A comédia do mundo
Luiz Roberto Monzani
LUÍS ROBERTO SALINAS FORTES
este livro sobre a obra de Rousseau é ousado e brilhante. Sem usar os velhos e gastos recursos, que comumente são utilizados para a leitura do autor -escritos de juventude versus escritos de maturidade, análise psicológica ou psicanalítica etc.-, Salinas procura mostrar, mediante uma rigorosa leitura interna, a coerência do discurso rousseauniano. E sua sólida argumentação acaba convencendo o leitor.
Seu ponto de partida é a insistência de Rousseau na metáfora cênica ou espetacular: o mundo como cena ou teatro. Se a figura é um lugar-comum na literatura e na filosofia, Salinas mostra que, no caso de Rousseau, ela deve ser levada a sério; como ele mesmo diz, o leitor "logo desconfia não se achar, nesse caso, simplesmente diante de um cacoete da moda, de uma cláusula de estilo". Na verdade, todo o esforço de Salinas é mostrar que essa analogia exprime "o núcleo mais essencial desse pensamento", na forma de uma estrutura paradoxal.
Por isso mesmo, como nota o apresentador do livro, a "Carta a D'Alembert" passa a ter uma importância central para a análise de Salinas.
Partindo de um estudo hoje clássico, de Bento Prado Jr. (1), nosso autor concorda com o juízo emitido por este último quando diz que, segundo Rousseau, "o mal profundo que corrói o teatro francês (mas não todo espetáculo em geral), não é de natureza metafísica, mas de ordem histórica". Entretanto, pergunta imediatamente Salinas, "não seria a própria 'história' um 'mal' de natureza 'espetacular'?", já que ela é, para Rousseau, o lugar privilegiado da "perversão representativa"? Daí porque a crítica ao teatro francês só possa ser plenamente entendida -assim como o elogio que Rousseau faz da festa- se se tomar como eixo esse distanciamento crescente que foi produzido na história. O que implica analisar detidamente o estatuto da representação em Rousseau. Daí o plano do livro: análise da representação, como ela incide no mundo sociopolítico e, por fim, a crítica que Rousseau elabora a respeito do teatro.
Seria impossível para mim, nos limites desta resenha, ressaltar todas as análises minuciosamente elaboradas por Salinas, que têm como resultado a dissolução das tão faladas e famigeradas contradições de Rousseau. Limitar-me-ei aqui a indicar, nas suas linhas gerais, o percurso trilhado pelo autor.
Para se perceber melhor esse itinerário é bom ter em mente que a natureza é, para Rousseau, um ponto de fusão, de imediatidade que aponta para a negação de qualquer mediação. Sendo assim, é algo impensável, na medida em que, para pensar, já é necessária a mediação da representação. Ela funciona muito mais como uma idéia reguladora no sentido kantiano. O distanciamento se introduz na passagem -mítica- do estado de natureza para o estado de cultura ou de sociedade. É nesse momento que o homem se separa de si mesmo, se exterioriza e abre o caminho da alienação.
Pode-se, portanto, ter uma distância mínima -caso dos homens primitivos que se reuniam ao pé de uma árvore para dançar e cantar-, que seria o estado mais feliz da humanidade, ou pode-se ter uma distância que se aproxima do máximo -caso da sociedade francesa do século 18, onde a cisão entre dizer e agir, ser e parecer, está quase em sua apoteose.
Sendo assim, e Salinas insiste muito neste ponto, a ordem natural serve como uma escala mediante a qual podem-se medir progressivamente os diferentes estados da sociedade, da cultura, das artes etc., na medida em que se distanciam mais ou menos desse paradigma. Trata-se da instituição de uma "arte da medida", como salienta com propriedade Franklin de Matos na sua apresentação do texto ou, como diz Salinas: "A operação essencial a que se dedica a razão é então uma operação de medida (...) e, a partir do momento em que o homem-animal ultrapassa a primitiva condição de simbiose, dentro da qual a adequação à ordem universal se fazia de modo espontâneo, o recurso à razão e o esforço 'dialético' tornam-se a via indispensável".
A partir desse princípio torna-se possível ordenar todo o discurso de Rousseau, e suas "contradições" tornam-se apenas um efeito de superfície. Falei, há pouco, em dissolução das contradições. Mas não entendamos a expressão no sentido hegeliano e, sim, mediante a aplicação dessa escala. Por exemplo, no campo político, sabemos qual a forma mais perfeita de governo. Mas essa forma implica em certas condições -desde o tamanho do Estado-, que nem sempre são possíveis de serem realizadas.
Os diferentes Estados serão julgados segundo essa escala de "um mínimo a um máximo de representação". A discussão política será realizada naquele Estado não onde não haja representação -algo impossível-, mas onde, "na medida do possível, o sujeito seja cidadão, isto é, tenha existência na cidade".
Da mesma forma, Rousseau pode condenar certos tipos de espetáculo (como o teatro francês) como inadequados para certas sociedades (Genebra) porque se trata sempre de examinar as condições em que se pode dar um "ótimo". Mas esse "ótimo" não é o mesmo para todas as sociedades. Ou, como diz Rousseau, num texto célebre: "O homem é uno, admito; mas o homem modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos costumes, pelos preconceitos e pelos climas torna-se tão diferente de si mesmo que agora já não devemos procurar o que é bom para os homens em geral e sim o que é bom para eles em tal tempo e em tal lugar" (2). Por isso também Rousseau pode criticar o teatro e fazer o elogio da festa, pois a "métrica" me ensina que o segundo tipo de espetáculo está mais distante das armadilhas e perigos da representação.
Pelo que disse até agora, acredito que o leitor concordará comigo que o estudo de Salinas tem o enorme atributo de ser indispensável.
Notas
1. Prado Jr., Bento - "Gênese e Estrutura dos Espetáculos", in "Estudos Cebrap", nº 14, 1975, págs. 5-34.
2. Rousseau - "Carta a D'Alembert", citado por Salinas, pág. 154.
Luiz R. Monzani é professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor convidado da Universidade Federal de São Carlos.
Folha de São Paulo
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