quarta-feira, 28 de março de 2012

História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional



Sílvia Regina Ferraz Petersen
Pesquisadora do CNPq — Depto. de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — Av. Bento Gonçalves, 9500. 91509-900 Porto Alegre — RS — Brasil. spetersen@orion.ufrgs.br

Regina Célia Lima Xavier (Org.) História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico
Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007. 392p.

O guia bibliográfico História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional, organizado por Regina Célia Lima Xavier e que resultou de um projeto premiado pelo concurso "Memória do Trabalho no Brasil" (Petrobrás/MinC, CPDoc da FGV e Ministério do Trabalho e Emprego), é uma obra ímpar na historiografia brasileira. Pertence àquela linhagem de trabalhos absolutamente indispensáveis para promover e renovar a produção do conhecimento histórico em um determinado 'território' e que, pelos serviços que prestam aos pesquisadores, merecem todo destaque e divulgação.

Neste caso, trata-se de um levantamento exaustivo de fontes bibliográficas (com os respectivos resumos) sobre a temática, precedido por uma sólida abordagem analítica de referências teóricas, problemáticas, temas e debates que orientaram e vêm orientando os estudos sobre a escravidão no Brasil Meridional. Dentro desse cenário de análise historiográfica, examina as principais tendências da produção dos historiadores sul-riograndenses que trabalharam esses temas e questões. Oferece assim ao leitor uma oportuna contribuição sobre o 'estado da arte' em um tema que vem agregando cada vez maior número de pesquisadores no Brasil e no sul do Brasil em particular.

Ainda que a autora classifique esta análise historiográfica como "breve e introdutória", seu texto é bem mais que uma introdução, não só pelo rigor com que é apresentado, mas também pelo fato de que não existia até agora um trabalho mais específico, que abordasse de forma sistemática e desde a perspectiva historiográfica, o tema da escravidão e da liberdade no Rio Grande do Sul.

Certamente a qualidade deste trabalho presta tributo à trajetória intelectual da autora, que vem de longa data se dedicando ao estudo da escravidão e da liberdade no Brasil, especialmente desde sua dissertação de mestrado desenvolvida na Unicamp.1

Quanto ao repertório bibliográfico que é objeto da obra, ele inclui livros, dissertações, teses, artigos e resumos de trabalhos apresentados em congressos acadêmicos, totalizando 851 títulos que abrangem o período compreendido entre meados do século XIX e o ano de 2006.

Esses trabalhos estão agrupados em blocos ou itens classificatórios, cujos títulos já oferecem ao leitor um sugestivo elenco temático que ultrapassa amplamente os enfoques tradicionais sobre a história da escravidão e da liberdade no Brasil meridional: "Dados populacionais, étnicos e questões raciais"; "Participação dos escravos em conflitos militares"; "Trajetórias de vida e experiências cotidianas"; "Trabalho escravo; movimentos sociais: fugas, quilombos, insurreições e crimes"; "Cultura; Afro-descendentes no pós-abolição"; "Família escrava"; "Aspectos jurídicos"; "Abolições e processo de emancipação"; "Economia"; "Tráfico" e "Reflexões historiográficas". Um último bloco reúne os resumos de apresentações em eventos.

O livro também expõe com muita clareza os critérios que presidiram a seleção da bibliografia (as razões, por exemplo, de não haver incluído obras literárias ou artigos de jornais e revistas de grande circulação), a elaboração dos resumos, os blocos em que as obras foram agrupadas etc. Um índice dos autores e uma lista de siglas completam esta preocupação de orientar o leitor na consulta da obra.

A partir destas observações, é fácil concluir que o Guia atenderá aos objetivos a que se propõe:

Primeiro, deve estimular pesquisas inovadoras sobre o tema da escravidão, uma vez que evidencia as temáticas que foram mais desenvolvidas e aquelas mais carentes de estudos; proporciona uma percepção sobre o uso de fontes e formas de abordagem; assinala as regiões geográficas mais favorecidas nas pesquisas; abre a possibilidade de se pensar as semelhanças entre os Estados do Sul e suas experiências escravistas; por fim, o guia pode ainda explicitar as lacunas existentes e incentivar a renovação e o aprofundamento das pesquisas. Em segundo lugar, deve instigar estudos de cunho historiográfico. (p.11-12)

Trabalhos como o de Regina Xavier nos levam à constatação de que certas afirmações repetidas sem muita crítica ao longo dos anos são apressadas e não resistem às evidências demonstradas por um livro este. Neste caso estão a situação quase residual da escravidão no Rio Grande do Sul, a democracia racial dos pampas, a concentração do trabalho escravo em regiões específicas e o caráter antieconômico da escravidão.

Através dos agradecimentos que a autora faz na Introdução aos numerosos alunos — bolsistas ou voluntários — e aos professores que proporcionaram informações sobre obras de difícil localização, o leitor vislumbra o cuidado em realizar um levantamento exaustivo, que levou a equipe a se embrenhar por três anos nas mais diversas bibliotecas, em arquivos e acervos de todo tipo e depois produzir resumos muito apropriados sobre o conteúdo dos textos, trabalho este que implica extraordinária economia de tempo e esforço para os que consultarem o livro. Uma obra de referência desta envergadura é verdadeiramente uma preciosidade para os pesquisadores.

No entanto, é preciso insistir, o livro de Regina Xavier não é apenas um guia bibliográfico, o que já justificaria plenamente sua publicação. Mais do que isto, como antecipei, a autora realiza também uma pioneira análise historiográfica da produção sul-riograndense sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes.

O espaço de uma resenha não permite que eu refaça aqui o caminho que ela percorreu em sua análise, na qual comenta as características da abordagem desses autores, a começar pelas Memórias ecônomo-políticas de Gonçalves Chaves, escritas entre 1817 e 1823, um dos primeiros textos antiescravistas que se conhece no sul do Brasil. Também coloca historiadores rio-grandenses como Emílio de Souza Docca e Dante de Laytano em diálogo com as conjunturas históricas das décadas de 1930 a 1950, em que suas obras foram produzidas, e com os vários debates que se desenvolveram no centro do país — onde a referência obrigatória é Gilberto Freyre — e na Europa sobre o racismo e o conceito de raça, sua definição biológica ou cultural, sobre o papel das diferentes raças na construção da nacionalidade. Na década de 1960, esses debates têm por referência as transformações estruturais da sociedade brasileira, a passagem da sociedade tradicional escravista para a sociedade moderna capitalista, e um dos expoentes dessa perspectiva analítica foi Fernando Henrique Cardoso, com cujo trabalho dialogou no Rio Grande do Sul, entre outros, Mario Maestri Filho. A obra de Cardoso suscitou, no entanto, numerosos debates e experimentou muitas refutações através das pesquisas de Paulo Zarth e Helen Osório, para citar os mais conhecidos, que têm revisado, desde vários ângulos, a importância e o significado do trabalho escravo no Rio Grande do Sul.

A autora comenta, também, os trabalhos muito diversificados que se voltaram, nas décadas recentes, para valorizar a experiência dos escravos, seu cotidiano e sua religiosidade, e neste alargamento temático, proporcionado em boa medida pela pesquisa vinculada ao crescimento dos cursos de pós-graduação, também se incluem investigações sobre o tema do trabalho escravo na pecuária e na cidade. Paulo Zarth, Helen Osório e Paulo Moreira são timoneiros dessa nova historiografia no Rio Grande do Sul.

Na conclusão deste panorama analítico referente ao conhecimento produzido sobre a presença do escravo africano e de seus descendentes no Rio Grande do Sul, a autora também faz um diagnóstico que aponta rumos para as futuras pesquisas:

muito resta por ser aprofundado: na análise das próprias obras citadas nesta Introdução ou o contexto de suas formulações; na relação dessas obras com seus interlocutores, entre outros aspectos. Certamente é preciso tecer considerações mais abrangentes sobre toda esta produção arrolada, privilegiando a perspectiva comparativa. Neste caso, aguardam-se estudos mais sistemáticos que relacionem, por exemplo, a experiência do Rio Grande do Sul com aquela de Santa Catarina e do Paraná. Enfim, longe de esgotar o tema, o panorama citado acima tem o intuito de demonstrar a potencialidade e a importância dos estudos historiográficos. (p.40)

Concluindo, quero reafirmar que a impecável análise historiográfica introdutória, o rigor da pesquisa realizada e o alentado número de obras que integram este livro de Regina Xavier fazem dele um excelente exemplo da qualidade que os historiadores e historiadoras brasileiros da recente geração vêm imprimindo aos seus trabalhos, atestando a vitalidade do conhecimento histórico em nosso país.

NOTAS
1 Sua dissertação de mestrado foi publicada pela Editora da Unicamp em 1997, com o título A conquista da liberdade; a tese de doutorado foi publicada em 2008 pela Editora da Universidade/UFRGS e pelo IFCH, com o título Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito.
Revista Brasileira de História

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