terça-feira, 25 de outubro de 2022

A sociologia do corpo


Ana Maria Canesqui

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo,126. Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13083-887. anacanesqui@uol.com.br

Le Breton, D. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

A vasta obra de David Le Breton sobre a sociologia e antropologia do corpo, originalmente publicada em língua francesa, está pouco disponível em português e foi parcialmente divulgada em espanhol. O autor tem formação em sociologia, antropologia e psicologia, é professor de sociologia da Universidade Marck Block de Estrasburgo, França, e membro do laboratório Cultures et Sociétés en Europe. Desde a década de 1980, dedica-se à sociologia e antropologia do corpo, passando, também, sua produção científica pela dor; a paixão pelos riscos e aventura; as identidades e as marcas corporais; o silêncio; o uso de remédios e outros temas.

O assunto recebeu atenção de um clássico da antropologia no século XX, Marcel Mauss (1950), que deixou seguidores, e, posteriormente, de autores como: Merleau-Ponthy; Norbert Elias; Bernard Michel; Luc Boltanski; Michel Foucault, dentre outros. Feministas, na década de 1970, reclamaram o controle sobre o próprio corpo, concedendo-lhe status político na luta contra sua exploração.

A sociologia interessou-se, mais intensamente, pela corporeidade na década de 1980, sendo nítida sua importância para a sociologia da saúde e doença, à medida que "a enfermidade limita o funcionamento "normal" do corpo, com profundas conseqüências sociais, políticas, econômicas e psicológicas, assim como o corpo é objeto das intervenções médicas" (Nettleton, 2003).

Adeus ao corpo: antropologia e sociedade (2003) foi o primeiro livro de Le Breton editado em português e comentado por Gomes (2004), onde o autor reflete sobre o corpo moderno: acessório, modelado, fabricado, parceiro (alter ego); administrado, marcado, rascunho, transexualizado e body art. Chama a atenção para a forte intervenção das tecnociências nos rearranjos corporais, como a interferência do biopoder, que submete e aprisiona os sujeitos às ideologias dominadoras do aprimoramento corporal, que certamente ultrapassa a dimensão física, para inseri-la também em novas representações do corpo na ordem dos valores.

Objeto incerto e ambíguo, o fenômeno da corporeidade é complexo, conclama a interdisciplinaridade entre as ciências sociais e humanas (etnologia, psicologia, sociologia, psicanálise) e as ciências biomédicas. Isto porque o "corpo é a interface entre o social e o individual, a natureza e a cultura, o psicológico e o simbólico" (Le Breton, 2003, p.97). Esta ambiguidade complexa requer prudência e precisão do sociólogo ou do antropólogo na delimitação das fronteiras de seu objeto de investigação simultânea à manutenção do diálogo e interlocução interdisciplinar.

O pequeno livro comentado nesta resenha, A sociologia do corpo - editado originalmente na França, em 1992, e disponível em português, na sua quarta edição - é leitura obrigatória aos que querem investigar e compreender a corporeidade humana, como fenômeno cultural e social, repleto de simbolismo, representações e imaginários, inscrevendo-se o corpo nas moldagens social e cultural, tanto no plano do sentido e do valor, quanto no âmbito relacional, lugar e tempo do homem, imerso na singularidade de sua história.

Le Breton recusa a sociologia do corpo como disciplina autônoma da reflexão sociológica, uma vez tributária de sua epistemologia e metodologia. Antes de apontar uma agenda de investigações sobre o corpo, alguns capítulos reconstroem, detalhadamente, as diferentes epistemologias das reflexões sociológicas e etnológicas do corpo, introduzindo o leitor na síntese do estado da arte deste objeto.

O capítulo I dedica-se às etapas históricas da reflexão da corporeidade humana, nos primórdios das ciências sociais no século XIX, destacando três etapas: a primeira é a sociologia implícita ao corpo, ignorando-o e mostrando a miséria física e moral da classe trabalhadora na Revolução Industrial. A segunda etapa concentra-se na supremacia biológica do corpo, à qual se opuseram Hertz e Mauss e outros autores que desenvolveram pesquisas e inventários etnológicos sobre os usos sociais do corpo, enquadrados na terceira etapa, designada, pelo autor, de sociologia detalhista.

O capítulo II indaga, pertinentemente, sobre as ambiguidades dos discursos sociológicos sobre o corpo, perguntando-se: de que corpo se está falando? "Corpo não é fetiche, omitindo o homem", diz o autor (Le Breton, 2010, p.25), sendo imprescindível referir-se ao ator que o porta. Um conjunto de estudos etnográficos demonstra: as representações do corpo e da pessoa, inseridas na visão de mundo; a fisiologia simbólica da mulher e suas relações com o contexto; as concepções modernas do corpo, separadas do cosmos; as concepções anatômicas e fisiológicas do pensamento ocidental; o corpo enquanto imaginário social; a corporeidade humana e seus elos com a natureza; o corpo nas medicinas chinesa e indígena. O argumento central do capítulo reforça a imersão da corporeidade no imaginário, nas representações e condutas que variam segundo as diferentes sociedades.

Para definir o corpo de que se fala, dos pontos de vista sociológico e antropológico (capítulo III), distancia-se da ideia de ser ele atributo da pessoa, um pertencimento da identidade em recusa à ideologia individualista. O autor abraça a ideia da realidade construída do corpo, com múltiplas significações culturalmente operantes e associadas aos atores, vistos como corporeidade.

O corpo inexiste em estado natural, insere-se na trama dos sentidos, inclusive naquelas manifestações mais físicas, como na dor e na enfermidade, expressas nas percepções sensoriais e corporais dos atores. A análise sociológica distingue-se das intervenções corporais terapêuticas (médicas, xamânicas, religiosas, outras medicinas) que buscam reinserir o homem em sua comunidade. Nas palavras do autor, "a sociologia aplicada ao corpo distancia-se das asserções médicas que desconhecem as dimensões pessoal, social e cultural de suas percepções sobre o corpo" (Le Breton, 2010, p.36).

Ao detalhar as investigações das lógicas sociais e culturais do corpo (capítulo IV), o autor parte de Marcel Mauss (1950), sobre as técnicas corporais e as expressões dos sentimentos, das emoções e da dor. Acrescenta contemporâneos que estudaram assuntos como: os especialistas das técnicas corporais circenses, desportivas, artesanais; de ars amandi; a gestualidade; as etiquetas corporais e infrações às regras; as percepções sensoriais, as inscrições corporais e as traduções físicas da enfermidade (sintomas ou comportamentos).

O corpo, como universo das representações, dos valores e do imaginário social, ocupa o capítulo V, distinguindo esta abordagem dos enfoques biológicos e sociobiológicos, percorrendo-se estudos antropológicos clássicos e contemporâneos sobre: sexualidade; o uso do corpo; o corpo como suporte de valores e o corpo incapacitado. O capítulo VI enfoca os estudos sobre o corpo como reflexo do social-coletivo: suporte das relações de poder e do controle social; das apresentações das aparências corporais; da modernidade; do estigma; do gosto pelo risco e aventuras; o envelhecimento do corpo e o imaginário do descartável ou das mudanças imprimidas ao corpo pelas tecnologias médicas, que nem sempre suscitam reflexões éticas pertinentes.

Ao concluir sobre a situação da sociologia do corpo, no último capítulo, Le Breton reafirma a pertinência da corporeidade, a amplitude das pesquisas sociológicas e antropológicas no assunto, onde o pesquisador, como um verdadeiro artesão prudente e competente, é desafiado a entrecruzar saberes, diante de sua complexidade.

Enfim, a sociologia aplicada ao corpo, segundo o autor, deve produzir muitas investigações significativas, cuja agenda inclui, dentre os vários itens: o inventário e a comparação das diferentes modalidades corporais, significações, representações e valores nos distintos grupos sociais; as mudanças das atitudes frente ao corpo em certas enfermidades, assim como as intervenções das novas tecnologias médicas sobre o corpo. A sociologia do corpo refere-se ao "enraizamento físico do ator no universo social e cultural" (Le Breton, 2010, p.99), não naturalizando o corpo.

Recomenda-se a leitura deste pequeno e denso livro aos que pretendem iniciar-se nas abordagens sociológicas e etnológicas do assunto.



Referências

GOMES, R. Resenha: LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Cienc. Saude Colet., v. 9, n.1, p.247, 2004.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.

______. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

MAUSS, M. Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF, 1950.

NETTLETON, S. The Sociology of health & illness. Cambridge: Polity, 2003.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

El trabajo de cuidado





O cuidado como trabalho: entre desafios e avanços
Care as work: challenges and advances

Silvana Maria Bitencourt
Cristiane Batista Andrade
BORGEAUD-GARCIANDÍA, Natacha. ) El trabajo de cuidado, Buenos Aires, Fundación Medifé Edita2018




A obra, organizada por Natacha Borgeaud-Garciandía (2018), garante aos leitores/as um apanhado significativo de temáticas correspondentes ao trabalho de cuidado, destacando-se os estudos empíricos na América Latina, além das reflexões que contribuem para a complexidade do tema. É importante salientarmos que, apesar das críticas direcionadas ao essencialismo da obra In a different voice, de Carol Gilligan (1982), a mesma é referenciada neste campo de estudos por inaugurar uma nova fase no debate sobre cuidado, pois é a partir de seus trabalhos empíricos, que a presença de uma “voz diferente” possibilita questionar os modelos abstratos e princípios imparciais de justiça. Gullian concebe ética do cuidado, como um modelo alternativo para as concepções de moral clássicas. Outra autora que também recebe destaque neste campo de estudos é Joan Tronto, que, ao desvincular ética de cuidado, conforme Gilligan, desenvolve uma discussão que evidencia a desvalorização do trabalho de cuidado, o qual resultaria de uma divisão do trabalho moral.



A coletânea organizada em nove capítulos versa sobre pesquisas contemporâneas referentes ao cuidado, a partir de um sofisticado corpo empírico de artigos movidos pela reflexão sobre o que é cuidar e quem cuida, além das dimensões do cuidado, que implicam nas relações sociais. Na primeira pesquisa, há quatro capítulos. O primeiro deles, de Maria José Magliano, intitulado “Mujeres Migrantes y empleo doméstico en Córdoba: luchas y resistencias frente a formas de explotación y violencia laboral”, analisa as formas de resistências e de mobilização de empregadas domésticas peruanas, que trabalham em Córdoba/AR. O trabalho doméstico é problematizado como uma atividade temporária, feita pelas mulheres migrantes peruanas, a fim de contribuir para um projeto familiar migratório. Contudo, os achados demonstram que essas mulheres tendem a permanecer neste tipo de emprego, podendo vivenciar problemas como informalidade, precarização e discriminação, que operam nas interseccionalidades de gênero. O texto mostra como as fortes naturalizações de gênero, vinculadas ao trabalho doméstico, contribuem para que esse tipo de trabalho não seja reconhecido por meio de conhecimentos necessários, possuídos pela trabalhadora para realizá-lo. Neste sentido, o texto aponta que as empregadas domésticas sentem a necessidade de articulação coletiva - tanto por serem domésticas, como por serem migrantes - para que o debate seja efetivado no âmbito das instituições, a fim de que elas sejam tratadas como trabalhadoras formais e, consequentemente, com direitos trabalhistas.



O texto “Los itinerarios de cuidadores remunerados en el Gran Buenos Aires”, de Liliana Findling, Maria Lehner e Estefania Cirino, problematiza o envelhecimento populacional e as estratégias que as sociedades têm adotado para cuidar de idosos com alto grau de dependência, analisando que o trabalho de cuidado dentro das famílias tem sido historicamente delegado, em grande parte, às mulheres - filhas e esposas. Contudo, com a entrada massiva delas no mercado de trabalho, as famílias começaram a comprar o trabalho de cuidado de um cuidador formal, que, na grande maioria dos casos, continua sendo uma mulher. As autoras apontam que, para cuidar, é necessário que quem cuida também seja cuidado, atentando-se, assim, para o trabalho que as próprias cuidadoras desempenham, e que compreende tanto a dimensão prática, quanto a afetiva, exigindo de seus corpos grande esforço físico e emocional.



Segundo as autoras, nos últimos anos, os órgãos do Estado têm formado cuidadoras domiciliares em instituições educativas e sanitárias, além de organizações da sociedade civil. Neste sentido, elas questionam se, nas trajetórias das cuidadoras para o atendimento de idosos/as, seus serviços apresentavam uma qualidade diferenciada, comparando as que receberam formação ou não, como também seu próprio entendimento sobre o que é saúde, para além da perspectiva biologicista.



As autoras destacam, ainda, as modalidades de emprego e as trajetórias laborais das cuidadoras e abordam as qualidades necessárias para a atividade, sem deixarem de considerar a questão do autocuidado. A pesquisa constatou a inserção das entrevistadas em clínicas privadas e geriátricas, nas quais, após adquirirem experiência, elas optam por se tornarem “empresárias de si mesmas”. Há, porém, contradições nisso, pois, quando indagadas sobre os motivos dessa opção, embora elas enfatizem a importância da questão salarial, afirmam que estão na profissão por uma questão de vocação, havendo, portanto, uma romantização da atividade de cuidado.



Sobre a formação para o cargo, as entrevistadas comentam que a mesma contribuiu muito para seu desejo de fazerem o curso de enfermagem. Apesar de se sentirem seguras por disporem dessa formação, dizem que só com a experiência é que aprendem a cuidar. Em relação ao autocuidado, muitas vivenciam problemas de saúde e associam suas doenças às atividades de trabalho: doenças musculares e estresse; dormir pouco, ter alimentação desregrada, não fazer exercícios físicos, automedicar-se e tomar suplementos alimentícios. Nesse contexto, “cuidar do outro” pode significar deixar de cuidar de si. A fim de confrontar esse paradoxo, as autoras sugerem uma política integral de cuidado para idosos e cuidadoras remuneradas, com a finalidade de diminuir as desigualdades sociais e de gênero.



Por sua vez, o texto de Natacha Borgeaud-Garciandía, “Intimidad, sexualidad, demencias: Estrategias afectivas y apropriación del trabajo de cuidado en contextos desestabilizantes”, analisa, no contexto argentino, o trabalho de cuidado em residências de idosos/as com alto grau de dependência e investiga a possibilidade de conflito entre cuidadoras. A autora realizou entrevistas com cuidadoras provenientes da Argentina, Paraguai e Peru, mas focalizou essencialmente as peruanas. Ela explicita que as paraguaias e as peruanas chegam à Argentina em busca de uma situação de vida melhor, e ingressam majoritariamente em trabalhos domésticos e de cuidado. O texto expõe que o trabalho de cuidado destinado a lidar com corpos que apresentam demência senil escancara a ideia de finitude corporal e animalidade presentes na condição humana; assim, fenômenos como as doenças crônicas degenerativas e a morte são analisados, reafirmando como é fundamental o trabalho de cuidado para lidar com corpos nestas condições de dependência total. O texto também apresenta os desafios diante da complexidade de corpos que se comunicam de maneira diferenciada, levando as cuidadoras a criarem, por meio da prática, estratégias para lidar com outras formas de linguagem no cuidado de idosos com demência senil.



O texto de Helena Hirata, intitulado “Subjetividad y sexualidad en el trabajo de cuidado”, destaca a emergência dos temas da sexualidade, da subjetividade e das emoções, partindo de uma investigação realizada em três países: Brasil, França e Japão. Hirata apresenta a centralidade da sexualidade e da subjetividade, no trabalho de cuidado, a fim de pensar a formação dos/as cuidadores/as, além das táticas que eles/as tendem a adotar para se manter no emprego. A autora destaca os estudos de referência sobre sexualidade e emoções no trabalho de cuidado e problematiza os conflitos que este tipo de trabalho pode gerar na identidade dos/as trabalhadores/as do cuidado, de maioria feminina. Assim, para a autora, os aspectos prático e teórico do trabalho de cuidado envolvem sofrimento, racismo, doenças, morte e uma qualificação pouco discutida entre os/as trabalhadores/as, devendo-se considerar e analisar a sua dimensão emocional e subjetiva.



Nesta primeira seção do livro apresentada, os estudos apontam que são as mulheres que ainda realizam este tipo de trabalho, com uma série de significados permeando poderes e saberes no cuidado (Andrade, 2015). Nos últimos anos, eles também referem que as análises assumem uma perspectiva interdisciplinar, que dialoga diretamente com os estudos de gênero e feministas, politizando o debate acadêmico, especialmente dando visibilidade às emoções e à sexualidade, aspectos que não podem ser ignorados neste tipo de trabalho que envolve o corpo de quem cuida e de quem é cuidado (Soares, 2012).



Em sua segunda seção, o livro apresenta três capítulos. O primeiro deles, intitulado “Mujeres migrantes y la gestión de los cuidados. La enfermería en el horizonte laboral”, de Ana Barral, põe em debate a questão de imigrantes na Argentina, que trabalham em enfermagem, ou aspiram ao exercício dessa atividade. É por meio das análises da complexidade do cuidado (reprodução da vida, assalariamento, trabalho doméstico não remunerado e força de trabalho desempenhada especialmente por mulheres), que a autora coloca em debate a importância do processo migratório no trabalho de enfermagem. As entrevistas em profundidade, realizadas com docentes, enfermeiras/as e estudantes estrangeiras, descrevem os fluxos migratórios de paraguaias, bolivianas e peruanas na enfermagem argentina, e apontam o trabalho de cuidado como uma possibilidade de acesso ao trabalho formal e aos direitos trabalhistas, bem como de reconhecimento social em contraposição ao “peso de ser imigrante” (p. 130). A discussão sobre as exigências da profissionalização da categoria das cuidadoras na Argentina, assim como ocorreu no Brasil, expressa as contradições entre a (des)valoração social, as possibilidades de mobilidade ascendente e as representações de exercício da atividade pela “vocação”. Um dos aspectos interessantes deste capítulo é o fato de a autora considerar as particularidades dessa profissão e suas relações com o processo migratório, o que traz avanços na discussão sobre a invisibilidade do uso da mão de obra de migrantes em uma sociedade que vive e precisa do trabalho de cuidado.



O capítulo de autoria de Silva Balzano, “Cuidado y identidad en el que hacer enfermero en la Colonia Montes de Oca”, analisa o trabalho de enfermeiras argentinas na área de cuidado em saúde mental, sob a perspectiva das identidades profissionais e suas construções sociais quanto à disciplina no trabalho e à imagética da docilidade, da subserviência e da religiosidade. A autora desenvolve sua pesquisa por meio de entrevistas que possibilitam reconhecermos quais são as dificuldades e contradições relativas ao cuidado de pessoas com doenças psiquiátricas: lidar com o sujo, com a nudez de alguns pacientes, com os surtos psicóticos, com os estigmas vividos pelos/as pacientes, a despeito da doença psiquiátrica. Ao mesmo tempo, as entrevistadas desprendem carinho e afeto como uma atividade terapêutica do cuidado. Os depoimentos das enfermeiras corroboram a ideia de que há um auxílio e uma prontidão da enfermagem, em ajudar as outras profissões no cuidado aos pacientes de psiquiatria.



O terceiro capítulo da segunda seção, “La profesión enfermera y el trabajo de cuidado”, de Wlosko e Ros, tem como finalidade analisar o trabalho de cuidado de enfermeiras, sob a ótica da psicodinâmica do trabalho e as teorias do “care”. As autoras discutem a diminuição do número de pessoas na enfermagem, em decorrência da flexibilização e precarização do trabalho, da sobrecarga das atividades, da desvalorização profissional e das violências sofridas no cotidiano laboral. Além disso, elas destacam as relações de poder entre os grupos profissionais e, portanto, o pouco reconhecimento entre os pares, ao mesmo tempo em que ocorre a valorização social das enfermeiras pelas pessoas que recebem o cuidado. A pesquisa avança na compreensão das construções das estratégias coletivas de defesa e que são, portanto, diferenciadas de acordo com o gênero. Apoiadas em Molinier, as autoras salientam que tais estratégias, construídas coletivamente para lidar com os sofrimentos no trabalho, estão relacionadas com as construções sociais sobre ser enfermeira, em que o sofrer com o outro e ter empatia pelos pacientes são meios para permanecer no trabalho e lidar com os sofrimentos. Assim, os achados de Wlosko e Ros oferecem subsídios para entender as maneiras como a enfermagem se ocupa do sofrimento do outro e, também, os desafios da própria categoria profissional diante das condições de trabalho adversas, contribuindo para as reflexões sobre os modos de ressignificar e enfrentar as atribuições prescritas pela organização do trabalho.



Os três capítulos desta seção corroboram a ideia da complexidade do trabalho de cuidado e suas interfaces com as relações sociais, tal como aponta Kergoat (2016). Chamamos atenção para o fato de que a complexidade do trabalho de cuidado pode estar atrelada aos fluxos migratórios, tal como apontado na pesquisa realizada por Barral. Ainda que essa autora não tenha aprofundado a questão das discriminações e das possíveis violências laborais, pelo fato de as entrevistadas serem imigrantes, este enfoque merece ser verificado em futuras pesquisas. A importância dos fluxos migratórios na profissão de enfermagem já vem sendo problematizada, haja vista um estudo sobre a relação entre a imigração e o trabalho de enfermagem na América do Sul, entre 2011 e 2016, que aponta que os motivos da imigração estão relacionados com o desejo de melhoria das condições de vida e de salário, independência econômica e estabilidade laboral. Por sua vez, os obstáculos encontrados no país de destino dizem respeito às dificuldades econômicas iniciais e às discriminações enfrentadas pelas entrevistadas por serem estrangeiras, embora elas consigam, ao longo do tempo, respeito e reconhecimento de suas atividades (Paho, 2011).



Por outro lado, o conjunto dos textos nos faz refletir sobre os saberes necessários para o cuidado na esfera produtiva e suas imbricações, a partir da síntese apresentada por Barral: “La tensión entre saberes ‘naturales y professionales” (p. 124). Ou seja, as formas como as cuidadoras constroem os saberes para lidar com os desafios do cuidado profissional e as relações de poder entre grupos profissionais distintos (Andrade, 2015), na área de saúde, parecem ser centrais para desvendar as formas pelas quais as enfermeiras lidam com as hierarquias da profissão, com as relações com a medicina e com as técnicas/auxiliares de enfermagem, que nem sempre possuem o diploma de ensino superior.



Além disso, o conjunto de textos contribui para evidenciar as escassas discussões sobre a presença de homens no trabalho do cuidado e como eles constroem suas carreiras no cuidado em saúde (Kluczyńska, 2017). Por isso, ressaltamos a importância de os estudos serem mais aprofundados, com a intenção de se descobrir as diferenciações entre ser homem e mulher em uma profissão predominantemente feminina.



Na última seção, o capítulo de Pascale Molinier, “El cuidado puesto a prueba por el trabajo: vulnerabilidades cruzadas y saber-hacer discreto”, entende, por meio da psicodinâmica, o trabalho de cuidado como aquele que envolve aspectos emocionais, subjetivos e aprendizagens, técnicas ou não, de quem cuida. Há construção de saberes e fazeres para lidar com os constrangimentos, antecipar atividades, dissimular emoções e esforços, proporcionar conforto e escuta às pessoas cuidadas, dentre outros aspectos, além do fato de que o trabalho de cuidado é, por vezes, invisível e permeia um saber-fazer discreto. Diante disso, a autora apresenta as estratégias construídas pelas cuidadoras em face das dificuldades no trabalho de cuidado, aprofundando a questão da complexidade do cuidar, como uma atividade em que as construções sociais e históricas de ser mulher e cuidadora influenciam nos saberes e fazeres, na ética e nos desafios de cuidar do outro, em situação de vulnerabilidade ou não.



O capítulo de Patrícia Paperman, “La ética del cuidado y las voces diferentes de la investigación”, traz a discussão pautada em Gilligan, que critica diretamente o modelo universalista de justiça e moral, que excluiu as “vozes diferentes” que não ouvimos e que, historicamente, teriam muito a falar sobre o cuidado, especialmente as mulheres cuidadoras. A autora também traz a crítica feminista de Joan Tronto, que irá politizar o trabalho de cuidado. Saindo do plano individual, Paperman sugere a necessidade de conceituar o que é cuidado, buscando maior aprofundamento sobre os saberes que possuem suas protagonistas, que foram excluídas como sujeitos desta narrativa (Perrot, 2017).



A coletânea apresentada pelo livro é um convite para pesquisadoras e profissionais de diversas áreas de conhecimento refletirem sobre as emoções e as condições de trabalho no cuidado. Enfermeiras e/ou técnicas, empregadas domésticas e cuidadoras de idosos constroem, no e pelo trabalho, as emoções para lidar com as limitações corporais com o outro, bem como suas próprias limitações em uma atividade que exige disposição física e emocional, socialmente desvalorizada e precarizada. O conhecimento sobre o cuidado pode oferecer uma nova epistemologia sobre a realidade social, não só questionando modelos universais e generalistas, mas trazendo à luz os saberes que foram ocultados sobre o contexto social e os conhecimentos e experiências das pessoas que cuidam (Paperman, 2013). Historicamente, o trabalho de cuidado ficou delegado às mulheres, logo é evidente uma feminização nesta atividade, especialmente entre mulheres pobres, migrantes e que não se destacam no mercado de trabalho capitalista.



Ademais, a obra contribui para expor e expandir as análises latino-americanas sobre o cuidado enquanto trabalho, dando voz às mulheres e proporcionando pistas sobre como elas constroem seus saberes nas contradições da sociedade capitalista que as explora. Nesse sentido, concordamos com Federici (2019), ao problematizar o trabalho reprodutivo como aquele que alicerça o capitalismo e, portanto, contribui para a exploração das mulheres, ainda em dias atuais.

BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Cristiane Batista (2015), O trabalho de cuidar e educar: gênero, saber e poder, Curitiba, Appris.
FEDERICI, Sílvia. (2019), O ponto zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax, São Paulo, Elefante.
GILLIGAN, Carol. (1982), In a different voice: psychological theory and women development, Massachussettss, Harvard University Press.
KERGOAT, Danièle. (2016), “O cuidado e a imbricação das relações sociais”, in H. S. Hirata & N.A. Guimarães (org.), Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais, São Paulo, Boitempo.
KLUCZYŃSKA, Urszula. (2017), “Motives for Choosing and Resigning from Nursing by Men and the Definition of Masculinity: a qualitative study”. Journal of Advanced Nursing, 73 (6): 1366-76.
PAHO. Pan American Health Organization. (2011), Migración de Enfermeras en América Latina área de América del Sur Washington, Serie Recursos Humanos para la Salud no 60.
PAPERMAN, Patricia. (2013), Care et sentiments, Paris, PUF.
PERROT, Michèle. (2017), Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros, São Paulo, Paz e Terra.
SOARES, Ângelo. (2012), “As emoções do care”, in H.S. Hirata & N.A. Guimaraes (org), Cuidado e cuidadoras: várias faces do trabalho do care, São Paulo, Atlas.

Rethinking liberalism for the 21st Century: the skeptical radicalism of Judith Shklar





QUEM TEM MEDO DO LIBERALISMO?
WHO IS AFRAID OF LIBERALISM?

Bruno Camilloto

GATTA, G.. Rethinking liberalism for the 21st Century: the skeptical radicalism of Judith Shklar. New York: Routledge, 2018a


Freedom is no fear, disse Nina Simone. Mas qual o papel do medo na contemporaneidade? Diante da tarefa de pensar sobre o tema, a professora italiana Giunia Gatta1 publicou Repensando o liberalismo para o século 21: O ceticismo radical de Judith Shklar.



A partir da foto de Omran Daqneesh, Gatta convida o leitor a refletir sobre o medo. Omran era uma criança de cinco anos de idade quando o edifício em que estava foi atingido por um ataque aéreo na cidade de Aleppo, na Síria, no dia 17 de agosto de 2016. A foto que circulou nos meios de comunicação revela o menino no banco de uma ambulância, atônito, coberto pela poeira dos escombros e em estado de choque. Provocativamente, Gatta (2018a, p. 06) pergunta: “[...] deve o liberalismo ficar silente diante daquelas circunstâncias trágicas?”. Para a autora, a obra da filósofa Judith Shklar responde negativamente à questão.2



O conceito de crueldade é o centro do pensamento de Shklar. Está fundado no sofrimento dos indivíduos e nas suas vozes. Gatta (2018a, p. 02) defende que Putting cruelty first3 é algo que deve ser levado a sério pelo pensamento liberal contemporâneo. É a crueldade que permite a articulação entre o ceticismo e o comprometimento político, assumindo a centralidade na vida dos indivíduos, especialmente daqueles marginalizados.



Nascida numa família judia de cultura alemã, em Riga, capital da Letônia, Shklar foi profundamente afetada pela Segunda Guerra mundial, especialmente por ter tido de migrar para Suécia, Japão e Canadá em sua adolescência. Antes de chegar ao Canadá, Shklar passou por um centro de detenção para imigrantes ilegais em Seattle. Seu pensamento político é atravessado pela condição de refugiada, marca de sua compreensão sobre a liberdade. Vida e obra de Shklar são articuladas por Gatta na defesa do argumento mais poderoso do liberalismo do medo: como maior mal e vício supremo na política, a crueldade deve ser reconhecida como o fundamento do medo que justifica o pensamento liberal enquanto forma de proteção dos indivíduos, especialmente em relação àqueles vulneráveis e marginalizados.4 Crueldade é “a inflição deliberada de dor física a um ser mais fraco para causar angústia e medo” (Shklar, 1984, p. 08). Mesmo que o comprometimento contra a crueldade seja insuficiente para ofertar soluções específicas aos problemas da vida política, ele é um dever do pensamento liberal. A “crueldade é sempre absolutamente intolerável para os liberais, porque o medo destrói a liberdade.” (Shklar, 1984, p. 02).



Diante da retomada de perspectivas liberais, bem como do ressurgimento de movimentos ultranacionalistas, xenófobos e conservadores nas esferas públicas nacionais e internacionais, o que o liberalismo deve dizer sobre as injustiças sociais, especialmente sobre as que vitimam e violam o indivíduo? Esta é a colaboração de Repensando o Liberalismo para o Século 21 ao atual debate público. Gatta mobiliza os conceitos de ceticismo e comprometimento como alicerces do liberalismo do medo e defende que a obra de Shklar é progressista, transitando entre um pessimismo incorrigível e um otimismo ingênuo. O ceticismo se relaciona com a descrença de Shklar em relação ao projeto iluminista. O comprometimento é seu endosso a um projeto teórico e prático de proteção aos indivíduos frente às opressões que configuram injustiças. É pela radicalização do ceticismo que a relação entre Política e Direito pode se apresentar comprometida com uma proposta liberal protetiva às minorias contra a crueldade e o medo.



No capítulo 01, Gatta apresenta os eventos biográficos que marcaram o pensamento da filósofa, com destaque para a experiência da Segunda Guerra mundial e as aproximações com outros autores que também viveram os horrores do holocausto.5 Com diálogos e debates com professores e filósofos, Shklar teve uma carreira exitosa.6 Apesar de seu talento, somente em 1970 se tornou professora em Harvard. Sua produção intelectual, sempre ocupada com as barbáries do nazifascismo, é uma ode contra o totalitarismo.



O ceticismo de Shklar é verificado em atitudes práticas,7 como em 1982, quando vários professores foram convidados a apoiar uma manifestação contrária à associação de mulheres pró-vida8 ao Princeton Women’s Center. Em resposta ao convite, Shklar foi assertiva: “Eu devo dizer que apoio fortemente os direitos das mulheres ao aborto, e de fato os direitos dos cidadãos de terem serviços médicos decentes.” (Shklar, apudGatta, 2018a, p. 29). Em seguida, Shklar exercitou seu ceticismo:



No entanto, me parece que essas questões são problemas altamente controversos, e as mulheres que não compartilham minhas convicções religiosas e políticas têm sempre o direito de falar, e falar como mulheres, em suporte à grande parte substancial da população gestante. (Shklar, apudGatta, 2018a, p 29-30)



A manifestação de Shklar ilustra seu ceticismo como fundamento do liberalismo. Sua carta explicita a impossibilidade de dar apoio por compreender que deve haver diversidade nas manifestações e que é impossível excluir alguém do Princeton Women’s Center somente pela posição moral pró-vida. O comprometimento de Shklar com sua proposta teórica produz uma resposta dura: “Eu penso que práticas de exclusão são insensatas bem como repressivas, e eu não posso apoiar você, apesar de eu concordar profundamente com você na questão de mérito.” (Shklar, apudGatta, 2018a, p. 30).



Após a introdução e o capítulo 1, Gatta divide sua obra em duas partes, sendo a primeira composta pelos capítulos 2 e 3 e a segunda composta pelos capítulos 4, 5 e 6. A parte I é dedicada à reconstrução do pensamento de Shklar sobre a Modernidade e propõe uma leitura entremeada pelos conceitos de ceticismo, iluminismo e modernidade propriamente dita. A parte II apresenta o argumento central de Gatta: a defesa do liberalismo do medo no século XXI a partir da relação entre ceticismo e comprometimento.



“No começo, era o Iluminismo” é a frase de Shklar, 2015, p. 03, que inaugura o capítulo 2. Para Gatta, Shklar propõe uma compreensão do Iluminismo para além da ideia da Idade da Razão. After Utopia discute o totalitarismo a partir de uma revisão cética dos valores do Iluminismo. Essa releitura reafirma a autonomia e a dignidade das políticas de resistência contra as forças da fé e da futilidade (Gatta, 2018a, p. 48). O ‘indivíduo ordinário’ é um dos conceitos centrais, sendo mobilizado contra o conceito de massa. Shklar refuta a individualidade como uma abstração, colocando-a como uma concretização das reivindicações individuais por igualdade.



O capítulo 03 trata do conceito de everyman como resistência às políticas de abstração, ou seja, seu pensamento liberal é voltado para o indivíduo como ser concreto. Audaciosamente, Gatta (2018a, p. 65) diz que After Utopia traz uma argumentação antimoderna que se refletirá nos trabalhos posteriores de Shklar relacionados à resistência contra a ideia do individualismo como abstração.



Sobre Rousseau e Hegel, Gatta destaca a proposta da utopia como um instrumento de crítica de um determinado tempo/lugar. Afasta-se, assim, da ideia de utopia como um esforço deliberado para transformar a história. Gatta sublinha que os escritos de Shklar sobre Hegel são anteriores ao contemporâneo debate entre liberais e comunitários que marca as décadas de 70 e 80 na teoria política.9



Se After Utopia inaugurou a tensão entre esperança e desespero, Legalism10 é uma defesa do pluralismo, da tolerância e da legalidade11 tratados no capítulo 04 do livro. Em Legalism, há um destaque para a relação entre a Política e o Direito a partir do contraste entre a dura realidade contemporânea e alguma forma de nostalgia de lugares e tempos diferentes. O ceticismo de Shklar é definido por Gatta (2018a, p. 92) como a possibilidade de manutenção da tensão entre desespero, a partir de uma leitura antimoderna do Iluminismo, e esperança, sem as ilusões da modernidade. Shklar não se rende às críticas lançadas às principais ideias do Iluminismo, a ponto de cair num niilismo, nem propõe uma perspectiva ingenuamente otimista fincada na fé da razão. Fazendo uma crítica ao liberalismo conservador,12 como uma perspectiva que se mantém inerte a respeito do curso dos eventos e das crenças determinadas por forças fora do controle humano, Shklar aposta que o indivíduo deve ser capaz de realizar a ação política a partir de suas próprias experiências.



Sendo a crueldade “a imposição de dor física sobre um ser frágil como forma de causar angústia e medo” (Gatta, 2018a, p. 95), Shklar a coloca como pilar do liberalismo do medo. Em Ordinary Vices, Shklar trabalha os vícios humanos e a condição de vítima ou de ser frágil. Ser frágil é assumir a condição de caminhante que anda pelo campo minado e que em algum momento se tornará vítima diante da inevitável explosão. E quem anda pelo campo minado? Ou, mais literalmente, quem são as vítimas das opressões das diversas formas de poder – públicas e privadas? A incerteza sobre quem são os seres frágeis passíveis de serem considerados vítimas leva Shklar à seguinte resposta: a condição de vítima é um atributo de toda humanidade, ou seja, todo ser humano possui a capacidade de indignação diante de um ato de crueldade, porque nós somos capazes de perceber que esse ato pode estar potencialmente direcionado a nós. Disso, segue que as vítimas da crueldade são indivíduos ordinários, comuns (Gatta, 2018a, p. 96).



A tensão entre a inevitabilidade dos vícios humanos e a impossibilidade de consentir com eles sobressai como uma tarefa permanente de todo indivíduo, especialmente quando o vício é perpetrado pelos fortes ou poderosos contra os fracos ou vulneráveis. Olhando para o catálogo de vícios humanos, Shklar reivindica Putting cruelty first como exercício fenomenológico direcionado a desestabilizar categorias políticas ossificadas na ideologia, buscando construir um conceito capaz de mobilizar os elementos centrais de seu liberalismo na proteção do indivíduo ordinário (Gatta, 2018a, 98-99).



Shklar faz uma dura crítica ao liberalismo, destacando que ele possui um grande débito com a misantropia. O corolário liberal do governo das leis nasce da observação de que seres humanos, em geral, não são criaturas virtuosas. Relembrando Maquiavel, Shklar considera a misantropia como um vício político tão pernicioso quanto a crueldade, vez que ela não se importa com os danos causados aos indivíduos, que, aliás, não são nada além de miseráveis espectadores de sua própria glória ou ruína. Daí a necessidade de um comprometimento com alguma perspectiva progressista e legalista que não tolere a crueldade e que não se acomode diante das situações de injustiça. Aliado ao ceticismo, esse compromisso desafia a inércia conservadora da crença de que os eventos estão determinados por forças alheias ao controle humano. Desafiadoramente, Gatta (2018a, p. 104) propõe:



Minha sugestão provocativa é: Shklar realmente nunca viu seu ceticismo em contraste com seus comprometimentos progressistas para abandonar a crueldade e o medo. E isto é uma importante contribuição para a reconceituação do liberalismo para nossos dias.



O capítulo 5 trata de uma perspectiva agonística para o uso das categorias medo e crueldade. Cotejando Ordinary Vices e Legalism, Gatta (2018a, p. 110) sugere que a instância agonística da política de Shklar é resultado da articulação entre comprometimento e ceticismo. Essa tensão coloca ao indivíduo o desafio prático de mobilizar suas convicções no campo político, tornando-se um ser capaz de produzir intervenções, sem, contudo, a pretensão de que suas convicções sejam tomadas como verdade ou como uma espécie de ordem natural das coisas ou da história.



Na tentativa de pensar sobre as conexões entre a moralidade, a Política e o Direito no campo do liberalismo, o ceticismo de Shklar coloca a ética, enquanto espaço não-neutro em relação à compreensão das situações de injustiça, em perspectiva política. Esse movimento intelectual também é fundamental para compreensão do Direito como um espaço que não pode ser caracterizado pela neutralidade em relação à paisagem política que ajuda a construí-lo (Gatta, 2018a, p. 110).



Não existindo por si mesmo, o Direito não é autojustificável. Ele deve sempre ser visto e revisto em conexão com a moralidade e a Política. Legalism é uma crítica (i) ao Direito Natural como ideologia de consenso, (ii) à inabilidade do Positivismo Jurídico13 de reconhecer sua própria posição como uma forma de ideologia e (iii) à geral exposição da legalidade como ideologia ‘por si mesma’ nos julgamentos políticos internacionais (Gatta, 2018a, p. 111). Rejeitando a ilusão da neutralidade do Direito, Legalism defende a legalidade como uma posição ideológica dentre outras: a proteção de ‘minorias permanentes’. Não estando fundado numa concepção de indivíduo forte, independente e empoderado, a legalidade deve estar voltada à proteção dos sujeitos não-empoderados, abusados e intimidados (Gatta, 2018a, p. 111). Shklar propõe que a legitimidade da legalidade deriva da possibilidade de ela ser instrumento de políticas de tolerância e de pluralismo prioritárias num Estado de Direito.



O capítulo 6 argumenta sobre como uma leitura agonística contribui para dar sentido à centralidade das vozes marginalizadas na perspectiva do liberalismo do medo. São essas vozes que redimensionam os conceitos de justiça e cidadania por meio da ação prática na dimensão política. Retomam-se o indivíduo e o liberalismo como as melhores perspectivas para empoderar e proteger os vulneráveis e excluídos. A luta por proteção jurídica:



[...] nasce num contexto específico, um contexto que é afetado pelas configurações morais e políticas do poder. Que ele [o Direito] seja um instrumento indispensável em uma sociedade liberal não significa que ele não deva ser discutido criticamente. (Gatta, 2018a, p. 127)



A partir do pensamento de Montaigne sobre as guerras religiosas, Shklar faz análise das atrocidades (torturas e massacres) resultantes das duas guerras mundiais. O liberalismo do medo é cético em relação à possibilidade de a realidade ser conformada por uma ordem normativa estável, tal como proposto pelo liberalismo de direitos. Para Gatta (2018a, p. 118), em Shklar as vítimas são capazes de desafiar a gramática e a semântica da realidade que as constituem. As vozes das vítimas são o esforço político que ecoam na esfera pública, denunciando politicamente a crueldade a que estão submetidas. Por isso, o liberalismo do medo não é um liberalismo sem esperança, mas um liberalismo sem ilusões, no qual os direitos são instrumentos indispensáveis para proteção das vítimas.14



Relacionando o radicalismo cético ao conceito de cidadania das obras The Faces of Injustice e American Citizenship, Gatta (2018a, p. 125-126) afirma que, numa sociedade liberal, a cidadania deve significar olhos e ouvidos atentos aos abusos de poder do Estado e das Corporações. Em suas palavras:



Aqui, literal e diretamente, as margens falam, suas vozes reivindicam, e suas reivindicações – de acordo com Shklar – devem ser simples e diretamente ouvidas, seus valores transcendem aquilo que está estabelecido conforme o Direito, fazendo uma rica contestação política. (Gatta, 2018a, p. 127)



Observando a história das injustiças produzidas pela escravidão nos EUA e tendo em conta sua condição de mulher branca, refugiada, esposa, mãe e professora, Shklar mantém os olhos abertos e os ouvidos atentos às injustiças dentro e fora do contexto da sociedade norte-americana.15American Citizenship explicita as contradições da ideia de cidadania a partir dos conceitos de trabalho, status social e classe. Além do exercício das liberdades negativas, a cidadania deve estar comprometida com a ação protagonizada pelos cidadãos, especialmente por aqueles à margem. Essa proposta indica que, além da necessária dimensão formal, os direitos ao trabalho e ao voto devem ser compreendidos como possibilidade teórica e prática de eliminação das situações de crueldade. À dimensão formal alia-se a dimensão econômica da cidadania, vez que “o direito de ganhar sua própria vida, efetivamente aumenta o escopo da cidadania para incluir a independência econômica.” (Gatta, 2018a, p. 136). Cidadania é um estado de alerta sobre as avenidas que podem ser abertas pela crueldade, especialmente em relação aos mais vulneráveis. Se, por um lado, instituições como o Direito são cruciais para a defesa dos indivíduos, por outro, elas não são suficientes.



O liberalismo do medo reivindica proteção ao indivíduo por meio de direitos para minorias permanentes e se preocupa com as vozes das vítimas das opressões (Gatta, 2018a, p. 127). O ceticismo radical é direcionado para a opinião predominante sobre o que é justo, o que é possível e o que é inescapável, como forma de abrir espaços de contestação ao status quo. Shklar põe foco no potencial de falibilidade da justiça em vez de buscar a crença no seu triunfo. Os direitos não são apenas fronteiras neutras entre indivíduos iguais, mas, também, instrumentos de defesa dos mais fracos frente aos mais poderosos.



Como elemento agonístico, o sentimento de injustiça pode ser produzido de formas diferentes como, por exemplo, pela fortuna da vida, por um desastre natural ou por condições sociais. Contudo, em todas essas experimentações humanas há uma pergunta fundante e inquietante: o que é um sentimento de injustiça? (Ventura, 2018, p. 80-81). Na mobilização das respostas possíveis à questão da injustiça, Gatta (2018a, p. 123) argumenta que “O liberalismo é justificado por ser o melhor equipamento (instrumento) para empoderar e proteger os vulneráveis e excluídos.”. Não por acaso que The Faces of Injustice aponta para tarefa política de transformar em injustiça aquilo que é ‘apenas’ hostilidade e má sorte. A partir da ênfase na distinção entre injustiça e má sorte, Shklar novamente traz ao centro do liberalismo do medo seu protagonista: a vítima.



O século XXI é inaugurado pelos atentados às torres gêmeas do World Trade Center em 2001, em Nova York, seguido da invasão do Iraque em 2003. Em 2008 a crise financeira do mercado imobiliário norte-americano impactou a economia mundial interferindo na situação social de vários indivíduos ao redor do mundo. As diversas guerras no oriente médio, em especial da Síria e da Líbia em 2011, e os desastres naturais, como o terremoto no Haiti em 2010 e o Tsunami no Japão em 2011, também se destacam como situações sociais que podem ser compreendidas como hostilidade e má-sorte. Em 2015 a crise dos refugiados impactou o mundo, especialmente a Europa, cujo símbolo foi a chocante foto do menino Alan Kurdi,16 morto por afogamento numa praia da Turquia. Por fim, ainda sem a pretensão de apresentar um catálogo completo de situações dramáticas experimentadas pela humanidade no século XXI, a pandemia produzida pelo Coronavírus (COVID-19) que matou 654.309 pessoas no mundo.17



Se o liberalismo é um conceito em disputa ao longo do tempo, não seria diferente no século XXI (GATTA, 2018b). Pensar e repensar os fundamentos de uma sociedade que possa ser denominada ‘liberal’ é uma tarefa que se impõe a toda pessoa que se coloque a refletir sobre a legitimidade do uso do poder e da coerção. Shklar cumpriu essa tarefa a partir de sua experiência/pensamento ao longo do século 20. A partir da pergunta “o liberalismo do medo pensado por Shklar tem alguma coisa a dizer sobre a crueldade infligida às pessoas, especialmente às minorias permanentes, na contemporaneidade?” Gatta cumpre aquela tarefa como reflexão prospectiva para o século XXI.



É possível ser cético e comprometido ao mesmo tempo? Com Gatta (2018a), podemos responder afirmativamente à pergunta. Putting cruelty first é apostar num ceticismo radical diante da história dos indivíduos e das sociedades, identificando as vulnerabilidades a que todos os seres humanos comuns estão submetidos. Mas é, também, não se conformar com uma ordem natural das coisas, nem com um determinismo histórico, para reivindicar na esfera pública a eliminação das circunstâncias de opressão impostas às minorias permanentes.



As vozes das minorias devem ser escutadas, viabilizadas e levadas em consideração como forma de revisão política da estrutura jurídica e proteção dos indivíduos comuns ante às opressões oriundas das estruturas de poder. Sendo o medo um sentimento comum a todos os indivíduos, a crueldade é a raiz conceitual que fundamenta o ceticismo radical apontando para a necessidade de proteção do indivíduo.



A foto de Omran simboliza um tema da contemporaneidade: o medo oriundo da crueldade a que a vítima, uma criança, foi exposta. Se a definição Freedom is no fear fizer algum sentido para o leitor, o livro de Giunia Gatta é uma obra indispensável para lançar luzes no debate público sobre o liberalismo no século XXI.

Agradecimentos

Agradeço à editora Routledge que disponibilizou um exemplar do livro Rethinking Liberalism for the 21st Century. The Skeptical Radicalism of Judith Shklar para elaboração desta resenha. Agradeço também aos diálogos com Elydia Monteiro, Giulle Vieira, Hélio Oliveira Júnior, Lucas Petroni, Ludmilla Camilloto, Marcus Paulo Barbosa, Raíssa Ventura e Sérgio da Mata.


1
Giunia Gatta é professora do Departamento de Análise Política e Gestão Pública da Universidade de Bocconi, Itália.
2
Gatta (2018a) apresenta uma vasta bibliografia sobre Shklar. Para os objetivos desse trabalho, o foco será nas obras: After Utopia: The Decline of Political Faith (Shklar, 2015); Legalism: Law, Morals, and Political Trials (Shklar, 1964), The Liberalism of Fear (Shklar, 1989a), The Faces of Injustice (Shklar, 1990) e American Citizenship (Shklar, 1991). Daqui em diante utilizarei nomenclatura abreviada para duas obras: After Utopia e Legalism.
3
Putting Cruelty First é o título do primeiro capítulo de Ordinary Vices. Inicialmente, fiz a tradução deste título por ‘colocando a crueldade em primeiro lugar’. Contudo, ao longo do texto, a tradução literal não foi capaz de expressar o sentido do conceito de Shklar, motivo pelo qual preservei o termo no original.
4
Liberalism of permanent minorities.
5
Por exemplo, Primo Levi.
6
Shklar possuía grande habilidade para lecionar aos seus alunos.
7
Nos dizeres de Gatta (2018a, p. 26), a trajetória acadêmica de Shklar é o exercício da “teoria política como vocação.”.
8
Movimento de mulheres contrárias ao aborto.
9
Como estabelecido na literatura da filosofia política, especialmente na teoria política norte-americana, as décadas de 70 e 80 foram marcadas pelo debate entre o liberalismo e o comunitarismo. O primeiro, sob a influência do pensamento de Kant, se sustenta no princípio da autonomia individual sendo caracterizado criticamente pela ideia de ‘atomismo’. O segundo, sob a influência do pensamento de Hegel, se sustenta no argumento da organicidade da sociedade sendo caracterizado pela ‘totalidade da comunidade’. Gatta alerta que a leitura de Shklar do pensamento de Hegel é um movimento crucial para o estabelecimento de seu argumento no tocante às ‘margens do liberalismo’, sem, contudo, fazer parte daquele contexto dos debates entre liberais e comunitários.
10
O termo legalism utilizado em minúsculo no texto de Shklar será traduzido aqui por legalidade.
11
Legalism é uma defesa da legalidade como forma de proteção das minorias permanentes contra as opressões, especialmente aquelas produzidas pelo Estado.
12
Para Shklar (2015) são expoentes do liberalismo conservador Wilhelm Röpke, Friedrich Von Hayek, Bertrand de Jouvenel, Michael Polanyi, Alfred Cobba, e Ludwig von Mises. Para aprofundar no contexto dessa proposta conceitual ver o capítulo VI de After Utopia.
13
Shklar fez um interessante debate com Austin, Kelsen e, especialmente, Hart.
14
Reivindicar que os indivíduos possuem direito de falar só faz sentido se considerarmos que aquelas vozes possuem esperança. Citando Wittgenstein, Ventura (2018, p. 09) sustenta que “Pode falar quem tem esperança, e vice-versa.”.
15
Shklar (1989b, 1990) não teorizou nem o racismo nem o feminismo. Esses temas, contudo, não passaram desapercebidos aos seus olhos, especialmente em American Citizenship.
16
Omran e Alan, duas imagens de crianças e um mesmo sentimento: a crueldade.
17
Dado quantitativo de 29 de julho de 2020.
GATTA, G. Rethinking liberalism for the 21st Century: the skeptical radicalism of Judith Shklar. Routledge: New York, 2018a.

REFERÊNCIAS
GATTA, Giunia. (2018a), Rethinking liberalism for the 21st century. The skeptical radicalism of Judith Shklar. Routledge: New York.
GATTA, Giunia Valeria. (2018b), Shklar made me do it! The liberalism of fear and international intervention. Rivista quadrimestrale” 2/2018, pp. 261-282. Disponível em: <https://www.rivisteweb.it/doi/10.4479/90792>. Acesso em: 05.01.2020.
SHKLAR, Judith N. (2015), After Utopia: The Decline of Politcal Faith. Princeton: Princeton University Press. Disponível em: muse.jhu.edu/book/43403. Acesso em: 05.01.2020.
SHKLAR, Judith N. (1964), Legalism (an essay of Law, Morals and Politics). London: Oxford University Press.
SHKLAR, Judith N. (1984), Ordinary Vices Massachusetts: Harvard University Press.
SHKLAR, Judith N. (1989a), Liberalism of fear. In: ROSENBLUM, Nancy L. Liberalism and the Moral Life HARVARD UNIVERSITY PRESS: Cambridge, Massachusetts, 1989, p. 21-38.
SHKLAR, Judith N. (1989b), A life of learning. Charles Homer Kaskins Lecture of 1989 American Council of Learned Societies. Washington, D.C. April 6, 1989 ACLS OCCASIONAL PAPER, No. 9. Disponível em: https://publications.acls.org/OP/Haskins_1989_JudithNShklar.pdf Acesso em: 03.01.2020.
SHKLAR, Judith N. (1990), The Faces of Injustice Yale University Press.
SHKLAR, Judith N. (1991), American Citizenship. The quest for inclusion Massachusetts: Harvard University Press.
SHKLAR, Judith N. (2015), After Utopia: The Decline of Political Faith Princeton: Princeton University Press. Disponível em: https://muse.jhu.edu/book/43403 Acesso em: 20.01.2020
VENTURA, Raíssa Wihby. (2018), O outro nas fronteiras. Para uma teoria política da migração Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/T.8.2019.tde-09052019-103345. Acesso em: 2020-02-10.

Negros nas Cidades Brasileiras (1890-1950)







RACIALIZAÇÃO URBANA
URBAN RACIALIZATION

Danilo França
BARONE, Ana; RIOS, Flavia. Negros nas Cidades Brasileiras (1890-1950). São Paulo: Intermeios, Fapesp. 2018. 358p


Tanto as hierarquias raciais presentes na nossa sociedade quanto as características da nossa estruturação urbana fazem da questão racial e da questão urbana temas-chave para discussões sobre as especificidades da modernização no Brasil. No entanto, cada uma destas problemáticas possui suas respectivas tradições de investigação em subcampos específicos das ciências sociais, não havendo grandes vias de diálogo e articulação entre ambas. O livro Negros nas Cidades Brasileiras (1890-1950), organizado por Ana Barone e Flavia Rios, desponta como uma importante contribuição para a construção dessas pontes. Trata-se de uma coletânea composta por onze capítulos oriundos de comunicações apresentadas por seus respectivos autores em Simpósio igualmente intitulado realizado em 2015 na Universidade de São Paulo.



Em sua introdução, as organizadoras ressaltam que o recorte temporal dos estudos que integram a coletânea compreende o “período inicial de absorção urbana dos grupos negros no pós-abolição e na primeira fase de urbanização do país” (p. 15). A obra visa os arrojados objetivos de adentrar o campo pouco explorado das disputas pelo espaço por grupos étnico-raciais, ampliar o domínio de estudo das relações raciais e recompor o debate sobre produção e ocupação das cidades a partir da perspectiva racial. Nesse intento, as organizadoras ressaltam a diversidade disciplinar, temática, teórica e metodológica contida na coletânea que congrega estudos acerca de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas e São Luís do Maranhão. Além disso, tal como destaca o prefácio de Mônica Junqueira de Camargo, a obra condensa trabalhos de recuperação de vestígios culturais (materiais e imateriais) negros apagados ou escondidos no processo de modernização.



Não é a primeira vez que se organizam coletâneas com propostas análogas. Exemplos são Questões Urbanas e Racismo, organizada por Renato Emerson dos Santos (2012) e A Cidade e o Negro no Brasil, organizada por Reinaldo José de Oliveira (2013). Não obstante, a principal virtude do objeto desta resenha está para além de ter posto em evidência uma articulação de temáticas ainda incipiente nas ciências sociais. A coletânea o faz reunindo textos de autores consagrados, cuja obra tem relevância central em seus respectivos campos, com trabalhos de pesquisadores mais jovens, mas já com produções e agendas de pesquisa inquestionavelmente promissoras. Isso contribui para conferir legitimidade e acentuar a importância do desenvolvimento de tal articulação temática nas ciências sociais.



Como um primeiro apontamento crítico deve-se notar que, talvez devido ao fato de a maior parte dos autores ser proveniente de campos de estudos sobre relações raciais, faltam formulações sobre problemáticas propriamente urbanas. Em particular, não são referenciadas grandes teorias urbanas e não são formuladas as especificidades do urbano brasileiro e sua relação com as questões raciais. Os capítulos do livro tratam de negros nas cidades – são abordados aspectos da vida social da população negra em contextos urbanos, de modo que o urbano se apresenta mais na forma de cenários ou contextos nos quais se desenrolam os fenômenos aprofundados nos capítulos. Não estão formuladas questões mais gerais que concernem a uma problemática ao mesmo tempo racial e urbana: qual seria a questão racial da cidade?1



Isso revela o que, talvez, seria a principal lacuna da coletânea, decorrente da própria condição de incipiência da conjunção de questões raciais e urbanas. Da falta da formulação de um conjunto mais unívoco de problemáticas de pesquisas raciais e urbanas resulta não apenas a pouca interlocução (apesar do recorte histórico similar) entre os capítulos, mas também uma certa falta de homogeneidade na incorporação de temas que sejam ao mesmo tempo raciais e urbanos: enquanto alguns capítulos podem ser lidos como exemplos inegáveis dessa articulação (como “Espaço, cor e distinção social em São Luís (1850-1888)”, de Matheus Gato), outros, no máximo, a tangenciam (como “Brincando de índio... e muito mais: atravessando espaço (e tempo) com os Oito Batutas, dentro e fora da cidade”, de Marc Hertzman).



É verdade que uma resposta à lacuna aqui apontada não foi uma tarefa à qual a coletânea se propôs. Contudo, o livro teria sido uma boa oportunidade para o esboço de alguma formulação nesse sentido na forma de um epílogo, uma vez que diversos capítulos insinuam elementos para tal elaboração, em especial os três primeiros, de viés mais teórico. Os dois primeiros capítulos, de autoria de Valter Roberto Silvério (“Uma releitura do ‘lugar do negro’ e dos ‘lugares da gente negra’ nas cidades”) e de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (“Formações nacionais de classe e raça”), respectivamente, abordam magistralmente as especificidades do processo de racialização no Brasil. O terceiro, de Renato Emerson dos Santos (“Expressões espaciais das relações raciais: algumas notas”) dá mais ênfase a questões espaciais.



O núcleo do argumento de Antonio Sérgio Guimarães reside na oposição entre os conceitos de racialização e de formação racial, como dois lados do processo histórico de construção social da raça. A racialização diz respeito a processos de dominação e exploração nos quais categorias raciais são atribuídas para designar os grupos em situação de subordinação. Já a formação racial designaria um tipo de resistência à racialização, no qual os grupos subordinados assumem o pertencimento racial visando uma inversão dos estigmas. Sem a mesma profundidade da apresentação dos conceitos acima, processos ocorridos no espaço urbano, como a segregação ou a desvalorização de áreas habitacionais, são apontados como mecanismos e rotinas que reproduzem e institucionalizam a racialização.



Valter Silvério, por sua vez, avança mais em formulações acerca da formação de territórios e espacialidades negras como decorrência do processo de racialização. Um dos resultados da racialização seria a construção de uma representação de lugar do negro que informa percepções, experiências e ações no espaço urbano, bem como a produção deste. Ademais, o autor aponta, como consequência da não proteção de ex-escravos no pós-abolição,



a concentração de população negra em áreas urbanas (desprovidas de equipamentos urbanos essenciais ou de boa qualidade) e rurais (quilombos, terras de negros etc.), a regulação policial e política dos espaços ocupados e a cooptação/negação dos conteúdos das práticas culturais singulares das espacialidades negras. (p. 39)



No capítulo de Renato Emerson dos Santos há uma articulação teórica mais explícita entre relações raciais e espaço. Uma de suas ideias chave é a de que as “relações raciais grafam o espaço”. O espaço é pensado como uma acumulação de tempos, ou seja, as formas espaciais (ou “rugosidades do espaço”) são engendradas a partir da acumulação de processos histórico-sociais. Assim, as relações raciais instituem “geo-grafias” com duração variada, por exemplo, territorialidades definidas por grupos culturais como as posses de hip-hop, padrões de segregação espacial ou territórios quilombolas. Estas geo-grafias racializadas organizam as experiências de indivíduos e grupos no espaço. Daí a segunda ideia desenvolvida no capítulo, a de uma “organização espacializada das relações raciais”. Nela, os diferentes espaços, pensados enquanto conformadores de “contextos de interação”, podem ou não ensejar a mobilização do dado racial enquanto princípio de classificação, seja para instaurar ou reforçar barreiras e hierarquias, seja para favorecer processos de resistência à dominação. Desses princípios decorre que “a espacialidade de um ator é de suma importância” (p. 91) para definir suas possibilidades de ação, interlocução e articulação.



A convergência dos argumentos dos três primeiros capítulos pode ser sumarizada a partir da menção que Valter Silvério faz a W. E. B. DuBois: a população de origem africana tornou-se negra na Filadelfia urbana. Isto é, o processo de racialização foi marcado por uma forma específica de inserção na urbanidade. A partir da desagregação do regime escravocrata, os ex-escravos e seus descendentes, ao mesmo tempo em que eram transformados em mulheres e homens livres, foram também racializados, ou seja, categorizados como grupo a partir de atributos raciais considerados inferiores, de características morais, intelectuais, estéticas e culturais negativas. Desse modo, indivíduos, grupos ou mesmo bairros são classificados como negros e a eles são imputados estigmas negativos. É parte fundamental desse processo de racialização a fixação de populações negras em determinados territórios urbanos ou rurais, representados como “lugar de negro”, condensando estigmas negativos e contribuindo para a consolidação da racialização. A racialização institui, portanto, “geo-grafias”, ou seja, formas espaciais são constituídas a partir dos processos históricos que envolvem classificações raciais. Em contrapartida, as distintas configurações espaciais são elemento ordenador das relações raciais, podendo favorecer tanto a racialização quanto a formação racial.



Em que pese tais enunciados não serem suficientes para constituir uma problemática unívoca para um campo de pesquisas sobre raça e espaço urbano, eles permitem, no mínimo, uma leitura mais convergente dos diversos estudos que compõem a obra, pavimentando as vias de interlocução entre os capítulos da coletânea.



Um traço que distingue o livro aqui resenhado de outras coletâneas sobre raça e espaço urbano é o seu enfoque num determinado período passado. Contudo, a despeito do recorte histórico enunciado ser 1890 a 1950, dois dos capítulos retrocedem a períodos anteriores à extinção formal da escravidão (1888), épocas, contudo em que já se observava a desarticulação do regime escravocrata. As análises de fenômenos socio-históricos desse momento crucial para a transição das populações de origem africana do status de escravo ao de cidadão possibilitaram aos autores identificar características do processo de racialização da população negra ainda em seus estágios preliminares.



Em “Escravas e libertas na cidade: experiências de trabalho, maternidade e emancipação na cidade de São Paulo (1870-1888)”, Maria Helena Pereira Toledo Machado e Marília Bueno de Araújo Ariza propõem uma análise da história de mulheres escravizadas, libertas e, mais especificamente, libertandas, sob a perspectiva do trabalho e da maternidade. A partir na década de 1870, proliferaram na cidade de São Paulo – que tinha como peculiaridade um maior contingente de mulheres e crianças dentre os escravizados – os contratos de aquisição de alforria por parte dessas mulheres e, num segundo momento, de seus filhos e parentes. Tratava-se de um longo processo de aquisição da liberdade pois, dado que os senhores teriam direito a uma indenização pela perda da trabalhadora, as libertandas adquiriam sua alforria contraindo dívidas com terceiros, os quais seriam pagos através de anos de serviços semelhantes àqueles exercidos na condição de escravizada (como o trabalho doméstico) em contratos que restringiam sua autonomia. Uma vez obtida a liberdade, iniciava-se um novo ciclo para superar obstáculos ao exercício da maternidade e manter a tutela sobre seus filhos.



As interdições sobre a autonomia familiar e materna das libertandas, libertas e escravas [além do] investimento permanente de economias e trabalho na sua alforria e na de seus familiares, levando-as a adentrar o mundo da liberdade formal em condições de continuada exploração e enorme pobreza, e as diversas barreiras impostas à sua autonomia impactaram profundamente não apenas os termos de sua saída da escravidão, mas a própria substância da liberdade que conquistavam. (p. 142)



No capítulo “Espaço, cor e distinção social em São Luís (1850-1888)”, Matheus Gato parte da constatação de que a racialização – ou, em seus termos a “correlação entre cor e status” (p. 219) – foi heterogênea no território nacional, e dedica-se a revelar as peculiaridades desse processo na São Luís do Maranhão da segunda metade do século XIX, com especial acento na relação entre “cor, condição social, circulação e moradia” (p. 228). Ou seja, as hierarquias sociais com base na cor são refletidas nos espaços de habitação e deslocamento dos indivíduos distintamente classificados segundo categoriais raciais. Isso é demonstrado no capítulo através de uma rica descrição dos espaços de moradia e dos hábitos e usos do espaço urbano por parte de grupos da população ludovicense que que representam posições-chave para a compreensão das hierarquias sociais, raciais e espaciais em um momento de crise da ordem senhorial: a (branca) família tradicional maranhense e o mundo dos sobrados da 1ª freguesia, onde também se concentrava a população de “pretos” escravizados; os comerciantes portugueses dessa mesma freguesia em suas lutas materiais e simbólicas para consolidar sua ascensão social; “a cidade negra”, ou seja, a 2ª e 3ª freguesias, onde predominavam “pretos” e “pardos” livres; e, por fim, os “últimos africanos de São Luís”.



Três dos capítulos da coletânea exploram temas relativos ao transporte por ferrovias, que podemos considerar um fenômeno essencialmente urbano (e moderno), seja porque a implementação dessas foi decisiva para a consolidação dos principais núcleos urbanos do país, seja pela significativa importância do transporte de massas sobre trilhos nas cidades em crescimento.



Os textos assinados por Andrelino Campos e por Lília Moritz Schwarcz abordam, ambos, as linhas férreas que faziam a conexão do Rio de Janeiro com os seus subúrbios. As descrições dos subúrbios – sempre enfatizando o fato de agregarem grande população negra, principalmente após as reformas urbanas do início do século XX – são reveladoras não só de como a raça está grafada no espaço mas também, e principalmente, de como os subúrbios, suas estações de trem e seus distintos vagões em diversos horários conformam contextos de interação que permitem certas conexões, aproximações e distanciamentos condicionados pela mobilização de classificações raciais por parte dos agentes.



No primeiro (“A produção da cidade em ‘tons’ de preto: do assentamento dos trilhos ferroviários à permanência dos campos negros na produção do subúrbio carioca (2000-2010)”), Andrelino Campos – falecido pouco antes da publicação do livro – aborda os subúrbios cariocas localizados às margens das estradas de ferro a partir da noção de “campos negros” designados como “(a) região – um conjunto de bairros que detêm alguma homogeneidade na forma conteúdo, formando (b) lugares que funcionam como produtores e retentores de identidades, ou (c) grandes territórios/complexos, loci de conflitos estruturais” (p. 98). Essa noção de campos negros foi originalmente empregada nas análises de Flávio Gomes (1995) sobre redes de relações que tinham como núcleo territórios quilombolas na zona rural do Rio de Janeiro oitocentista. Campos aponta que muitas freguesias rurais cariocas agregavam um significativo contingente populacional negro já no século XIX e, a partir de instalação das linhas férreas, esse contingente só fez aumentar com a migração de população negra em direção aos subúrbios.



Em “Lima Barreto e a Central do Brasil: uma linha simbólica a separar o subúrbio da capital”, Schwarcz apresenta a “geografia íntima e pessoal” (p. 179) que Lima Barreto descortina enquanto passageiro dos trens da Central do Brasil em seus deslocamentos diários do subúrbio até o centro do Rio de Janeiro.



Os subúrbios não eram, pois, regiões homogêneas, mesmo para Lima Barreto. Se, por oposição ao centro, pareciam muito semelhantes entre si, olhados de dentro deixavam perceber outras hierarquias e diferenciações internas. A combinação das estações de trem – ora mais elegantes, ora mais simples – cor e classe era fundamental. (p. 211)



O capítulo de James Woodard (“‘Por essa estrada da justiça e da liberdade’: aspectos da mobilização afrodescendente em Campinas”) pode ser lido como exemplar da importância da “espacialidade do ator” em processos de formação racial. O líder negro e ferroviário Armando Gomes é a figura central do capítulo que descreve sua atuação na greve dos ferroviários campineiros de 1920, seu contexto e consequências. O texto apresenta uma rede de relações marcada por alianças e dissensos políticos e ideológicos que envolve diferentes segmentos da comunidade de ativistas negros de Campinas, e os – não menos politicamente diversos – republicanos radicais, também descritos pela expressão racially progressive white allies.



A leitura da espacialidade de processos de formação racial evidencia-se ainda mais nos capítulos assinados por Petrônio Domingues e Mario Augusto Medeiros da Silva. Esses dois capítulos abordam formas de sociabilidade também essencialmente urbanas – clubes de futebol e clubes sociais –, mas com a especificidade de serem organizações com o objetivo de agregar a população negra, impedida de participar como membros e atletas de outros clubes. Em “‘O esporte da raça’: o futebol no meio afro-paulista”, Domingues enfoca a trajetória do São Geraldo, o alvinegro da Barra Funda, bairro que abriga importante estação ferroviária e um dos principais “territórios negros” paulistanos do início do século XX. Entre as décadas de 1920 e 1940, o São Geraldo foi um destacado time de futebol formado apenas por jogadores negros, cujas conquistas foram motivo de celebração por parte de organizações e da imprensa negra da época.



Mesmo impedidos de tantas maneiras de participar do corpo simbólico, político e social da nação, os autodeclarados ‘homens de cor’ procuraram cavar espaços de inserção e visibilidade, inclusive nas atividades desportivas, interagindo e competindo com os brancos no campo de jogo. (...) Cada êxito de um clube ou selecionado dos ‘pretos’ era festejado como uma conquista de toda a população negra. (p. 296)



Mário Medeiros, no seu “Clubes Sociais Negros Paulistas (1890-1950)”, apresenta um cuidadoso levantamento desses clubes, inscrevendo-o num quadro analítico sobre o associativismo negro. Ao final do capítulo, o autor fornece uma interessante pista empírica que conecta várias das contribuições a esta coletânea:



Há uma forte hipótese de que a organização do trabalho ferroviário tenha sido uma das formas possíveis de acesso à cidadania do ex-escravizado e do liberto. (...) Quase todas as sedes dos Clubes visitados estavam próximas às estações de trem de suas cidades. (...) grande parte dos fundadores dessas Sociedades tiveram entre seus membros trabalhadores dessas companhias. (...) Todos necessitados, nos momentos de alta discriminação social em suas cidades, de espaços de lazer e convivência político-cultural. Espaços de sociabilidade e também de socialização negra, onde, de diferentes maneiras, se ritualizava uma luta antirracista. (p. 331)



Por fim, mesmo o capítulo de Marc Hertzman acerca das performances do Oito Batutas – conjunto musical liderado por Pixinguinha e Donga – em suas turnês na década de 1920, que apenas resvala em problemáticas urbanas, permite-nos vislumbrar uma leitura de como diferentes espaços condicionam diferentes modalidades da racialização. Nele, o autor mostra a variedade de representações – sempre vinculadas a determinados estereótipos raciais – pelas quais os Oito Batutas eram percebidos de acordo com o local onde iriam se apresentar.



Com a organização de Negros nas Cidades Brasileiras (1890-1950), Ana Barone e Flavia Rios oferecem à literatura das ciências sociais uma importante perspectiva sobre modernização, urbanização e raça na sociedade brasileira. As formulações teóricas enunciadas nos três primeiros capítulos ressoam nos estudos empíricos apresentados nos oito capítulos seguintes configurando uma chave de leitura original acerca dos aspectos urbanos (e/ou espaciais) do processo de racialização (e de formação racial) no Brasil. Tais virtudes fazem dessa obra uma referência incontornável para a construções de confluências entre as problemáticas racial e urbana.


1
Evoco, dessa maneira, uma diferenciação tradicionalmente formulada em argumentos legitimadores da especificidade da antropologia urbana enquanto campo de pesquisa. Trata-se da distinção entre uma antropologia na cidade, que aborda fenômenos que se passam no contexto urbano, e uma antropologia da cidade, que visa tomar o urbano “como tema substancial de reflexão” (Frugoli Jr, 2005).
Este trabalho foi apoiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
DOI: 10.1590/3610716/2021

BIBLIOGRAFIA
FRUGOLI JR., Heitor. (2005), “O urbano em questão na antropologia: interfaces com a sociologia”. Revista de Antropologia, 48, 1: 133-165.
GOMES, Flávio dos Santos. (1995), História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.
OLIVEIRA, Reinaldo José de (org). (2013), A Cidade e o Negro no Brasil: Cidadania e Território. São Paulo, Alameda.
SANTOS, Renato Emerson dos (org.). (2012), Questões Urbanas e Racismo. Petrópolis, RJ, DP et Alii; Brasília, DF, ABPN.