida no Cristianismo. Na companhia de Gray, o leitor estará sempre se defrontando com a suas convicções e suas crenças, mesmo porque, aventurar-se na leitura de Black Mass é enfrentar o dilema de que a política moderna nada mais é do que uma variante da história da religião.
A leitura de Black Mass, além de desafiadora é também instigante e entremeada de nuances históricas, ao abordar a utopia desde as suas dimensões religiosas, como nas revelações bíblicas, passando pelo milenarismo medieval e chegando até as utopias políticas modernas, cuja matriz é a revolução francesa. No entanto, há um foco no livro de Gray que nos deixa em situação incômoda, a começar pelo seu primeiro capítulo, sobre a morte da utopia. Não há como não se incomodar com a constatação de que ao pensamento crítico não cabe mais se deixar levar por qualquer tipo de modelo de idealização da sociedade, porque, todas essas variantes da utopia nada mais são do que a revelação da enorme falácia humanística de que o homem é capaz de moldar o seu próprio destino e ter o controle do sentido da história. Essa crença utópica torna-se ainda mais perigosa, segundo Gray, quando constatamos que a maioria dos movimentos revolucionários modernos compartilha a crença de que a violência é uma força purificadora da história. Em outras palavras, tanto pela esquerda, como pela direita do espectro político moderno, a violência e o terror se apresentam como elementos capazes de liberar a história de suas opressões. Os anarquistas do século XIX, os bolcheviques como Lênin e Trotsky, os pensadores anticolonialistas como Frantz Fanon, os regimes de Mao e Pol-Pot, os grupos terroristas como Baaden Meinhof, os movimentos radicais islâmicos e os movimentos neoconservadores, todos eles se encantaram com as fantasias do poder libertador da violência realizado pela ação revolucionária na história. Assim também se comportaram os regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo de Hitler, Franco ou Mussolini, que acreditaram na violência como força libertadora da história. No entanto, se todas essas utopias nascidas na esteira do Iluminismo pareciam estar sucumbidas no final do século XX, mais aterrorizante é imaginar que a busca pela utopia tornou-se o objetivo principal e exclusivo de um capitalismo moderno de estilo americano. Essa nova utopia, comandada pelos Estados Unidos, tem o aval de muitos governos do Ocidente com a promessa de que no final dos dias o mundo estará dominado pela democracia de estilo americano, nem que para isso seja necessário destruir as bases de uma sociedade e de uma cultura, como está sendo realizado pelo exército americano no Iraque. As correntes conservadoras da direita política do mundo atual estão possuídas por fantasias e utopias de remodelação de sociedade, tanto como estiveram as correntes políticas de esquerdas no século XX. Apesar dos seus sucessos aparentes, essas utopias neoconservadoras, forjadas na violência e no terror, estão se transformando em pó, mais rapidamente do que os sonhos do comunismo e do nazismo do século XX.
Os desafios ao pensamento colocados pelo livro Black Mass não cabem nos limites de uma resenha. Mereceriam um amplo ensaio capaz de acompanhar todas implicações filosóficas e políticas contidas no conjunto de sua obra. Por ora, podemos nos contentar em ter diante de nós uma obra tão inspiradora e, ao mesmo tempo, tão polêmica. Dividido em cinco capítulos, Black Mass começa tratando da morte da utopia, deixando um sinal de alerta para a sua dimensão religiosa e apocalíptica, capaz de renascer onde nós acreditássemos que estivesse liquidada. O segundo capítulo é talvez o mais provocativo. Nele Gray investiga as dimensões religiosas da utopia laica do Iluminismo e extrapola o seu pensamento para as forças do terror e da violência na história. Dessa matriz de filosofia da história, Gray deriva tanto as utopias de esquerda como as de direita, não condescendendo com o comunismo nem com o nazismo e o fascismo, todos eles baseados no terror totalitário. No entanto, a novidade da obra está reservada para os três últimos capítulos, onde o autor se dedica à análise da nova utopia neoconservadora e à americanização do apocalipse, principalmente depois dos acontecimentos do 11 de setembro, culminando com a invasão do Afeganistão e do Iraque.
No entanto, se vivemos esse dilema do fim da utopia, sem com isso dizer que estamos no fim da história, que lições nos deixa, afinal de contas, esse livro tão perturbador? Sua lição não é muito construtiva, mesmo porque, Gray não é adepto da filosofia do progresso. Muito pelo contrário, a rejeita, porque não acredita que possa haver qualquer progresso humano na moral e na ética, mesmo com os enormes avanços científicos e tecnológicos hoje disponíveis. Aliás, esse progresso científico e tecnológico não nos trouxe nenhuma garantia, porque os homens poderão utilizá-lo para fins de destruição. Apenas uma certeza fica subjacente ao final da leitura de um livro tão provocativo: se a utopia é apenas um capítulo da história da religião, não devemos menosprezar essa primeira necessidade humana. Afinal, desses embates de crenças religiosas é que nasceram tanto as vertentes místicas como as vertentes seculares da utopia.
Assim, chegamos ao fim desta resenha, com um indisfarçável ceticismo no que se refere à natureza humana. Afinal, segundo Gray, somos tão donos de nosso destino, como qualquer outro animal que habita este mundo. Para enfrentar esse impasse, Gray nos propõe um retorno ao realismo na política, depois de dois séculos de fracassos da religião secular do progresso. Mas de um realismo político sem posturas conservadoras. O mito de um final feliz cristão e o mito secular, herdado do Iluminismo, de se construir uma sociedade conciliada consigo mesma, já causaram enormes prejuízos e ainda podem causar danos muito maiores. Isso nos leva à conclusão de que a política não é um veículo para projetos universais, mas uma peculiar "arte de responder ao fluxo das circunstâncias". Segundo Gray, essa percepção não requer uma visão muito abrangente do avanço da humanidade, requer apenas a coragem de saber lidar com os males do mundo. Afinal, esse opaco estado de guerra no qual a humanidade se meteu é apenas um desses males. Ao fecharmos o livro Black Mass, resta-nos ainda uma indagação e um desconforto: será possível vivermos neste mundo, sem o elixir das utopias?
Revista Brasileira de História
Pesquisador do CNPq — Depto. de História, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Caixa Postal 6110. 13081-970 Campinas — São Paulo — Brasil. edecca@terra.com.br
John Gray. Black mass
New York: Penguin Books, 2008. 352p.
Ele não é muito lido nas universidades brasileiras. Acho até que cometo um exagero. Ele não é sequer conhecido nos nossos meios universitários. Refiro-me a John Gray, filósofo da Universidade de Oxford e professor da London School of Economics, figura de destaque no mundo intelectual europeu e americano, considerado uma das inteligências mais brilhantes deste novo século XXI. Apesar de desconhecido entre nós universitários, há algum consolo diante de uma feliz constatação: a maioria dos livros de John Gray foi traduzida no Brasil e teve boa recepção. Para mencionar alguns livros importantes, quem aprecia sínteses filosóficas não deve deixar de ler o ensaio sobre Voltaire, da Editora da Unesp (1999), mas também o ensaio sobre Isaiah Berlin, publicado pela Difel (2000), onde esboça as suas críticas às utopias sociais, antecipando os contundentes ataques ao Cristianismo e ao Iluminismo presentes em seu mais novo livro, ainda inédito no Brasil, Black Mass. No ensaio sobre Voltaire mesclam-se as críticas contundentes à religião do Iluminismo e a sinceridade em valorizar a obra desse filósofo. As considerações de Gray sobre Voltaire são polêmicas, a ponto de concluir que: "a filosofia de Voltaire pouco tem a nos ensinar. O maior legado de Voltaire talvez seja o seu desdém pelas consolações da teodicéia — inclusive a do Iluminismo, que o guiou por toda a vida. A ambição voltairiana de ajudar a humanidade a ser um pouco menos miserável pode bem constituir a mais valiosa herança do Iluminismo" (Voltaire, p.54). Podemos reconhecer em Gray os traços característicos de Voltaire, porque apesar de ser também um herdeiro do Iluminismo, seus escritos têm um profundo desdém por uma filosofia que se consola ao reconhecer que apesar de todos os males, vivemos no melhor dos mundos possíveis.
Antes do seu mais recente ensaio filosófico, Gray já nos tinha brindado com obras de profundo conteúdo crítico, derrubando as ilusões de um mundo comandado por um mercado auto-regulado e baseado nos valores da democracia liberal. Há ainda o provocante livro Falso amanhecer (Ed. Record, Rio de Janeiro, 1999), resposta a Fukuyama e à sua utopia do fim da história. No entanto, se essa ilusão utópica do Ocidente mereceu contundente crítica de John Gray, ainda não podíamos imaginar o que estava por vir, depois dos ataques às Torres Gêmeas de 11 de setembro. Num ensaio brilhante e ao mesmo tempo desconcertante, John Gray afasta do 11 de setembro as possíveis conotações tradicionais do islamismo e encara o terrorismo da Al Qaeda, como o produto mais recente da modernidade ocidental. Em um ensaio de forte impacto, John Gray esmiúça as tramas desse novo terrorismo sem fronteiras nacionais e anunciado já no título do livro, Al Qaeda e o que significa ser moderno, também publicado pela Record (2004). Suas conclusões não são nada animadoras, se considerarmos que o terrorismo da Al Qaeda, como o nazismo e o comunismo, pretende criar um novo mundo utópico através do terror. Trata-se, portanto, de uma nova capacidade de potencializar a violência em níveis jamais imaginados por outras épocas históricas anteriores à modernidade. Gray nos alerta, "Nenhuma época anterior acalentou projetos semelhantes. As câmaras de gás e os gulags são modernos. Há muitas maneiras de ser moderno, algumas delas monstruosas" (p.16).
Mas, antes de concluir esse preâmbulo e passar a expor alguns pontos inquietantes do novo livro, Black Mass (Missa Negra), não poderíamos deixar de mencionar a obra que o tornou conhecido em todo o mundo, inclusive no Brasil. Trata-se do ensaio filosófico intitulado Cachorros de palha (Ed. Record, 2005), onde o autor desfere um ataque verdadeiramente contundente contra a nossa ilusão antropocêntrica. Buscando a inspiração em poema de Lao Tsé que diz que o céu e a terra tratam miríades de criaturas como cachorros de palha, John Gray acredita que a terra irá também descartar o ser humano e que estamos em contagem regressiva desse processo. Para ele, qualquer crença no progresso humano é ilusória, e, ainda que possa haver progresso no conhecimento científico e tecnológico, pouco se pode esperar de qualquer tipo de progresso no plano da ética e da política, dado que uma hora ou outra todos esses avanços poderão tornar-se meios de destruição. O livro Cachorros de palha descarta as nossas ilusões sobre o livre-arbítrio e também, na esteira de Darwin, nos equipara a todos os outros animais, com a nossa incapacidade e impossibilidade de sermos donos de nosso próprio destino. Das crenças cristãs até o Iluminismo, ainda somos prisioneiros do livre-arbítrio e das doutrinas da salvação. A prova é que, já no início do século XXI, "o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro têm muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas" (Cachorros de palha, p.3).
Esta visão pouco condescendente com o antropocentrismo, das origens no Cristianismo até sua principal herança filosófica, o Iluminismo, será a linha mestra do mais novo desafio de John Gray ao campo do pensamento filosófico e político da atualidade. Em Black Mass, há algo de muito mais inquietante e que já se anunciava de modo sutil nas obras anteriores do autor. Afinal, a "Missa Negra" é a versão satânica da missa cristã, e, com essa metáfora poderosa, Gray nos faz mergulhar no universo da utopia, tal como ela se anunciou desde o livro da Revelação, até as mais modernas visões apocalípticas da política. Ao contrário do que imaginamos, as utopias políticas modernas, segundo Gray, nada mais são do que modelos de idealização quiméricos da sociedade, que tiveram seu ponto de partida no Cristianismo. Na companhia de Gray, o leitor estará sempre se defrontando com a suas convicções e suas crenças, mesmo porque, aventurar-se na leitura de Black Mass é enfrentar o dilema de que a política moderna nada mais é do que uma variante da história da religião.
A leitura de Black Mass, além de desafiadora é também instigante e entremeada de nuances históricas, ao abordar a utopia desde as suas dimensões religiosas, como nas revelações bíblicas, passando pelo milenarismo medieval e chegando até as utopias políticas modernas, cuja matriz é a revolução francesa. No entanto, há um foco no livro de Gray que nos deixa em situação incômoda, a começar pelo seu primeiro capítulo, sobre a morte da utopia. Não há como não se incomodar com a constatação de que ao pensamento crítico não cabe mais se deixar levar por qualquer tipo de modelo de idealização da sociedade, porque, todas essas variantes da utopia nada mais são do que a revelação da enorme falácia humanística de que o homem é capaz de moldar o seu próprio destino e ter o controle do sentido da história. Essa crença utópica torna-se ainda mais perigosa, segundo Gray, quando constatamos que a maioria dos movimentos revolucionários modernos compartilha a crença de que a violência é uma força purificadora da história. Em outras palavras, tanto pela esquerda, como pela direita do espectro político moderno, a violência e o terror se apresentam como elementos capazes de liberar a história de suas opressões. Os anarquistas do século XIX, os bolcheviques como Lênin e Trotsky, os pensadores anticolonialistas como Frantz Fanon, os regimes de Mao e Pol-Pot, os grupos terroristas como Baaden Meinhof, os movimentos radicais islâmicos e os movimentos neoconservadores, todos eles se encantaram com as fantasias do poder libertador da violência realizado pela ação revolucionária na história. Assim também se comportaram os regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo de Hitler, Franco ou Mussolini, que acreditaram na violência como força libertadora da história. No entanto, se todas essas utopias nascidas na esteira do Iluminismo pareciam estar sucumbidas no final do século XX, mais aterrorizante é imaginar que a busca pela utopia tornou-se o objetivo principal e exclusivo de um capitalismo moderno de estilo americano. Essa nova utopia, comandada pelos Estados Unidos, tem o aval de muitos governos do Ocidente com a promessa de que no final dos dias o mundo estará dominado pela democracia de estilo americano, nem que para isso seja necessário destruir as bases de uma sociedade e de uma cultura, como está sendo realizado pelo exército americano no Iraque. As correntes conservadoras da direita política do mundo atual estão possuídas por fantasias e utopias de remodelação de sociedade, tanto como estiveram as correntes políticas de esquerdas no século XX. Apesar dos seus sucessos aparentes, essas utopias neoconservadoras, forjadas na violência e no terror, estão se transformando em pó, mais rapidamente do que os sonhos do comunismo e do nazismo do século XX.
Os desafios ao pensamento colocados pelo livro Black Mass não cabem nos limites de uma resenha. Mereceriam um amplo ensaio capaz de acompanhar todas implicações filosóficas e políticas contidas no conjunto de sua obra. Por ora, podemos nos contentar em ter diante de nós uma obra tão inspiradora e, ao mesmo tempo, tão polêmica. Dividido em cinco capítulos, Black Mass começa tratando da morte da utopia, deixando um sinal de alerta para a sua dimensão religiosa e apocalíptica, capaz de renascer onde nós acreditássemos que estivesse liquidada. O segundo capítulo é talvez o mais provocativo. Nele Gray investiga as dimensões religiosas da utopia laica do Iluminismo e extrapola o seu pensamento para as forças do terror e da violência na história. Dessa matriz de filosofia da história, Gray deriva tanto as utopias de esquerda como as de direita, não condescendendo com o comunismo nem com o nazismo e o fascismo, todos eles baseados no terror totalitário. No entanto, a novidade da obra está reservada para os três últimos capítulos, onde o autor se dedica à análise da nova utopia neoconservadora e à americanização do apocalipse, principalmente depois dos acontecimentos do 11 de setembro, culminando com a invasão do Afeganistão e do Iraque.
No entanto, se vivemos esse dilema do fim da utopia, sem com isso dizer que estamos no fim da história, que lições nos deixa, afinal de contas, esse livro tão perturbador? Sua lição não é muito construtiva, mesmo porque, Gray não é adepto da filosofia do progresso. Muito pelo contrário, a rejeita, porque não acredita que possa haver qualquer progresso humano na moral e na ética, mesmo com os enormes avanços científicos e tecnológicos hoje disponíveis. Aliás, esse progresso científico e tecnológico não nos trouxe nenhuma garantia, porque os homens poderão utilizá-lo para fins de destruição. Apenas uma certeza fica subjacente ao final da leitura de um livro tão provocativo: se a utopia é apenas um capítulo da história da religião, não devemos menosprezar essa primeira necessidade humana. Afinal, desses embates de crenças religiosas é que nasceram tanto as vertentes místicas como as vertentes seculares da utopia.
Assim, chegamos ao fim desta resenha, com um indisfarçável ceticismo no que se refere à natureza humana. Afinal, segundo Gray, somos tão donos de nosso destino, como qualquer outro animal que habita este mundo. Para enfrentar esse impasse, Gray nos propõe um retorno ao realismo na política, depois de dois séculos de fracassos da religião secular do progresso. Mas de um realismo político sem posturas conservadoras. O mito de um final feliz cristão e o mito secular, herdado do Iluminismo, de se construir uma sociedade conciliada consigo mesma, já causaram enormes prejuízos e ainda podem causar danos muito maiores. Isso nos leva à conclusão de que a política não é um veículo para projetos universais, mas uma peculiar "arte de responder ao fluxo das circunstâncias". Segundo Gray, essa percepção não requer uma visão muito abrangente do avanço da humanidade, requer apenas a coragem de saber lidar com os males do mundo. Afinal, esse opaco estado de guerra no qual a humanidade se meteu é apenas um desses males. Ao fecharmos o livro Black Mass, resta-nos ainda uma indagação e um desconforto: será possível vivermos neste mundo, sem o elixir das utopias?
Revista Brasileira de História
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