Sérgio Buarque de Holanda entre a história e a sociologia
Laura De Mello E Souza
Monções
Sérgio Buarque de Holanda
Brasiliense, 326 págs.
Laura De Mello E Souza
Monções
Sérgio Buarque de Holanda
Brasiliense, 326 págs.
Caminhos e Fronteiras
Sérgio Buarque de Holanda
Companhia das Letras, 301 págs.
Sobre Sérgio Buarque de Holanda, existem hoje algumas certezas bem firmadas. Dentro e fora dos círculos acadêmicos, é visto como o maior dos historiadores brasileiros. Todo leitor culto reconhece em Raízes do Brasil uma obra-prima ; todo estudioso de História considera Visão do Paraíso a expressão máxima da erudição nacional. Existem entretanto dois livros seus que ainda não receberam a atenção merecida: Monções, de que a imprensa praticamente ignorou a edição ampliada vinda à luz em 1990; Caminhos e Fronteiras, reeditado pela terceira vez em 1994 e tratado com igual indiferença.
A afinidade entre os dois trabalhos é evidente, e, aliás, explicitada pelo autor na Introdução ao segundo. Monções foi publicado pela primeira vez em 1945, e Caminhos e Fronteiras reuniu, doze anos depois, ensaios escritos nesse meio tempo. Mais de um especialista aludiu ao papel de divisor de águas representado pelos dois livros, que documentam o nascimento de um Sérgio eminentemente historiador, às voltas com os arquivos e a pesquisa sistemática de fontes primárias, e o abandono do ensaísmo mais sociológico de Raízes do Brasil (1). Da fase anterior, permaneceu entretanto a presença da cultura alemã (ou por esta influenciada), sobretudo na forma da antropologia. É interessante ressaltar esta interdisciplinariedade, central em todas as profissões de fé produzidas durante a primeira fase da "revolução historiográfica francesa", capitaneada por Lucien Febvre e Marc Bolch, e à qual Sérgio chegou por vias diferentes das dos historiadores dos Annales (2). Em decorrência do intercâmbio fecundo com a psicologia social, a sociologia, a antropologia e a linguística, os franceses postularam uma "história total", abrindo posteriormente espaço para que vicejasse uma história das mentalidades e, mais recentemente, uma história cultural. Após o estudo minucioso das técnicas e práticas da vida cotidiana - cuja inspiração veio da etnologia de Koch Grünberg, Nordenskiõld, Friederici, mas produziu resultados metodológicos originais - , encetado justamente nos dois livros que aqui se comenta, Sérgio concebeu Visão do Paraíso, obra próxima da história da cultura dos alemães mas igualmente aparentada à história das mentalidades francesa, que então - 1959 - dava seus primeiros passos.
A antropologia parece ter sido, assim, uma via necessária para refletir sobre processos históricos, notadamente no viés da análise cultural. No plano o mais genérico possível, o objeto de Monções e Caminhos e Fronteiras é a história dos paulistas antigos: populações mamelucas que viviam a cavaleiro de duas culturas, equilibrando-se na tensão entre mobilidade - o caminho, a penetração fluvial (monção) - e sedentarização - a fronteira, onde tradições de natureza diversa se combinavam, produzindo técnicas, costumes, atitudes, artefatos. Do ponto de vista metodológico, o autor busca compreender, em toda a sua complexidade, o mecanismo das trocas, sínteses e soluções culturais. Não se trata de constatar difusão de traços, mas de perceber que a forma assumida por tais traços foi definida pela situação histórica: esta é, afinal, a prova dos nove de todo o processo. Por fim, no plano mais circunscrito, a análise incide sobre a vida material - viés de que parte a compreensão mais funda, restabelecendo-se, assim, o percurso de volta do particular ao geral.
Em Monções, o autor destaca o fabrico das canoas - que o acidentado das viagens acabou por tornar cobertas -, a utilização dos rios como caminhos - introduzida pelos paulistas e imitada posteriormente no extremo Norte -, a adoção de roupas simples e rústicas, a configuração de uma dieta alimentar definida a partir das contingências da itinerância - o milho, cujas sementes eram de transporte fácil e germinação rápida; o toucinho, que se conservava bem.
Tributário, em muitos pontos, do livro anterior, Caminhos e Fronteiras apresenta, porém, complexidade bem maior. Os artigos originais datam de momentos diversos, mas o autor os dispôs de forma a dar ao todo uma grande unidade - reescrevendo, obviamente, pequenas passagens para assegurar a harmonia final. Os capítulos se ordenam em três núcleos: Índios e mamalucos, Técnicas rurais e O Fio e a teia. Nas palavras do autor, o primeiro núcleo aborda "as situações surgidas do contato entre uma população adventícia e os antigos naturais da terra com a subsequente adoção, por aquela, de certos padrões de conduta e, ainda mais, de utensílios e técnicas próprios dos últimos" (p.12). O segundo e o terceiro núcleos, por sua vez, abordam o processo de diluição desse legado, ocorrido nos primeiros tempos, e a lenta recuperação subsequente; a herança indígena se faz mais presente no segundo núcleo, pois no terceiro abordam-se "atividades que tendem a acomodar-se aos meios urbanos e se tornam, neste caso, cada vez mais dóceis aos influxos externos" (id.).
Apesar do pioneirismo no estudo do cultivo dos trigais, da pilação dos grãos, do trato do solo, da tecelagem de cunho doméstico - quando o autor mostra que a boa análise das técnicas deve se valer da antropologia e da consideração dos universos mentais envolvidos -, Índios e mamalucos se destaca das demais partes e conta entre as páginais mais brilhantes já produzidas pelas Ciências Humanas no Brasil.
Os nove artigos que compõem este núcleo se sucedem para o leitor como uma série de obras-primas impressionantes, capazes de surpreender e maravilhar a cada parágrafo. Muito antes das considerações de Carlo Ginzburg sobre o conhecimento indiciário, Sérgio Buarque de Holanda aborda este problema em "Veredas de pé posto" e "Samaritanas do sertão", detendo-se sobre a dimensão cultural dos sentidos e da percepção. No primeiro, discorre sobre a arte de se orientar no mato por meio da leitura de pegadas e ramos quebrados, mostrando ainda como há um "jeito de corpo" próprio para a marcha longa - os pés devem ficar ligeiramente voltados para dentro - , desde cedo incorporado pelos mameucos de São Paulo. No segundo, trata da questão do abastecimento de água durante as longas jornadas sertão adentro, e da forma própria aos caminhantes de decifrarem sinais referentes à existência de mananciais ou reservatórios.
"Iguarias de Bugre", "Caça e Pesca" e "Botica da Natureza" são um marco na trajetória do autor, contendo já algumas das questões posteriormente exploradas em Visão do Paraíso, onde o "gosto do maravilhoso" iria adquirir importância central. Exploram a incorporação, por parte do europeu, de hábitos alimentares, venatórios e curativos inusitados e exóticos, mostrando que, mesmo se subordinada à fome - "companheira da aventura" - , à itinerância ou à premência da doença, ela se fazia quase sempre através de critérios ora seletivos, ora analógicos. Estes últimos se encontram presentes, por exemplo, na crença na virtude de certas pedras existentes nas entranhas dos animais, identificadas pelos colonos à lendária pedra bezoar; manifestam-se ainda na adoção de certas práticas indígenas de pesca, como o hábito de intoxicar os peixes, velhas conhecidas dos portugueses. Na nova terra, diante de peculiaridades do meio natural, "onde não se reproduzem exatamente as visões habituais, a imaginação adquire direitos novos", apesar de haver sempre quem insistisse nas analogias, procurando "o honesto pão de trigo" na mandioca, a castanha européia na araucária, a uva na jabuticaba, a carne de vaca na de tamanduá - como registraram tantos dos primeiros cronistas.
Tais procedimentos, portanto, mostraram-se muito mais complexos do que as aparências levam a supor: "nada tão difícil (...) como uma análise histórica tendente a discriminar (...) entre os elementos importados e os que procederam diretamente do gentio. Traços comuns prepararam, sem dúvida, e anteciparam, a síntese desses diversos elementos" (p.78). "(...) ...são dignos de interesse, por outro lado, os processos de racionalização e assimilação a que o europeu sujeitou muitos de tais elementos, dando-lhes novos significados e novo encadeamento lógico, mais em harmonia com seus sentimentos e seus padrões de conduta tradicional" (pp.79-80).
Cabe destacar ainda "Frechas, feras, febres", o mais longo dos ensaios, e um dos mais belos - combinação exemplar de pesquisa histórica e observação etnográfica -, e "Frotas de Comércio", que retoma, às vezes de forma literal, passagens de Monções, acrescentando contudo uma analogia brilhante entre o fascínio lusitano pelo ultramar e o fascínio dos mamelucos paulistas pelo interior, as monções assumindo, neste imáginário, a forma de uma "migração ultramarina" (pp.149-150). Para Sérgio, trata-se, assim, do mesmo objeto repensado já à luz de outras cogitações: as que embalavam a feitura de Visão do Paraíso.
Escrevendo num momento em que muitos acreditavam na sobredeterminação do econômico, e quando se começava a cogitar, entre os historiadores franceses, na autonomia das mentalidades - fenômenos de longuíssima duração - Sérgio Buarque de Holanda fica numa espécie de meio-caminho extremamente sugestivo: Caminhos e Fronteiras mostra que foi nos aspectos da vida material que o colono e seus primeiros descendentes se mostraram mais sensíveis "a manifestações divergentes da tradição européia", mantendo, sempre que possível, o legado ancestral no tocante à vida familiar e em sociedade (p.12). Mas foram determinados traços de mentalidade, peculiares aos colonizadores portugueses, que permitiram operar a seleção das técnicas adotadas, a retirar, da botica da natureza, certas substâncias e não outras, imprimindo sentido nos arranjos culturais e influindo sobre a história dos homens. Mentalidade que não se apresentava quase imóvel, como nos trabalhos de Philippe Ariès, mas passível de ir se alterando aos poucos, sob o impacto da "agitação de superfície" representada pela adoção de novas técnicas e de novos costumes (p.136).
Mas se é um marco inovador, Caminhos e Fronteiras não perde de vista a melhor tradição historiográfica brasileira. Vida e Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado, econtra-se presente em muitos pontos - Sérgio mostra, em "Redes e redeiras", que uma rede valia tanto, ou pouco mais do que uma casa de um lanço (um pavimento) na São Paulo seiscentista (p.249). A habilidade em desvendar os significados ocultos nos hábitos alimentares, nas vestimentas, na relação com a topografia e as plantas invocam Capistrano de Abreu e os Capítulos de História Colonial, citados em várias passagens. Como diz o título, Caminhos e Fronteiras demarca territórios, indicando um tempo novo nos estudos de história, mas é também confluência de muitas picadas e atalhos mais antigos.
1. Cabe destacar as considerações de Maria Odila Silva Dias, "Sérgio Buarque de Holanda, historiador" - Introdução a Sérgio Buarque de Holanda, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1985, pp. 25 e segs.
2. Uso a expressão de Peter Burke, A escola dos Annales - 1929-1989 - A Revolução Francesa da Historiografia, trad., São Paulo, Editora Unesp, 1991.
Sérgio Buarque de Holanda
Companhia das Letras, 301 págs.
Sobre Sérgio Buarque de Holanda, existem hoje algumas certezas bem firmadas. Dentro e fora dos círculos acadêmicos, é visto como o maior dos historiadores brasileiros. Todo leitor culto reconhece em Raízes do Brasil uma obra-prima ; todo estudioso de História considera Visão do Paraíso a expressão máxima da erudição nacional. Existem entretanto dois livros seus que ainda não receberam a atenção merecida: Monções, de que a imprensa praticamente ignorou a edição ampliada vinda à luz em 1990; Caminhos e Fronteiras, reeditado pela terceira vez em 1994 e tratado com igual indiferença.
A afinidade entre os dois trabalhos é evidente, e, aliás, explicitada pelo autor na Introdução ao segundo. Monções foi publicado pela primeira vez em 1945, e Caminhos e Fronteiras reuniu, doze anos depois, ensaios escritos nesse meio tempo. Mais de um especialista aludiu ao papel de divisor de águas representado pelos dois livros, que documentam o nascimento de um Sérgio eminentemente historiador, às voltas com os arquivos e a pesquisa sistemática de fontes primárias, e o abandono do ensaísmo mais sociológico de Raízes do Brasil (1). Da fase anterior, permaneceu entretanto a presença da cultura alemã (ou por esta influenciada), sobretudo na forma da antropologia. É interessante ressaltar esta interdisciplinariedade, central em todas as profissões de fé produzidas durante a primeira fase da "revolução historiográfica francesa", capitaneada por Lucien Febvre e Marc Bolch, e à qual Sérgio chegou por vias diferentes das dos historiadores dos Annales (2). Em decorrência do intercâmbio fecundo com a psicologia social, a sociologia, a antropologia e a linguística, os franceses postularam uma "história total", abrindo posteriormente espaço para que vicejasse uma história das mentalidades e, mais recentemente, uma história cultural. Após o estudo minucioso das técnicas e práticas da vida cotidiana - cuja inspiração veio da etnologia de Koch Grünberg, Nordenskiõld, Friederici, mas produziu resultados metodológicos originais - , encetado justamente nos dois livros que aqui se comenta, Sérgio concebeu Visão do Paraíso, obra próxima da história da cultura dos alemães mas igualmente aparentada à história das mentalidades francesa, que então - 1959 - dava seus primeiros passos.
A antropologia parece ter sido, assim, uma via necessária para refletir sobre processos históricos, notadamente no viés da análise cultural. No plano o mais genérico possível, o objeto de Monções e Caminhos e Fronteiras é a história dos paulistas antigos: populações mamelucas que viviam a cavaleiro de duas culturas, equilibrando-se na tensão entre mobilidade - o caminho, a penetração fluvial (monção) - e sedentarização - a fronteira, onde tradições de natureza diversa se combinavam, produzindo técnicas, costumes, atitudes, artefatos. Do ponto de vista metodológico, o autor busca compreender, em toda a sua complexidade, o mecanismo das trocas, sínteses e soluções culturais. Não se trata de constatar difusão de traços, mas de perceber que a forma assumida por tais traços foi definida pela situação histórica: esta é, afinal, a prova dos nove de todo o processo. Por fim, no plano mais circunscrito, a análise incide sobre a vida material - viés de que parte a compreensão mais funda, restabelecendo-se, assim, o percurso de volta do particular ao geral.
Em Monções, o autor destaca o fabrico das canoas - que o acidentado das viagens acabou por tornar cobertas -, a utilização dos rios como caminhos - introduzida pelos paulistas e imitada posteriormente no extremo Norte -, a adoção de roupas simples e rústicas, a configuração de uma dieta alimentar definida a partir das contingências da itinerância - o milho, cujas sementes eram de transporte fácil e germinação rápida; o toucinho, que se conservava bem.
Tributário, em muitos pontos, do livro anterior, Caminhos e Fronteiras apresenta, porém, complexidade bem maior. Os artigos originais datam de momentos diversos, mas o autor os dispôs de forma a dar ao todo uma grande unidade - reescrevendo, obviamente, pequenas passagens para assegurar a harmonia final. Os capítulos se ordenam em três núcleos: Índios e mamalucos, Técnicas rurais e O Fio e a teia. Nas palavras do autor, o primeiro núcleo aborda "as situações surgidas do contato entre uma população adventícia e os antigos naturais da terra com a subsequente adoção, por aquela, de certos padrões de conduta e, ainda mais, de utensílios e técnicas próprios dos últimos" (p.12). O segundo e o terceiro núcleos, por sua vez, abordam o processo de diluição desse legado, ocorrido nos primeiros tempos, e a lenta recuperação subsequente; a herança indígena se faz mais presente no segundo núcleo, pois no terceiro abordam-se "atividades que tendem a acomodar-se aos meios urbanos e se tornam, neste caso, cada vez mais dóceis aos influxos externos" (id.).
Apesar do pioneirismo no estudo do cultivo dos trigais, da pilação dos grãos, do trato do solo, da tecelagem de cunho doméstico - quando o autor mostra que a boa análise das técnicas deve se valer da antropologia e da consideração dos universos mentais envolvidos -, Índios e mamalucos se destaca das demais partes e conta entre as páginais mais brilhantes já produzidas pelas Ciências Humanas no Brasil.
Os nove artigos que compõem este núcleo se sucedem para o leitor como uma série de obras-primas impressionantes, capazes de surpreender e maravilhar a cada parágrafo. Muito antes das considerações de Carlo Ginzburg sobre o conhecimento indiciário, Sérgio Buarque de Holanda aborda este problema em "Veredas de pé posto" e "Samaritanas do sertão", detendo-se sobre a dimensão cultural dos sentidos e da percepção. No primeiro, discorre sobre a arte de se orientar no mato por meio da leitura de pegadas e ramos quebrados, mostrando ainda como há um "jeito de corpo" próprio para a marcha longa - os pés devem ficar ligeiramente voltados para dentro - , desde cedo incorporado pelos mameucos de São Paulo. No segundo, trata da questão do abastecimento de água durante as longas jornadas sertão adentro, e da forma própria aos caminhantes de decifrarem sinais referentes à existência de mananciais ou reservatórios.
"Iguarias de Bugre", "Caça e Pesca" e "Botica da Natureza" são um marco na trajetória do autor, contendo já algumas das questões posteriormente exploradas em Visão do Paraíso, onde o "gosto do maravilhoso" iria adquirir importância central. Exploram a incorporação, por parte do europeu, de hábitos alimentares, venatórios e curativos inusitados e exóticos, mostrando que, mesmo se subordinada à fome - "companheira da aventura" - , à itinerância ou à premência da doença, ela se fazia quase sempre através de critérios ora seletivos, ora analógicos. Estes últimos se encontram presentes, por exemplo, na crença na virtude de certas pedras existentes nas entranhas dos animais, identificadas pelos colonos à lendária pedra bezoar; manifestam-se ainda na adoção de certas práticas indígenas de pesca, como o hábito de intoxicar os peixes, velhas conhecidas dos portugueses. Na nova terra, diante de peculiaridades do meio natural, "onde não se reproduzem exatamente as visões habituais, a imaginação adquire direitos novos", apesar de haver sempre quem insistisse nas analogias, procurando "o honesto pão de trigo" na mandioca, a castanha européia na araucária, a uva na jabuticaba, a carne de vaca na de tamanduá - como registraram tantos dos primeiros cronistas.
Tais procedimentos, portanto, mostraram-se muito mais complexos do que as aparências levam a supor: "nada tão difícil (...) como uma análise histórica tendente a discriminar (...) entre os elementos importados e os que procederam diretamente do gentio. Traços comuns prepararam, sem dúvida, e anteciparam, a síntese desses diversos elementos" (p.78). "(...) ...são dignos de interesse, por outro lado, os processos de racionalização e assimilação a que o europeu sujeitou muitos de tais elementos, dando-lhes novos significados e novo encadeamento lógico, mais em harmonia com seus sentimentos e seus padrões de conduta tradicional" (pp.79-80).
Cabe destacar ainda "Frechas, feras, febres", o mais longo dos ensaios, e um dos mais belos - combinação exemplar de pesquisa histórica e observação etnográfica -, e "Frotas de Comércio", que retoma, às vezes de forma literal, passagens de Monções, acrescentando contudo uma analogia brilhante entre o fascínio lusitano pelo ultramar e o fascínio dos mamelucos paulistas pelo interior, as monções assumindo, neste imáginário, a forma de uma "migração ultramarina" (pp.149-150). Para Sérgio, trata-se, assim, do mesmo objeto repensado já à luz de outras cogitações: as que embalavam a feitura de Visão do Paraíso.
Escrevendo num momento em que muitos acreditavam na sobredeterminação do econômico, e quando se começava a cogitar, entre os historiadores franceses, na autonomia das mentalidades - fenômenos de longuíssima duração - Sérgio Buarque de Holanda fica numa espécie de meio-caminho extremamente sugestivo: Caminhos e Fronteiras mostra que foi nos aspectos da vida material que o colono e seus primeiros descendentes se mostraram mais sensíveis "a manifestações divergentes da tradição européia", mantendo, sempre que possível, o legado ancestral no tocante à vida familiar e em sociedade (p.12). Mas foram determinados traços de mentalidade, peculiares aos colonizadores portugueses, que permitiram operar a seleção das técnicas adotadas, a retirar, da botica da natureza, certas substâncias e não outras, imprimindo sentido nos arranjos culturais e influindo sobre a história dos homens. Mentalidade que não se apresentava quase imóvel, como nos trabalhos de Philippe Ariès, mas passível de ir se alterando aos poucos, sob o impacto da "agitação de superfície" representada pela adoção de novas técnicas e de novos costumes (p.136).
Mas se é um marco inovador, Caminhos e Fronteiras não perde de vista a melhor tradição historiográfica brasileira. Vida e Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado, econtra-se presente em muitos pontos - Sérgio mostra, em "Redes e redeiras", que uma rede valia tanto, ou pouco mais do que uma casa de um lanço (um pavimento) na São Paulo seiscentista (p.249). A habilidade em desvendar os significados ocultos nos hábitos alimentares, nas vestimentas, na relação com a topografia e as plantas invocam Capistrano de Abreu e os Capítulos de História Colonial, citados em várias passagens. Como diz o título, Caminhos e Fronteiras demarca territórios, indicando um tempo novo nos estudos de história, mas é também confluência de muitas picadas e atalhos mais antigos.
1. Cabe destacar as considerações de Maria Odila Silva Dias, "Sérgio Buarque de Holanda, historiador" - Introdução a Sérgio Buarque de Holanda, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1985, pp. 25 e segs.
2. Uso a expressão de Peter Burke, A escola dos Annales - 1929-1989 - A Revolução Francesa da Historiografia, trad., São Paulo, Editora Unesp, 1991.
LAURA DE MELLO E SOUZA é professora do departamento de filosofia da USP
Folha de São Paulo
Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário