A fala do general
Boris Fausto
MARIA CELINA D'ARAUJO; CELSO CASTRO
Durante seu governo, o general Geisel quase sempre recusou-se a dar entrevistas. Lembro-me do espanto que causou uma quebra excepcional desse comportamento, quebra inusitada não só pela fala como também pela ambientação: um trem-bala em alta velocidade, a milhares de quilômetros do Brasil, durante uma visita presidencial ao Japão. Como viria a dizer anos depois, ele não gostava mesmo de conceder entrevistas e "não dava muita importância à imprensa", essa coisa "do dia-a-dia, da fofoca".
Recordo a cena, aparentemente distante dos objetivos de uma resenha, e as observações do general, para enfatizar o valor do empreendimento de Maria Celina D'Araujo e Celso Castro, que conseguiram realizar um excelente trabalho, colhendo um longo depoimento de Geisel, no âmbito do projeto sobre a memória militar recente do país, promovido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas. Daí resultou um livro em que, entre outros pontos positivos, é nítida a qualidade do diálogo: os entrevistadores foram muito felizes nas perguntas e o general raramente foi evasivo, deixando um depoimento relevante para se entender os rumos da história brasileira a partir da Primeira Guerra Mundial.
Geisel -como Garrastazu Médici, como seus irmãos Orlando e Henrique- fez parte de um punhado de filhos de imigrantes que optou pelo ingresso no Exército. Nascido no Rio Grande do Sul, filho de pai alemão e de mãe da mesma origem, teve uma trajetória que o distingue radicalmente dos paulistas também filhos de imigrantes nascidos na sua época, os quais nem sequer imaginaram seguir a chamada carreira das armas.
Ao mesmo tempo, essa trajetória foi até certo ponto diversa de jovens do Nordeste, filhos de famílias de uma elite ou de uma classe média em declínio que, à falta de melhor alternativa, foram sentar-se nos bancos de um Colégio Militar. A diferença reside na circunstância de que, no Rio Grande do Sul, mais do que em qualquer outro Estado e ao contrário do que acontecia em São Paulo, a profissão militar era cercada de prestígio. O general Geisel tinha plena consciência do fato, acentuando a tradição militar de seu Estado, situado em uma região estratégica de fronteira. O Rio Grande do Sul participou diretamente das campanhas do Prata e da Guerra do Paraguai no século 19, sendo também teatro de revoluções como a Farroupilha e a Revolução Federalista, esta já na República.
A meu ver, os traços básicos da formação de Geisel vinculam-se aos rígidos costumes familiares, às características da instituição em que ingressou e aos acontecimentos ocorridos na década de 20 e nos primeiros anos 30. Sob o primeiro aspecto, lembremos, a título de exemplo, a descrição da vida doméstica em Bento Gonçalves, em que se destaca a severidade dos costumes, contrastando com o comportamento das famílias italianas, em maioria na região. Na casa do general, eram de rigor os sapatos lustrados, as unhas limpas, os cabelos penteados, objeto de inspeção na saída para o colégio; já os garotos italianos -pelos quais Geisel revela simpatia- andavam soltos pelas ruas, jogando bola e brigando, a boca cheia de palavrões.
Sem dúvida, a formação familiar não diz tudo. Acrescentemos a ela a óbvia observação de que Geisel foi um homem do Exército. É certo que ele não poupa críticas a figuras individuais, mesmo àquelas com quem tinha afinidade. Mas a crítica a pessoas não diminui a importância do papel atribuído aos militares, no sentido de garantir a ordem e a coesão interna do país. Segundo ele, nas condições brasileiras, as Forças Armadas desempenham um papel político, sem se identificar com a política partidária. Elas não podem ser "o grande mudo" como queriam os instrutores da Missão Militar francesa. Ao contrário, devem intervir quando o país estiver ameaçado por graves dissensões internas, provocadas por políticos que se desviam de sua missão.
Nesta precária síntese de elementos formativos, ressaltemos afinal o fato de que o general Geisel pertenceu àquela geração de militares que, entre os 20 e os 30 anos de idade, viveu direta ou indiretamente episódios como as revoluções tenentistas, a revolução dos "maragatos" contra Borges de Medeiros, a Coluna Prestes, a Revolução de 1930.
Da longa e sugestiva fala do general, desponta a figura de um conservador no terreno político, que aceita a ruptura do status quo, ou age nesse sentido, sempre que a ordem lhe pareça estar ou esteja de fato ameaçada. Assim, exemplificando, justifica o golpe do Estado Novo porque a disputa sucessória levava a um beco sem saída, dividindo-se entre os riscos de uma desforra paulista encarnada por Armando de Salles Oliveira e a surpreendente demagogia do suposto candidato oficial José Américo de Almeida; concorda com a deposição de Getúlio em 1945 porque ele se deixara embalar pelo queremismo e pela aproximação com os comunistas; afirma não ter tido problema algum de consciência ao conspirar desde a primeira hora contra o desastrado governo de João Goulart, pois, segundo ele, pelo que fazia, esse governo era ilegal.
O conservadorismo do general Geisel tem como fortes componentes o anticomunismo e a relativização da democracia. Seria injusto considerá-lo um anticomunista obsessivo, do gênero daqueles que perdem contato com a realidade. Seu anticomunismo é metódico, realista e, por isso mesmo, eficaz. Ele ridiculariza sem rodeios personagens como o caricato almirante Pena Boto. Quando no poder, a repressão à esquerda não o impede de estabelecer laços diplomáticos com a China e de reconhecer o governo revolucionário de Angola, por razões de conveniência. Num dos muitos episódios em que é pressionado pela linha dura, critica ironicamente os excessos do general Silvio Frota, dizendo-lhe que algo deve andar errado nos métodos, se o comunismo estiver mesmo sempre crescendo, apesar de nós o combatermos desde o levante de 1935.
Falando de suas leituras, Geisel destaca a influência em seu pensamento das obras de Alberto Torres e, principalmente, de Oliveira Viana. No depoimento, perpassa a influência deste último e de outros pensadores autoritários dos anos 30 e 40, sobretudo quando insiste na originalidade de nossa formação.
Assim, defende a adjetivação da democracia, ou seja, a democracia relativa, pois não é possível "pegar o que se usa e se faz nos Estados Unidos, ou na França, ou na Inglaterra, e transplantar integralmente para aqui". A soberania popular lhe parece ser um princípio teórico, dos homens do direito, mas cuja aplicação em países como o Brasil, dado seu estágio de civilização, deve ser vista com ressalvas. Daí sua crítica ao movimento das "diretas já" e às eleições diretas de um modo geral, tópico já bastante criticado pela imprensa, lembrando que o resultado de escolhas, a portas fechadas, de generais-presidentes como Médici, Costa e Silva, Figueiredo, dispensam maiores comentários. É bom lembrar, em todo caso que, nessa afirmação de descrença na capacidade popular em matéria política, o general não está sozinho. Como se sabe, essa é uma concepção corriqueira em setores letrados civis e nos meios militares, bastando lembrar, quantos aos últimos, os escritos dos generais Juarez Távora e Góes Monteiro.
Na área econômica, Geisel tem muito que dizer. Não só por ter chegado à presidência, mas por ter sido uma figura de destaque do grupo burocrático-militar que desempenhou um importante papel no projeto de desenvolvimento do país. Sua visão e sua orientação econômica estão imbuídas de um forte componente nacionalista e estatista, lembrando, com notas próprias, a teoria cepalina de substituição de importações, como bem observam os entrevistadores.
Sob este aspecto, Geisel surge como a última figura importante de uma época que se convencionou chamar de Era Vargas. Sua ênfase no papel do Estado, segundo afirma, derivaria de razões pragmáticas. Neste passo, a lucidez de sua análise histórica pode ser resumida em uma pergunta: quem, se não o Estado, poderia ter construído no país uma infra-estrutura básica industrial e de serviços, nas condições vigentes de um capitalismo estrangeiro arredio aos projetos de longa maturação e de uma burguesia nacional de horizontes estreitos, voltada para o lucro fácil?
Não creio porém que a missão relevante conferida ao Estado se deva apenas a considerações de ordem prática, pois aí reside um dos pressupostos básicos do pensamento militar. No caso do general Geisel, lembremos que a profunda mudança do quadro de relações internacionais e a crise do Estado foram insuficientes para modificar suas convicções. Falando em 1994, ele mantém seus pontos de vista, combatendo entre outras coisas, as privatizações que apenas se esboçavam.
A crença nos destinos nacionais leva o general a desacreditar de saídas recessivas nos momentos de crise, como demonstra o lançamento em seu governo do Segundo Plano de Desenvolvimento Econômico, buscando fazer avançar qualitativamente o processo de substituição de importações, apesar da conjuntura internacional adversa. É interessante observar que, ao defender o 2º PND -objeto de árdua controvérsia entre os economistas-, o general Geisel aponta uma razão de natureza política para a sua implantação, indagando: como é que eu iria justificar uma recessão, depois da euforia do desenvolvimento no governo do Médici?
Na impossibilidade de percorrer o fio dos acontecimentos históricos em que Geisel esteve envolvido, destaco o projeto de abertura lenta, gradual e segura. Ele surge nas páginas do livro como uma complicada operação estratégica, conduzida com o máximo de frieza possível. Não é a pressão das oposições, nem a indignação com a violação dos direitos humanos o móvel básico do general, que tem palavras dúbias com relação à condenação da tortura, por ele combatida na prática, em lances decisivos.
Seu projeto, a meu ver, derivou da compreensão de que o regime militar entrara irremediavelmente em desgaste, levando ao desprestígio das Forças Armadas e à quebra da hierarquia em seu interior. Em poucas palavras, a ordem estava ameaçada e a culpa agora não era dos políticos. Mesmo lamentando que ele tivesse às vezes de "jogar pasto às feras", é inegável que o papel do general Geisel foi fundamental no sentido de se tirar o país de um período sombrio, ao qual ele próprio estivera associado.
Boris Fausto é historiador, autor de "História do Brasil" (Edusp), entre outros.
Folha de São Paulo
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