Segregação urbana
Regina Meyer
O civitas! O mores!"
Hoje, quando as questões subjetivas de percepção, de visualidade, de vivência do espaço urbano tornaram-se tão dominantes no campo dos estudos urbanos e do urbanismo, é da maior importância a publicação de um livro que aborda o decisivo, e muitas vezes opaco, papel da legislação urbanística na consolidação da cidade de São Paulo desde seus primórdios.
As questões centrais do livro de R. Rolnik nascem do choque entre as práticas de gestão instauradas desde o início do século na cidade de São Paulo e a intenção de promover rupturas no modo de planejar e regrar o processo urbano, a partir do trato direto com a cidade real (vivido pela autora na gestão do PT, de 1988 a 1991). A dureza dos obstáculos enfrentados, a fim de se introduzirem novas regras no processo de construção da cidade, exigiu uma reflexão sobre sua constituição histórica.
Ir à gênese das questões torna-se condição estratégica. Impõe-se conjugar pesquisa da história urbana e planejamento da cidade. O núcleo do livro é constituído pela pergunta: "É possível um novo pacto territorial, tendo em vista a história da urbanização paulistana e o papel do poder público na ocupação do solo?".
No campo dos estudos urbanos, desde a década de 60, a análise dos mapas e levantamentos cadastrais evidencia que as modificações na estrutura fundiária urbana de São Paulo, sobretudo depois dos anos 20, indicavam o aparecimento de uma burguesia urbana e de uma progressiva concentração do capital na cidade. O livro, com argumentos e dados, revela a forte atuação do poder público municipal a serviço dos interesses burgueses, recorrendo a instrumentos legais que teceram, neste século, uma ordem urbanística específica. Essa ação normativa, concretizada na legislação paulistana, aponta a lógica da urbanização. Uma intensa ação legal criou uma cidade dual, na realidade e na legislação: centro e periferia, legal e ilegal, regular e irregular, oficial e clandestino... E, a partir da Lei de Zoneamento de 1972, emerge mais um binômio: a cidade preservada e a cidade relegada.
Com este recorte temporal, a autora esclarece o partido da análise. O arco temporal, que vai do Código de Posturas Municipais de 1886 a 1936, ano da promulgação da primeira anistia geral das construções irregulares da cidade, descreve o processo de urbanização. Neste processo, as necessidades da acumulação do embrionário capitalismo paulistano são plenamente atendidas por uma legislação que combinava a construção da cidade "oficial"-onde convinha manter um mínimo de ordem, indispensável à expansão da pequena economia industrial- e a consolidação de espaço destinado à moradia operária, instalado fora do contexto legal, onde a ausência de qualquer regra de uso e ocupação do solo urbano criou um espaço de precariedade absoluta.
A participação do poder público na organização do primeiro surto industrial paulistano foi decisiva na medida em que "barateou" de forma radical o custo do produto mais essencial para a reprodução da classe operária: a moradia. As leis que a autora percorre, ao longo desse primeiro período, mostram como, passo a passo, estruturou-se uma cidade industrial onde o espaço habitacional da classe trabalhadora foi produzido dentro de uma estratégica política urbana, ditada pelos interesses do capital industrial e implementada pelo poder público municipal.
Construído sem assistência e proteção de qualquer legislação, o espaço dos pobres em São Paulo nasceu bastardo, sem títulos e sem direitos. Nessa condição, desde o início "liberou" o poder público de qualquer investimento em serviços urbanos; favoreceu a atividade imobiliária que agiu sem restrições e, acima de tudo, assegurou a presença do contingente de trabalhadores que o recém-iniciado processo industrial demandava, sem que esse tivesse que arcar com nenhum custo complementar para a reprodução da força de trabalho.
A excessiva ênfase que se coloca frequentemente no papel do agente especulador, cuja ação na produção dos loteamentos clandestinos deve, sob todos os pontos de vista, ser classificada como criminosa, é reavaliada sob um outro prisma. Embora alguns autores já o tenham apontado, fica claro que o especulador era uma das partes de um esquema pluriarticulado que atendia, acima de tudo, aos interesses da nova burguesia industrial.
A "desordem urbana", falsamente atribuída à ausência de uma legislação urbanística, seria o resultado de uma ação deliberada, em que a promulgação sistemática de anistias gerais às construções irregulares fixava um último elo na cadeia lógica da construção da cidade nos termos do capitalismo industrial paulistano. O "resultado natural" dessa transação está hoje consubstanciado na "gigante periferia", que já assumiu um caráter estrutural nas questões urbanas contemporâneas de São Paulo.
Vistas de perto, estas periferias são a prova material do acerto da análise histórica do livro. Se a questão da dualidade urbana em São Paulo já foi bastante abordada, há em "A Cidade e a Lei" um aspecto novo, de extrema relevância: a questão do negro.
A distribuição, na cidade, dos negros, dos ex-escravos como consumidores compulsórios dos espaços ilegais, expõe e esclarece a sua nova condição social. Entre um "quilombo que se urbanizou" -os arredores da recém-chegada ferrovia que oferece novas modalidades de trabalho- e as adjacências das casas burguesas que consumiam o trabalho doméstico das mulheres, os negros ocuparam na cidade, em processo de reorganização, os espaços residuais, isto é, as aparas do território que, em grande parte, não pertenciam à cidade oficial. Esse é um tema fundamental que pouco mobilizou os estudiosos da evolução urbana de São Paulo. Ao estabelecer as "fronteiras da cidade", ao definir a existência de uma segregação social, cultural e étnica na emergente cidade industrial, onde as presenças do negro livre e do imigrante operário criam uma nova relação espacial, o livro abre novas vias à investigação.
Regina Meyer é professora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
Folha de São Paulo
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