Os labirintos de Wesley Duke Lee
Annateresa Fabris
YANET AGUILERA; CLÁUDIA VALLADÃO DE MATTOS
numa longa entrevista concedida a Cacilda Teixeira da Costa em 1978, Wesley Duke Lee apresenta aquele que poderia ser definido seu "credo artístico". Algumas idéias merecem destaque dentro desse quadro de referências, pois elas permitem compreender melhor suas relações com o universo da arte contemporânea em sentido lato. O primeiro axioma, que abre a entrevista, não deixa dúvida sobre a imagem do artista elaborada por Wesley Duke Lee, que a remete a uma condição primordial, quase biológica: nasce-se pintor. A partir dessa premissa, pode ser considerada consequência lógica o fato de ser colocada entre parênteses a relação tradicional mestre/discípulo em favor da idéia de uma troca, alicerçada numa fala pessoal em voz alta, capaz de ordenar o que se afigurava como confuso.
Para Wesley Duke Lee, portanto, a arte é "uma subjetividade", da qual decorre o sentimento de pertencer ao "grupo dos 'colegas'±" e graças à qual o artista mergulha no próprio inconsciente, em busca de mitos e arquétipos, de vivências pessoais e ancestrais ao mesmo tempo. "Tremendo labirinto" dentro do qual o artista nada sabe, a pintura representa para Wesley Duke Lee não apenas um desafio existencial, mas igualmente um desafio material. É tarefa do artista respeitar cada meio, despertar as energias de cada material, fazer-lhe perguntas, "ver o que acontece", voltar a formular interrogações...
Se esse é o pano de fundo dentro do qual se elabora a produção de Wesley Duke Lee, não pode ser considerado de todo correto o paralelo entre ele e Duchamp, proposto por Cláudia Valladão de Mattos no texto analítico do livro "Entre Quadros e Esculturas: Wesley e os Fundadores da Escola Brasil". É verdade que o próprio pintor coloca Duchamp entre suas "afinidades eletivas", mas não se pode desconhecer que ambos representam duas concepções bem diferentes de arte.
"O Grande Vidro", apontado pela autora como o principal ponto de convergência entre os dois artistas, é um aparato muito complexo, a partir do qual, ao contrário, as diferenças se fazem patentes em vários níveis. O uso do vidro permite a Duchamp negar qualquer indicação espacial e reafirmar, portanto, sua idéia de que a arte não é feita de referências visuais e, sim, de múltiplos significados conceituais. A sexualidade, que permeia a obra, coloca-se sob o signo da sublimação, da impossibilidade do encontro, da masturbação (masculina) e do "voyeurismo". A alegoria dos dois domínios incomunicáveis, para a qual convergem todas as experiências mentais, estéticas e técnicas de Duchamp, é regida por um sutil equilíbrio entre acaso e precisão, visível e invisível, constituindo um exemplo paradigmático de "work in progress" (voluntariamente) inacabado.
Se há uma diferença substancial entre a crença na arte e em seus valores, evidenciada por Wesley Duke Lee, e o desinteresse pela especificidade artística, ostentado por Duchamp, a concepção do erotismo é um outro ponto de bifurcação entre os dois artistas. As máquinas celibatárias de Duchamp são aparatos andróginos, estéreis, que recusam a sexualidade genital, enquanto o artista brasileiro incide justamente na dimensão afetivo-libidinal, carregada de conotações arquetípicas, como atestam as séries "Ligas" (1962) e "A Zona" (1964), entre outras.
"Ligas" e "A Zona" são consideradas por Cláudia Valladão de Mattos elementos de reforço na aproximação entre Wesley Duke Lee e Duchamp. A auto-referencialidade, que distinguiria tanto um artista quanto o outro, deve, no entanto, ser ampliada. Ela é uma estratégia típica da arte moderna, como demonstra de sobejo Picasso, não podendo constituir uma categoria exclusiva de alguns criadores. "Ligas", como afirma acertadamente a autora, apresenta pontos de contato com o erotismo tenso e violento de Schiele, mas essa série (assim como "A Zona") evoca um outro possível diálogo do artista brasileiro, que não me lembro de ter visto nos vários estudos dedicados a ele. Refiro-me a Allen Jones que, no início dos anos 60, dá vida a um conjunto de imagens eróticas, cujo tratamento apresenta semelhanças com a poética de Wesley Duke Lee. A concentração iconográfica nas coxas e na virilha, um certo jogo de mascaramento e revelação da imagem, uma representação frequentemente anti-refinada, uma construção por zonas de adensamento e de rarefação são elementos estruturais que sugerem pontos de convergência entre duas poéticas igualmente interessadas, naquele momento histórico, em promover um diálogo entre as novas possibilidades que se abriam à figuração e a herança abstrata com a qual ainda se viam a braços.
Um traço fundamental na concepção de Wesley Duke Lee é sua relação com a história da arte, que Cláudia Valladão de Mattos coloca sob o signo de um "jogo de citação de citações", de interpretação e retradução. Se as imagens do passado representam um aspecto ulterior do mito e do arquétipo, há nessa relação uma outra dimensão que merece algumas considerações. A atitude nômade do artista em relação ao legado do passado, seu fascínio pela memória, a retradução dos ícones que despertam sua atenção nas mais variadas técnicas parecem colocar a poética de Wesley Duke Lee no âmbito da estética do fragmento, que é um dos traços (possíveis) da atitude pós-moderna.
Dentro da lógica do fragmento, a citação adquire um significado peculiar, por não ser um mero jogo de descontextualização e recontextualização, mas por apontar para uma tensão constante entre a impossibilidade de fazer algo (inteiramente) novo e a impossibilidade de refazer o velho. Nessa zona de fricção acaba se constituindo uma nova atitude perante a arte, que Wesley Duke Lee parece compartilhar: a linguagem do artista não é um sistema, e sim uma intenção, uma atitude que se formaliza num gesto subjetivo. Esse gesto é resultado de uma dialética entre lugar e não-lugar, entre escrita autógrafa e apropriação assimétrica da escrita de outrem, na qual o que se busca é, antes de tudo, uma afinidade particular. Relacionar-se com a história da arte implica, pois, buscar no outro um suplemento que ajude a sanar uma falha (antes de tudo simbólica) e a propulsionar a elaboração de um novo conceito de imagem em constante construção.
Se esta hipótese for correta, talvez ela ajude a entender melhor a relação de Wesley Duke Lee com seus alunos. O que ele ensina a Luiz Paulo Baravelli, Carlos Fajardo, Frederico Nasser e José Resende é primordialmente uma atitude perante a criação. Atitude que ele próprio continua a mobilizar, com as constantes interrogações que dirige à arte e a suas possibilidades.
Annateresa Fabris é historiadora, crítica de arte e autora, entre outros livros, de "Cândido Portinari" (Edusp).
Folha de São Paulo
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